2016: 'pós-verdade' ou "desinformação tática"

30/12/2016, Burak Arikan, medium.com, Turquia

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desinformação tática, embora de modo algum seja fenômeno novo, jamais antes foi tão calculada, algorítmica ou organizada, em toda a história da comunicação de massa. O ambiente midiático hoje está gravemente danificado pela disseminação estratégica de notícias falsas, por trolls que conduzem as massas nas plataformas das mídias sociais, e por bolhas de filtragem que reforçam as já presentes zonas homogêneas de consenso.

A promessa liberal da Internet como ferramenta distribuída de comunicação de massa que tornaria mais fina a linha que separa produtor e públicos já se comprovou, de uma vez por todas, que nunca passou de fábula. Até que a Internet, especialmente nos últimos anos, só fez aumentar o efeito de disseminação, numa atmosfera na qual a linha entre fato e ficção já está criticamente diluída. A televisionação da Internet como tal preparou o terreno para os Erdogans e Hillarys [no orig. "Putins, Erdogans e Trumps", aqui modificados para q não se jogasse no lixo a criança progressista, com a água do banho-autor neoliberal (NTs)] do mundo para exaurirem nossos espaços de atenção. Ainda mais que isso, com poderes centrais já tendo conseguido decentralizar seu alcance no ruído assim manufaturado, vivemos hoje numa era de "pós-verdade,"na qual fatos objetivos têm menor influência na modelagem da opinião pública, que apelos à emoção e à crença pessoal.

Isso, porque fatos são continuamente degradados pela dúvida manufaturada através da propaganda e da informação enganosa. (...)]:
Pode-se definir melhor cada pequena quantidade de "notícias falsas" como desinformatzya. O objetivo de uma desinformatzya não é persuadir os leitores da verdade que haja nela; mais que isso, visa a criar dúvidas no leitor de que, a verdade pode nem existir.Quem se beneficia dessa dúvida manufaturada? Ethan Zuckerman do Centro de Mídia Cívica do MIT [orig. MIT Center for Civic Media].

A desinformação provê 'informes' que não são necessariamente falsos, mas incluem visões viciosas ou incompletas de eventos, expostos de modo a ter um efeito de persuasão sobre o leitor/ouvinte/telespectador. 

Quando a desinformação é produzida sistematicamente, ela causa dúvida continuada sobre fatos. Ao longo do tempo esse sentimento de dúvida converte-se em desconfiança ['nada presta', 'o Estado é ineficiente', 'todo político é ladrão', 'todos são corruptos' etc. (NTs)] Zuckerman explica o efeito mais amplo da propaganda:
No médio prazo, o efeito da propaganda é a polarização. Os dois lados de qualquer grupo político deixam de ver o oponente político como gente racional e razoável; e passam a ver o oponente como gente tão errada e desencaminhada e 'sem noção' que 'nós' jamais conseguiremos encontrar qualquer ponto de convergência sobre o qual erguer qualquer discussão racional com 'eles'. No longo prazo, a propaganda – e o jornalismo como o conhecemos no Brasil-2016 [NTs] – destrói/destroem a democracia, porque silencia(m) a opinião divergente e calcifica(m) no poder quem já esteja no poder.

Verificar a veracidade da notícia, examinando os fatos realmente acontecidos e comprovados, antes de noticiá-los [ing. Fact checking], como contramedida e resistência à desinformação ainda é prática adotada pela mídia-empresa dominante e veículos alternativos. Centenas de contraprovas que desmentiam o que tivesse sido 'noticiado' foram publicadas durante o referendum do Brexit e as eleições nos EUA em 2016. Nada parece ter feito qualquer diferença significativa. Como já se discutiu extensamente, uma das razões pode ter sido que os veículos das empresas de mídias sociais, fortemente polarizados, cada vez mais induzem as pessoas a viver dentro de suas próprias realidades construídas, as quais são reforçadas pelos sistemas de "leia também" e feeds todos construídos por algoritmos secretos, cujo sigilo é defendido furiosamente. 

Bolhas de filtros aplicados nos veículos das empresas de mídias sociais são mais reais que nunca, como o demonstra a análise meticulosa feita por Gilad Lotan de como estão sendo desenvolvidas as bolhas no aplicativo da empresa Twitter de mídia social, e pelo mapeamento, feito pelo Lab for Social Machines do MIT, de como apoiadores de Trump e Clinton vivem em seus próprios Twitter-mundos

Além disso, ainda que os fatos sejam expostos com força suficiente para sair de uma câmara de eco e alcançar um ou outro cluster  social isolado, eles evaporam rapidamente, como efeito de ataques organizados de trolagem [ing. trolling].

O artigo de Tim O'Reilly, "Media in the Age of Algorithms" esclarece os problemas de fazer a curadoria da informação num mundo de informação infinita e atenção limitada; para ele, o "sinal verdade" está nos metadados, não nos dados.[1] O artigo explica como a empresa Google filtra a desinformação, não porque examine o conteúdo das páginas da rede, mas porque administra os sinais de metadados, recolhidos de links entre páginas (via PageRank) e de comportamento de usuários, incluindo os que tentem burlar o sistema. 

O algoritmo Facebook por sua vez, para fazer a curadoria dos alimentadores de noticiário [ing. news feeds] parece priorizar o engajamento, mais que a verdade. O desafio, conclui O’Reilly, é como construir algoritmos que levem em consideração "a veracidade" [da notícia, manchete, informe, etc.] além da popularidade. Fato é que a empresa Facebook e cada vez mais também a empresa Twitter preferem selecionar por algoritmo os seus alimentadores de noticiário (ing. feeds) ao longo das timelines, para filtrar informação, sem qualquer ruído. Com isso, a empresa consegue economizar espaço, na janela de atenção do usuário; esse espaço pode ser aproveitado para novos anúncios de empreendimentos imobiliários. E até aqui temos só metade do problema. 

As plataformas mantidas pelas empresas de mídias sociais são espaços públicos, como shopping-centers e supermercados. Assim, tem havido incontáveis casos de censura de fatos considerados não recomendáveis e fechamento de páginas de ativistas e de jornalistas (...).

Reg Chua da Thomson Reuters lembra que a empresa Google incorporou recentemente um mecanismo para promover a verificação da veracidade de fatos/eventos, que marca fatos/eventos já verificados. A empresa Google pede que quem deseje que a veracidade de um fato/evento noticiado seja confirmada, use o marcador de Schema.org "ClaimReview" [revisão/confirmação solicitada] nas páginas do artigo, de modo que os respectivos sites possam ser verificados e promovidos como tal. Pedir que quem publica use marcadores é boa medida a tomar, porque permite que outras plataformas de mídia colham os marcadores e obtenham fatos verificados à vista de número muito maior de pessoas.

Mas, Chua argumenta com razão, isso não seria mais que uma ínfima intervenção num oceano de informação viciada ou fortemente partidarizada que estaria fora do alcance da verificação jornalística clássica. Com toda a certeza, temos problemas mais amplos que vieses numa ou noutra plataforma ou na verificabilidade do material publicado como se fosse fato e notícia não falsa.

Como a autocensura poderia ser detectada por um algoritmo ou tratada na política de plataforma? Como o algoritmo de curadoria julga um canal comercial de noticiário estabelecido, que aja como voz de um estado, quando uma empresa a ele coligada mantém contratos gigantes com o governo? Como um algoritmo faria a curadoria dos fatos a divulgar, mas que não possam sequer ser publicados, porque os jornalistas estão presos e o escritório da mídia-empresa, fechado? 

[Ou porque uma ou outra mídia-empresa esteja trabalhando como propagandista de uma ou outra candidatura, sobretudo se for candidatura já derrotada nas urnas, como no caso de Jay Rosen do NYT que acaba de declarar, apenas porque lhe parece que assim seja, em claro exercício de futurologia antiurnas, que o futuro reserva tempos tenebrosos para o jornalismo no governo Trump (NTs, em comentário ao texto traduzido)].

Todas essas circunstâncias descritas como pós-verdade vieram para ficar e ficarão, porque os que já têm poder beneficiam-se imensamente delas/com elas. [De início] Nossa capacidade para nos horrorizar permanecerá constante, ante as "últimas notícias" políticas de hoje tão chocantes como as da semana passada, ainda que o efeito cumulativo desses eventos só faça aumentar na sociedade. Depois, nossos momentos de choque converter-se-ão em quase rotina, hipernormalizados – como resultado de dúvida, frustração e confusão cada dia mais aprofundadas. Essas situações só beneficiam o status quo, a menos que as enfrentemos agora e comecemos a atuar para superar essa desinformação sistemática.

Apropriação indevida de nosso espaço de atenção 

Empresas estabelecidas de mídia, como Washington Post, o Guardian e a agência Reuters, bem como organizações dedicadas a verificar veracidade de informações publicadas como PolitiFactFullFact Teyit têm publicado centenas de contestações, depois de os fatos serem verificados, de notícias e declarações de autoridades, mas esse trabalho de 'correção' não é necessariamente organizado sob o formato de dados semanticamente estruturados. 

E o mesmo acontece com quase todo o trabalho feito por jornalistas investigativos como ProPublicaThe InterceptCarbon Brief, CorrectivICIJ e muitos outros. Por outro lado, iniciativas de cidadãos instruídos na operação com dados por todo o mundo já divergem das organizações tradicionais, pelo menos porque não publicam suas pesquisas como matéria jornalística, mas abrem as mesmas pesquisas para o público, como um banco de dados.

Mas esses esforços não são coordenados como teriam de ser. Não há pontes entre esses esforços, nenhum circuito de retroalimentação sistemática, com potencial para fazer rebentar as bolhas de falso noticiário pela/na mídia empresa comercial. Não será fácil superar a muralha de desinformação organizada que há hoje, mas temos de começar de onde estamos, com o que já temos, seja onde for e o que for. Podemos defender nossa grade de atenção, para nosso uso pessoal, se investirmos em três ações e as incorporarmos aos nossos hábitos diários:
1. Como especialistas em nosso bloco de conhecimentos, por parcial que seja, isolamos bits e peças de dados ao nosso alcance, que nós produzimos. Temos de nos habituar a linkar sistematicamente esses blocos de informação uns aos outros, em escala, e criar juntos um quadro maior das questões prementes que conseguimos compreender. Com isso temos chance de alcançar posições de influência (ou de ir preso, se o governo Temer no Brasil não gostar dos nossos blocos; mas, ok, ok, temos de fazer, sim, precisamente isso [NTs]). 
2. Devemos usar interfaces que nos permitam continuar a compreender e atribuir sentido ao modo como funcionam as complicadas relações de pode e explorar questões complexas que têm impacto em nós e em nossas comunidades.
3. Temos de ter a habilidade para conectar fatos e ação sobre os fatos sempre que possível, de modo a completarmos o circuito de realimentação entre a internet e a cidade.
Por isso temos trabalhado na construção de Graph Commons, uma plataforma colaborativa para conectar pontos-dados e fazer, analisar e publicar mapas de dados conectados em rede. Nossa plataforma tem sido usada principalmente por jornalistas [nenhum no Brasil, com certeza, infelizmente [NTs]), ativistas, militantes, advogados, artistas, designers, curadores, tecnólogos, professores, instituições culturais e por organizações da sociedade civil. [No Brasil, o prof. Fabio Malini, do Labic, trabalha lindamente com esses grafos (NTs)]. Embora ainda no início, partilhamos uma rede com comunidades que criam seus grafos comuns, ao tempo em que vão organizando a própria informação, contra a desinformação organizada

Aqui [no texto orig.] queremos partilhar alguns dos nodos de informação criados na plataforma Graph Commons, passos legítimos para que possamos avançar nas lutas da era da pós-verdade. São alguns dos grafos publicados sobre questões prementes em todo o globo:


Grafo 1: Mapa da rede de proprietários de empresas de mídia e respectivos outros investimentos [na Turquia, em turco], parte do projeto das Networks of Dispossession.


Mapear a propriedade das empresas de mídia

Proprietários de veículos estabelecidos de mídia recebem a concessão para vencer concorrências públicas do governo, graças às suas ações de lobbyNo Grafo 1, pode-se ver que os proprietários de mídia-empresas também investem em negócios de construção e de energia, o que caracteriza grave conflito de interesses, dado que, em tese, a imprensa teria de ser independente das pressões do mercado. Essa pesquisa e mapeamento de dados é parte do projeto Networks of Dispossession, mantido por um coletivo de voluntários desde 2013, na Turquia.


Grafo 2: Rede do ISIS na Turquia, desenvolvido pelo jornalista Erk Acarer de Birgun Newspaper

Rede do ISIS na Turquia 

Jornalistas do Birgun Newspaper desenvolveram o quadro mais completo até agora da rede do ISIS que opera na Turquia. Não obstante o esforço do governo turco para ocultar toda e qualquer informação sobre militantes do ISIS, a equipe do Birgun pesquisou meticulosamente e linkou os fragmentos e peças de dados encontrados nos arquivos da polícia e documentos dos tribunais sobre os ataques a bomba feitos pelo ISIS. O mapa que produziram "ISIS Antep Network" confronta sistematicamente a desinformação organizada distribuída pela mídia pró-Erdogan.


Grafo 3: Mapa de ONGs locais e internacionais que apoiam refugiados sírios na Turquia, desenvolvido pelo jornalista Melih Cilga e outros.

Refugiados sírios e ONGs 

Melih Cilga construiu o primeiro mapa de que se dispõe, ONGs locais e internacionais que apoiam refugiados sírios na Turquia. Nem o governo nem a ONU oferece informação detalhada aproveitável. Cilga começou a traçar o mapa e pediu dados de organizações como Médicos Sem Fronteiras e Assembleia dos Cidadãos de Helsinki sobre suas próprias atividades. Esse mapa tornou-se referência para quantos desejem pesquisar o que fazem as ONGs ou estudar as condições em que vivem os refugiados.


Grafo 4: Mapa da atividades dos lobbyies no Parlamento Suíço, construído por LobbyWatch.ch

Lobbyists no Parlamento Suíço 
LobbyWatch.ch é uma plataforma que visa a promover a transparência na política, e monitorou e mapeou as atividades de lobbying no Parlamento Suíço e construiu o perfil dos membros do Parlamento conforme as relações que mantivessem com várias indústrias, da Defesa à indústria farmacêutica, e com outras organizações internacionais. Pesquisaram membros do Parlamento e respectivas relações e encontraram interconexões nas relações indiretas entre vários deles. Seus achados e dados de pesquisa são publicados periodicamente na revista da plataforma LobbyWatch.ch.





Trata-se de mapa interativo da rede do conjunto de dados reunidos no artigo "Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights" [Para o Constitucionalismo Digital. Esforços para construir uma Carta de Direitos para a Internet], de  Lex Gill, Dennis Redeker e Urs Gasser, publicado dia 9/11/2015. O artigo analisa 30 iniciativas, de declarações de militantes a posições oficiais de organizações intergovernamentais, para propor leis, no período de 1999 a 2015. Dado que é processo muito complexo de propor leis relacionadas a "constitucionalismo digital", quisemos explorar o processo, usando a interface gráfica interativa de Graph Commons.

Todos esses são passos ainda inicial para linkar nossos dados de pesquisa, conectando nossos vários blocos de informação de boa qualidade para derrotar a desinformação organizada, alcançar posições de influência e resgatar para nós mesmos nossa grade de atenção. 

Todos podem ver outros mapas e construir seus próprios projetos de dados na plataforma de Graph Commons.

Com nossos melhores votos de um 2017 de paz!

Agradecimentos a Zeyno UstunAnna Wood Ahmet Kizilay pelas revisão, edição e sugestões.*****



[1] É o que Snowden sempre disse: "Conteúdos não interessam às empresas e aos governos. Só os metadados importam" (https://www.youtube.com/watch?v=T3jtxaU7g-U , ing.). "Metadados, por sua vez, são 'dados sobre dados', "dados que enriquecem a semântica dos dados" (IBGE, "Metadados"). Por exemplo, como se vê na pág, do IBGE do Brasil, metadados podem ser: os dados recortados por faixa etária, por sexo, por opção sexual, por anos de escolaridade; por local da residência; podem ser também os dados recortados por 'gostos', 'compras anteriores no site', e, até, 'pelo tempo q o consumidor permaneceu na pág.' "Metadados", portanto, são dados SOBRE você, sobre cada um de nós, reunidos por categorias das quais você/nós não temos qualquer conhecimento [NTs, com informações de Snowden e do IBGE].


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