Yanis Varoufakis: O 'establishment' iliberal europeu

É tempo de dizer às elites que eles têm apenas eles mesmos para culpar. E é tempo para que os progressistas juntem forças e recuperem a democracia.

Yanis Varoufakis - Carta Maior - 03/04/2017

Valerij Ledenev
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No dia 25 de março, Os líderes europeus reuniram-se no local de nascimento do “Projeto Europeu” para celebrar 60º aniversário do Tratado de Roma. Mas o que há, de fato, para celebrar?
 
Estarão celebrando a desintegração da Europa, que denominam agora de Europa de “múltiplas velocidades” ou de Europa de “geometria variável”? Ou aplaudem a perspectiva do “business as usual” de todas as crises – um enfoque que atiçou as chamas do nacionalismo xenofóbico por toda a União Europeia?
 
Mesmo eurófilos cabeça-duras admitem que a reunião de Roma parecia mais um velório que uma festa. Alguns dias depois, a primeira ministra britânica, Theresa May, enviou uma carta à União Europeia formalizando o início da lenta, mas irreversível, saída do Reino Unido.
 
O “establishment” liberal em Londres e no continente e tão perplexos como o novo populismo está rasgando a Europa. Como os Bourbons, eles não aprenderam nada e lembrado nada. Nem por um instante eles pararam para uma auto-reflexão crítica, e agora fingem choque sobre o vazio de legitimidade e a paixão anti-establishment que ameaça o status quo e, consequentemente, sua autoridade.
 
Em 2015, eu frequentemente adverti os credores da Grécia – a “crème de la crème” o establishment liberal internacional ( o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu, funcionários alemães e franceses, e por aí afora) que estrangular o novo governo no seu berço não seria dos seus interesses. Se a nosso desafio progressivo, democrático e europeísta, fosse liquidado, disse a eles, a crise aprofundada produziria uma onda  anti-europeia, xenófoba e iliberal, não apenas na Grécia mas em todo o continente.
 
Como gigantes despreocupados, eles não atentaram aos presságios. A breve rebelião da Grécia contra a depressão permanente foi  impiedosamente sufocada no verão de 2015. Foi um golpe moderno: as instituições europeias utilizaram os bancos, não tanques. Diferentemente dos golpes que sufocaram a democracia grega em 1967 e a checa “Primavera de Praga” um ano após, os usurpadores usaram ternos e tomavam água mineral.
 
A versão oficial dos eventos foi que a União Europeia foi obrigada a intervir para forçar uma população cheia de caprichos de volta ao caminho da retidão fiscal e das reformas estruturais.  Na realidade, a principal preocupação dos líderes do golpe era evitar admitir o que vinham fazendo desde 2010: estender a falência generalizada da Grécia forçando-a a pagar novos  empréstimos da Europa lastreados em recursos advindos de impostos, condicionados a crescente austeridade que apenas poderia reduzir a renda nacional grega ainda mais.
 
O único modo de continuar com isso em 2015 e depois, entretanto, era empurrar a Grécia ainda mais fundo para a  insolvência. E isso demandava sufocara a primavera grega.
 
Interessante que o documento de rendição do primeiro ministro da Grécia e aprovado pelo Parlamento, foi declarado como sendo escrito a pedido das autoridades gregas. Como os líderes da Checoslováquia em 1968, forçados pelo Kremlin a assinar uma carta convidando o Pacto de Varsóvia a invadir seu país, a vítima foi requisitada para pretender que havia solicitado a punição. A União Europeia apenas respondia compassivamente ao pedido. A Grécia experimentou coletivamente o tratamento que o pobre recebe no Reino Unido quando demandam os benefícios a que têm direito nos centros de atendimento ao trabalhador, onde precisam aceitar a responsabilidade pela humilhação e afirmar platitudes condescendentes  como: “minhas únicas limitações são aquelas que eu mesmo me coloquei”.
 
A ocasião punitiva do establishment europeu foi acompanhada de uma perda de toda auto-contenção. Como ministro de finanças grego, no começo de 2015, eu aprendi que os salários do Presidente, CEO e membros da direção da instituição pública (a Hellenic Financial Stability Facility – HFSF) eram estratosféricos. Para economizar, mas também para restaurar a equidade, anunciei um  corte salarial em torno de 40 %, correspondendo à média das reduções salariais por toda a Grécia a partir da crise de 2010.
 
A União Europeia, tão zelosa em diminuir minha remuneração de ministro e os salários e pensões, não aderiu, de fato, à minha decisão. A Comissão Europeia demandou que a revertesse: afinal, esses salários iam para funcionários selecionados pelos burocratas da EU – pessoas que consideravam como um deles. Após a EU forçar nosso governo à submissão e após minha demissão, aqueles salário foram aumentados em 71 % - o pagamento anual dos CEOs foi elevado a 220 mil euros (US$235 mil). No mesmo mês, pensionistas recebendo 300 euros por mês teriam esses proventos cortados em até 100 euros.

Houve um tempo em que a característica fundamental do projeto liberal era, nas palavras inspiradoras de John Kennedy, a disponibilidade para “pagar qualquer preço, suportar qualquer fardo, vencer qualquer vicissitude, apoiar qualquer amigo, opor-se a qualquer adversário, para assegurar a sobrevivência e o sucesso da liberdade”. Mesmo neoliberais, como Ronald Reagan e Margaret Tatcher, empenharam-se em conquistar corações e mentes, para convencer a classe trabalhadora que cortes de impostos e desregulamentações eram de seu próprio interesse.
 
Infelizmente, após a crise econômica europeia, algo diferente do liberalismo, ou mesmo neoliberalismo, tomou conta do nosso establishment, aparentemente sem ninguém dar-se conta. A Europa tem agora um establishment fortemente iliberal que nem mesmo busca conquistar a população.
 
A Grécia é apenas o começo. A repressão à primavera grega de 2015 levou o partido de esquerda Podemos a perder seu momentum na Espanha: sem dúvida, muitos de seus eleitores potenciais temeram um destino similar ao nosso. E, tendo observado a insensível desconsideração com a democracia na Grécia, na Espanha, e em outros lugares, muitos apoiadores do Partido Trabalhista Britânico votaram pelo Brexit, que, por sua vez, impulsionaram Donald Trump, cujo triunfo nos Estados Unidos soprou as velas dos nacionalistas xenofóbicos por toda Europa e no mundo.
 
Agora que o assim chamado establishment liberal está sentindo a reação nacionalista fanática que seu próprio iliberalismo provocou, ele está respondendo um pouco como o parricida proverbial que apela à justiça por leniência sob o argumento de que agora é um órfão. É tempo de dizer às elites europeias que eles têm apenas eles mesmos para culpar. E é tempo que os progressistas juntem forças e recuperem a democracia europeia do establishment que perdeu seu rumo e ameaça a unidade europeia.



Créditos da foto: Valerij Ledenev

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