Boaventura de Sousa Santos |
Cientista social Boaventura de Sousa Santos lança A Difícil Democracia e reflete sobre ascensão do conservadorismo em um mundo cada vez mais desiludido com o projeto social dos governos de esquerda
Em seu novo livro, publicado no Brasil no fim do ano passado, o cientista social português Boaventura
dos Santos fala de “reinventar as esquerdas”. Com uma visão globalizada, lança luz sobre possíveis paralelos entre a ascensão dos movimentos Occupy e os desafios da Venezuela pós-Chaves. Vai da Revolução Cubana às experiências com os refugiados no Sul da Europa. Sinaliza para uma democracia desgastada, mas que segue caminhando em direção a um ponto ainda incerto.
Boaventura foi um dos autores homenageados na III Bienal do Livro e da Leitura, que aconteceu em Brasília no último mês de outubro. Na ocasião, também recebeu o título de cidadão honorário brasiliense e lançou mundialmente A Difícil Democracia, editado aqui pela Boitempo Editorial e com orelha de Frei Betto. Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Boaventura avança sua reflexão para fatos recentes, como a eleição de Donald Trump e as crises políticas no Brasil e Argentina.
Boaventura de Sousa Santos
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. Atualmente dirige o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordena o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. +
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O POVO - O desencanto com as esquerdas é global e generalizado?
Boaventura de Sousa Santos - Ao nível mais geral, o problema da esquerda é o de falta de alternativa ao capitalismo neoliberal que, depois da queda do Muro de Berlim, se impôs globalmente através da desregulação dos mercados financeiros, da liberalização do comércio e das privatizações. Enquanto houver desigualdade, discriminação, exclusão social haverá sempre espaço para políticas de esquerda. Sempre que surja a possibilidade de uma alternativa, mesmo que muito modesta, a alternativa pode emergir. Para dar um exemplo que conheço bem, o meu país. Temos em Portugal, há mais de um ano, um governo estável, moderado, de esquerda assente na unidade das esquerdas, um governo do Partido Socialista com o apoio parlamentar do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. Foi possível formular uma alternativa muito moderada, mas mesmo assim significativa e credível, às políticas de austeridade que o governo hiper-conservador tinha imposto ao País entre 2011 e 2015.
A esquerda desapontada dos EUA é a mesma do Brasil e da Argentina? Estamos frustrados pelos mesmos motivos?
As razões de frustração variam de região para região. A América Latina tem a especificidade de ter começado o milênio com vários governos de esquerda. Estes governos não alteraram em nada o modelo de desenvolvimento e apenas acreditaram que o preço alto dos recursos naturais continuaria por muito e permitiria aos ricos continuarem a ser ricos e até mais ricos, enquanto os pobres deixariam de ser tão pobres. Por isso não fizeram reformas estruturais e governaram à moda antiga, não só com coalizões com a direita, mas usando o mesmo tipo de clientelismo político. Mas o modelo era insustentável e virou-se contra a esquerda. No entanto, a dureza da reação, sobretudo na Venezuela, Brasil e Argentina, deve-se em boa parte à interferência clandestina da CIA e do imperialismo norte-americano, uma interferência que os democratas brasileiros têm dificuldade em reconhecer. Daqui a umas décadas a documentação estará disponível, mas será tarde.Nos EUA é difícil falar de esquerda. O Partido Democrata é um partido de direita. A esquerda existe mas tem dificuldade em encontrar uma formulação política. Bernie Sanders representou essa esquerda órfã, mas o Partido Democrático usou todos os meios, incluindo os ilegais, para impedir que ele ganhasse as eleições primárias. Sanders, para surpresa do mundo, veio levantar a bandeira do socialismo no coração do capitalismo. E a verdade é que os jovens e os não tão jovens aderiram.
Entre 2011 e 2014 foram registrados em todo o mundo movimentos que alimentavam a expectativa de renovação democrática. Os movimentos e partidos que compartilham dessa ideologia poderiam ter previsto essa derrocada da esquerda, essa mudança drástica no cenário político?
Esses movimentos são uma grande mistura, e eu não diria que todos tinham por objetivo renovar a democracia. O golpe na Ucrânia, orquestrado pelos EUA e pela União Europeia, não visava qualquer renovação. Visava provocar a Rússia e conseguiu. Na Espanha, é certo que não se conseguiu inverter a política de direita apesar do movimento dos indignados e depois de três eleições para resolver o impasse político. Mas o partido Podemos é hoje a terceira força política. Se não cometer mais erros do que os que tem vindo a cometer pode vir a ser um dos fatores de renovação das esquerdas na Europa. Os ciclos políticos de verdadeira transformação social são muito longos. Continuamos a sofrer as consequências da queda do Muro de Berlim.
A herança das revoluções
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Em seu livro, o senhor revisita o percurso da democracia e ascensão da esquerda ao poder ao longo do século XX. Passa pela Revolução do Cravos, a Revolução Cubana, a Venezuela Chavista etc. Qual será a cara da democracia nos próximos 50 anos?
A democracia liberal representativa perdeu a sua luta contra o capitalismo, se é que alguma vez quis lutar. Pensemos na social-democracia europeia depois da Segunda Guerra e na experiência trágica de Allende no Chile. A democracia do futuro será uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa, e esta articulação tem de ser constitutiva dos partidos como forma de lutar contra a corrupção, a opacidade e o clientelismo.
Muitas dessas nações semiperiféricas enfrentaram, no século passado, consideráveis períodos de democracias restritivas e ditadura civil. De que forma essa configuração ajudou a definir nossa democracia dos anos seguintes? O que herdamos - de positivo e de negativo - dessa experiência?
Herdamos uma cultura política autoritária, racista, sexista, homofóbica, a glamourização da riqueza e a banalização de pobreza e da discriminação (quem é pobre é pobre porque não merece outra coisa; o jovem negro é vítima da brutalidade policial porque é bandido; a mulher que é violada provocou a violação devido ao seu comportamento menos recatado).
Como o senhor enxergou a eleição de Donald Trump como presidente da nação mais poderosa do planeta? Como, nesse cenário, pode-se continuar pensando em estratégias que rompam com o autoritarismo, com o patrimonialismo e com o não-reconhecimento da diferença?
Só um país muito corrupto, com uma sistema político profundamente anti-democrático, poderia eleger Trump. E ele aí está. Um governo de bilionários e de ex-executivos da Goldman Sachs (grupo financeiro multinacional sediado em Nova York). Os EUA são um império em declínio. Se os EUA fossem uma potência assim tão forte, como explicar a paranoia em que caiu sobre a suposta interferência da Rússia nas eleições? Ou o medo de que a Coreia do Norte lance mísseis que atinjam o País? São os mais poderosos no plano militar e algumas das suas multinacionais são de fato muito poderosas, mas isso é outro jogo.
O senhor fala de “reinventar as esquerdas”. Qual seria o primeiro passo para essa reinvenção? Que papel têm as chamadas “minorias sociais” (movimentos negros, indígenas, LGBTs) nessa revolução necessária?
A reinvenção está no modo de construir as alternativas a partir da base para ajudar hoje as populações excluídas, violentadas, discriminadas. A esquerda tem de ser simultaneamente anti-capitalista, anti-racista e anti-sexista. Mas tem de realizar o seu trabalho nas famílias, nos bairros, nas comunidades, nas favelas. Quem hoje faz este trabalho de base é a direita evangélica. Tem de ser durante muito tempo uma força contra a corrente que não aceita gerir lealmente o capitalismo porque para isso está lá a direita. Tem de ser totalmente intolerante com a corrupção.
A Difícil Democracia, Reinventar as esquerdas
224 páginas
Boitempo 2016
Quanto: R$ 52
Muito obrigado a O Povo
Fonte: http://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2017/01/boaventura-dos-santos-lanca-a-dificil-democracia.html
Data de publicação do artigo original: 31/01/2017
URL deste artigo: http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=20147
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