Nassif: Xadrez da sinuca de bico da mídia
QUI, 02/03/2017 - 22:23
Os jornais estão entrando em uma encrenca cada vez maior.
Diz-se que o jornalismo é o exercício do caráter. Especialmente no jornalismo opinativo e na linha editorial dos jornais, o caráter é ponto central. Constrói-se o caráter de cada publicação analisando seu apego aos fatos, sua generosidade ou dureza de julgamento, sua capacidade de mediação ou parcialidade gritante. E, principalmente, sua credibilidade, o respeito com que trata a informação. Houve um bom período em que mesmo os adversários mais ferrenhos do Estadão respeitavam a seriedade com que tratava os fatos.
Desde que a mídia brasileira caiu de cabeça no pós-verdade e no jornalismo de guerra, esse quadro mudou.
No Olimpo da mídia de massa, há dois tipos de jornalistas e de celebridades: os que seguem cegamente a linha criada pelos veículos; e os que já têm ou caminham para ter personalidade própria, inclusive para se contrapor aos movimentos de manada.
Nesse grupo abrigado pela mídia, pequeno, mas influente, há um mal-estar crescente em relação ao governo Temer, à parcialidade da Lava Jato e ao próprio esforço da mídia em dourar a pílula do governo com um jornalismo eminentemente chapa-branca.
Por outro lado, após perder os leitores de esquerda, a velha mídia começa a perder os de direita, que se agrupam em torno de outros veículos. E está diante de um grave problema moral e jornalístico: qual a cara dos jornais? Que tipo de pensamento eles representam? Qual é seu caráter?
A imagem que passam é dúbia. E a aproximação com Temer agravou radicalmente esse quadro:
1. Eu sei, os jornais sabem, a torcida do Flamengo sabe que o governo Temer é eminentemente corrupto.
2. Mesmo assim, os jornais teimam em apoiá-lo, depois de justificar o impeachment como combate à corrupção.
Como pretendem se diferenciar dos blogs e sites jornalísticos sem tradição? Publicando artigos sobre a pós-verdade e, ao mesmo tempo, continuando adeptos incondicionais do jornalismo de guerra? E, agora, perdendo qualquer veleidade de encenação de superioridade moral, apoiando uma plutocracia unanimemente reconhecida como corrupta.
Peça 2 – o jornalismo chapa-branca
A maneira como os jornais atuam, sempre de forma concatenada, é sinal indiscutível de uma articulação, como a de um cartel combinando preços.
Analisem os jornais de hoje. Todos batem em três teclas simultaneamente: a de melhoria da economia e a leitura enviesada do depoimento de Marcelo Odebrecht, e a repetição das denúncias contra o PT, todas buscando beneficiar o governo Temer.
A crise está longe de ser vencida. Persiste a crise fiscal da União e dos estados, os principais setores – como o automobilístico – amargam quedas recordes, o pior bimestre nos últimos 11 anos, o desemprego avança de forma avassaladora. E a cada dia que passa mais se escancara a natureza fundamentalmente corrupta do governo Temer.
Como gerar notícias positivas?
O Valor Econômico, que já praticou um jornalismo mais objetivo, recorre a uma entrevista com Michel Temer e transforma em manchete sua “previsão”: “Temer aposta em alta do PIB acima de 3% em 2018” (https://goo.gl/tMvvs5). Fantástico! Um deputado que jamais se interessou por temas econômicos, que não tem nenhum histórico de previsões ou cenários, “aposta” em PIB acima de 3% e a aposta merece manchete principal do jornal.
Já a Folha prefere transformar a pessoa física de Temer em “gestão Temer”, e coloca na manchete principal a extraordinária informação de que a gestão vê retomada da economia e diminui corte orçamentário. E quais os indicadores? A informação de que a arrecadação continua caindo, sim, mas em ritmo mais lento. Ou seja, após 8% de queda do PINB, ainda não se chegou ao fundo do poço.
Em outros cantos, o jogo de previsões sombrias de que a saída de Temer poderia comprometer a salvação nacional, que são as reformas constitucionais empurradas goela abaixo da população – e, por isso mesmo, extremamente vulneráveis a futuros governos.
Assim, o jornalismo econômico e político na velha mídia fica dependendo de alguns raros praticantes de jornalismo efetivo, como José Paulo Kupfer, do Globo, e Vinicius Torres, da Folha. Ou ainda de analistas políticos escondidos pelo jornal, como José Roberto Toledo, do Estadão, ou, menos escondida, Maria Cristina Fernandes, do Valor e Bernardo Mello Franco, da Folha, Kennedy Alencar, da CBN. E os referenciais de sempre, como Jânio de Freitas.
Peça 3 – a desinformação de quem informa
Esses contrapontos são utilizados pelos jornais não como elementos de análise, mas como exemplo restritíssimo de biodiversidade política. No fundo, a inteligência interna, a visão estratégica dos veículos é tão rasa quanto a do público que cultivam, tal o desleixo com que trabalham as notícias, tal a mesmice das análises econômicas e políticas, sem nenhum controle de qualidade, nenhuma punição aos grandes erros factuais, e nenhuma visão de futuro.
Foi esse mesmo espírito que levou, no início de 1999, as empresas jornalísticas à maior crise da história porque acreditaram em suas fontes do mercado financeiro – e, muitas delas, em seus colunistas financeiros – de que não haveria desvalorização do real.
Agora, incorrem na mesma falta de visão estratégica, no simplismo de quem não consegue analisar os múltiplos desdobramentos do quadro econômico e político e, especialmente, as resultantes da própria ação midiática.
Mesmo estando em jogo o futuro do jornalismo e deles, como empresas, são incapazes de montar um conselho diversificado, capaz de traçar cenários minimamente complexos para orientar as estratégias editoriais. Subordinam-se à cartelização, provavelmente montada dentro do fórum do Instituto Millenium, que é a melhor maneira de minimizar responsabilidades: afinal, se houver erros, será coletivo. Para quem não sabe o que fazer, não deixa de ser um consolo.
Se não houver uma correção de rumos, se terá o seguinte quadro pela frente:
1. A velha mídia vai continuar bancando um plano econômico sem nenhuma condição de superar a crise. O plano não tem nenhum componente anticíclico. Vai apenas prolongar a recessão e aprofundar as tensões sociais e políticas.
2. Passar o desmonte da Previdência e do fim dos direitos sociais, sem nenhuma espécie de negociação, em um quadro de ampla recessão, é jogar gasolina na fogueira.
3. Como intermediária e avalista da Lava Jato e, agora, de Temer perante a classe média, conseguirá se desmoralizar cada vez mais perante seu público, a exemplo do que está acontecendo com seus candidatos do PSDB, nenhum deles em condição competitiva para 2018. Apesar de merecer esse fim, não é bom para o país. Será o fracasso definitivo da sociedade civil, uma das últimas formas de articulação da institucionalidade, embora profundamente corroída por anos de discursos de ódio.
Peça 4 – o desafio das delações da Odebrecht
É assim, sem nenhuma visão, que a mídia entrará agora na cobertura das delações da Odebrecht.
Já está delineada uma estratégia para impedir que a Lava Jato chegue nos seus.
1 A denúncia dos abusos cometidos no período anterior, no qual as vítimas foram Lula e o PT. O destaque dado pelo Estadão à entrevista do ex-Ministro Nelson Jobim – no qual ele desanca as ilegalidades da Lava Jato e reclama da falta de punição aos abusos mais ostensivos – com mais de um ano de atraso.
2 A parceria renovada de Jobim com Gilmar Mendes.
3 Os inquéritos internos contra os delegados da Lava Jato, pela colocação de escuta clandestina na cela de Alberto Yousseff e outros. Até agora empurrou-se com a barriga o inquérito. Bastará trata-lo com seriedade para se enquadrar os dois principais delegados da Lava Jato. Que, assim como José Serra, decidiram abdicar de seus cargos em Curitiba e buscar paragens mais amenas.
4 O jogo de postergações de inquéritos envolvendo os parceiros da mídia e da Procuradoria Geral da República (PGR).
Todos esses movimentos são carne fresca a alimentar o leão das ruas, que vem embalando os sonhos de Bolsonaro, ou os sonhos com o general Villas Boas.
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