Saul Leblon: Trump, Temer e o parto de uma nova esperança

O golpe destruiu tudo ao mesmo tempo: ficou sem chão. E Trump o deixou sem pernas.


Tomaz Silva
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O anúncio de um fim de ciclo histórico nem sempre assume a forma de um alvorecer virtuoso. 
 
É mais comum o oposto.
 
Até que uma nova ordem se imponha, a desordem é senhora.
 





A passagem da era colonial para a primeira crise capitalista do início do século XX  foi marcada pela carnificina da Guerra de 1914-1918, cujo término completa 96 anos neste mês de novembro.
 
Dez milhões de pessoas morreram; 20 milhões ficaram feridas.
 
Assim se desenhou o mundo das novas potências.
 
Ao acerto de contas colonial sobreveio um ciclo de brutal rivalidade capitalista. 
 
A paz nascida dessa transição tumultuada  impôs à Alemanha custos e reparações a tal ponto extorsivos que permitiram aos partidários de Adolf Hitler fazer campanha eleitoral apenas lendo o Tratado de Versalhes no rádio.
 
A instabilidade foi suficiente para alçar Hitler ao posto de chanceler em 1933, mesmo com frágil maioria parlamentar.
 
O resto é sabido.
 
A Segunda Guerra mundial matou 50 milhões de pessoas.
 
Desse cemitério brotaria a ordem negociada em Bretton Woods.
 
O chamado período de ouro do capitalismo, feito de crescimento e ampliação de direitos, estendeu-se até meados dos anos 70, quando a revanche neoliberal começou a tomar de volta tudo o que havia alicerçado o edifício da democracia social.
 
A eleição de Trump, oito anos após o colapso sistêmico de 2008, demarca um novo recorte sísmico (Leia o Especial de Carta Maior neste domingo com a seleção das melhores análises sobre o terremoto norte-americano)
 
O acerto de contas com a desordem neoliberal irrompe de dentro de suas próprias fileiras, a partir de uma visão fascista da sociedade e do desenvolvimento.
 
Como foi a dos nacional-socialistas nos anos 30.
 
A diferença no Brasil é que o terremoto então abriu espaço à ascensão de Vargas e à consolidação do Estado nacional brasileiro.
 
Hoje, em meio a uma crise sistêmica como a de 1929, o golpe se empenha na tentativa anacrônica de engatar o país à ordem econômica que se despede.
 
A desmentida ilusão de que, derrubando Dilma, as 'expectativas revigoradas dos livres mercados' fariam o resto, mostra a inconsistência dessa escolha.
 
‘Fosse assim, a virada já teria ocorrido’, admitiu em entrevista lúgubre ao Estadão, o ex-presidente do Banco central de FHC, Armínio Fraga.
 
Sem o endosso da realidade, o que era difícil ficou definitivamente para trás após a eleição de Trump.
 
Por variadas razões.
 
O republicano pretende, por exemplo,  gastar US$ 1 trilhão em infraestrutura esfarelando duplamente o chão do golpe.
 
O gasto pressionará a taxa de juro nos EUA dificultando o corte da Selic aqui, um requisito à retomada do investimento e à redução do aperto fiscal.
 
O que sobra?
 
O país gasta hoje cerca de 8% do PIB com juros da dívida pública. 
 
Um despautério imexível pela coalizão golpista, que evidencia assim seu deslocamento num mundo em que cerca de US$ 13 trilhões estão ancorados em títulos a juros negativos...
 
Segundo o economista Amir Khair, da FGV, o serviço dessa dívida indexada às maiores taxas de juros do planeta consome em 45 dias toda a tributação adicional (R$50,9 bilhões) obtida com a repatriação do dinheiro mantido no exterior.
 
É um garrote maiúsculo, mas o golpe e seus jornalistas privilegiam o peso do salário mínimo no rombo da previdência, que tem na aposentadoria integral dos militares 50% de sua raiz.
 
Não para aí.
 
Dos anos 30 aos anos 50, Getúlio fez do Brasil um canteiro de obras e de instituições de desenvolvimento.
 
Hoje o golpe se abala no desmonte das ferramentas de preservação do investimento público e privado.
 
O que sobra?
 
Com a fartura de recursos e obras no governo Trump, quem vai se interessar por concessões num Brasil institucionalmente instável, sem financiamento público, com mercado interno minguante e juros siderais?
 
Pior que isso. 
 
A participação privada na infraestrutura brasileira já capturou o filé mignon em quase todos os setores.
 
Isso a torna muito mais seletiva e arredia a partir de agora.
 
Sem a participação ativa do Estado, nada se fará.
 
Pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) mostra que no setor de transportes, por exemplo, 50% de todo o investimento registrado entre 2003 e 2015, foi feito pelo capital privado –o mesmo que a mídia dizia arredio pela desconfiança nas regras dos governos petistas.
 
Nos EUA esse fatia não chega a 9%; nos BRICS  (exceto África) a média é de 3%.
 
Nos EUA, apenas 0,3% dos 6,5 milhões de kms de rodovias do país estão sob controle privado. 
 
No Brasil são 15,5% de uma malha total de 64 mil kms...
 
O caso dos aeroportos é ainda mais expressivo.
 
Com as quatro unidades a serem concedidas em 2017, quase 70% do fluxo de passageiros do país estará sob gestão privada. 
 
Restará apenas o aeroporto de Curitiba com escala atraente ao interesse privado, avisa o estudo do Ipea.
 
A revoada de investidores prevista pelo golpismo, num cálculo muito mais ideológico  do que realista, não ocorrerá.
 
Desse descompasso entre a propaganda da mídia e a realidade dos tempos emerge a radiografia de uma assustadora bancarrota.
 
As novas referências geopolíticas trazidas pelo vento protecionista dos EUA só farão agravar a agonia da agenda golpista.
 
A ilusória intenção de engatar o destino do país a tratados de livre comércio, por exemplo.
 
Dotados de tribunais de exceção com soberania jurídica e legislativa para punir Estados e governos em defesa das corporações, eles compunham o corolário ideológico do neoliberalismo tardio brasileiro.
 
Com Trump trancando a maçaneta do maior mercado mundial, essa porta se fechou.
 
Sobra a dura realidade de indicadores descendo a ladeira sem freio.
 
As projeções apontam um tombo do PIB  entre 3,6% a 4% este ano.
 
Para 2017 previa-se  uma expansão medíocre de  1% e mesmo ela, feita pré-eleição americana, tornou-se irreal.
 
O desemprego continuará  a crescer para atingir 13% da PEA, com fechamento médio de 100 mil vagas mensais. 
 
O poder de compra das famílias brasileiras, depois de crescer continuamente de 2003 a 2014 , acumulará um mergulho de 10% no biênio 2015/2016.
 
Com a massa de famílias assalariadas sem renda e sem crédito o horizonte aqui também é estreito.
 
A boutade golpista –‘sem consumo, é hora de crescer pelo investimento’—   soa como aquele estágio no deserto em que o comprometimento biológico desencadeia alucinações.
 
Com juros de 14,25%, sem investimento público, sem crédito do BNDES e com elevada capacidade ociosa no setor produtivo, quem vai investir no Brasil?
 
Um olhar mais detido enxergará obstáculos de complexidade adicional.
 
O colapso econômico brasileiro encerra desafios históricos inéditos.
 
O principal deles remete à perda de dinamismo industrial na estrutura de crescimento do país.
 
Não é uma questão técnica.
 
O esgarçamento das cadeias industriais corrói o núcleo duro de produtividade em uma sociedade.
 
Reduz seu ‘budget’ para investir em obras, direitos e cidadania.
 
O setor capaz de bombear saltos de eficiência e de receita --e de ampliar a oferta  de empregos de qualidade, por conta de seu poder irradiador--- é o manufatureiro.
 
Segundo o IBGE , a fatia da industrial no valor adicionado ao PIB brasileiro era de 17,4% em 2005.
 
Recuou para 10,9% este ano.
 
Fruto em grande medida da sistemática valorização do Real desde os anos 90 –e consequente vazamento de demanda interna para importações chinesas.
 
A reversão desse processo em nosso tempo tornou-se bem mais complexa do que imagina o próprio Trump.
 
Como já disse a professora Maria da Conceição à Carta Maior, o que os chineses tonaram não tem volta.
 
O que está em disputa agora é a 4ª revolução industrial.
 
Ela inclui a digitalização dos processos, a robotização de linhas, a precisão e a integração de etapas, cadeias e áreas de conhecimento aplicados à manufatura.
 
O Brasil tem dois trunfos com escala e densidade suficientes para ocupar um espaço nesse ciclo: a ecoagricultura e o impulso industrializante contido na cadeia do pre-sal.
 
O requisito capaz de interligar esse potencial a um novo ciclo de desenvolvimento é a soberania na sua condução.
 
Sem ela, o leme cai nas mãos das grandes corporações 
 
Como está caindo, graças ao projeto de  liberação de terras aos estrangeiros e do desmonte do modelo soberano de partilha do pre-sal.
 
Retomar os espaços de soberania e planejamento democrático constitui, assim, o requisito de vida ou morte para o futuro da industrialização e do país no século XXI.
 
Subestimar a envergadura das respostas c0bradas pelo esgotamento neoliberal não é, infelizmente, um apanágio golpista.
 
Isso explica também os erros e omissões cometidos por governos petistas, que apostaram em uma regeneração das condições de mercado anteriores à crise de 2008, como se vivêssemos um evento transitório, e não um colapso terminal.
 
O erro de cálculo histórico levou a dois outros, interligados.
 
Insistir apenas na prorrogação de estímulos ao consumo, quando medidas estruturais de autoproteção do desenvolvimento –controle da conta de capitais, por exemplo, indispensável à redução dos juros, sem fuga de dólares-- deveriam ter sido tomadas, é um deles. 
 
O outro, render-se ao ‘consenso do ajuste ortodoxo’ no momento em que os desequilíbrios explodiam e uma repactuação política do desenvolvimento figurava como a única alternativa real ao descontrole.
 
Na verdade, ainda figura. Esse é o ponto.
 
Há quem considere ilusório o resgate dessa bandeira nas mãos de uma frente ampla
 
Mais ilusório é supor que a roda da democracia social poderá girar de novo no país sem esse repto.
 
É certo que o corredor histórico se estreitou.
 
Alargá-lo, porém, não é uma questão de fé.
 
Quem pode desobstruí-lo  é a  aglutinação pactuada dos inúmeros interesses, setores sociais e produtivos atingidos pelo arrocho neoliberal.
 
Na história das lutas sociais o indispensável só é impossível até ganhar nervos e musculatura das forças que dependem dele para respirar e progredir.
 
O golpe destruiu tudo ao mesmo tempo: as bases da economia, as da política e as do diálogo democrático. 
 
Dissolveu o chão firme da nação e não dispõe de liderança, nem de projeto, tampouco de legitimidade para reconstruí-lo.
 
Num tempo que estrebucha e ameaça levar de roldão as nações há duas alternativas.
 
Tirar a economia do altar sagrado da ortodoxia e expô-la a uma repactuação democrática do desenvolvimento --opção de uma frente ampla progressista.
 
Ou aguardar a chegada de um correlato fascistóide à moda ‘Trump’
 
O jogo é pesado. 
 
A roleta gira nervosamente.
 
Entre a morbidez e o parto de uma nova esperança define-se o destino do Brasil.

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