PML: Samuel Pinheiro Guimarães explica Trump e o Brasil
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Um dado relevante da conjuntura aberta pela vitória de Donald Trump consiste na resposta daquela parcela globalizada da elite brasileira diante na nova situação.
Vamos combinar. Não há dúvida de que é necessário condenar o discurso de Donald Trump pelo caráter anti democrático, pela violência contra imigrantes e minorias. Apoiado oficialmente pelos remanescentes da organização terrorista Ku Klux Klan, alguns dos partidários de Trump comemoraram a vitória carregando a suástica nazista. Inaceitável. E é preocupante, do ponto de vista dos direitos civis, que uma hegemonia conservadora -- no Congresso e na Suprema Corte -- possa produzir retrocessos na democracia. O fato de Trump ter sido vencido no voto popular não tem maiores consequências práticas numa disputa a ser resolvida no Colégio Eleitoral, mas é um sintoma de uma decisão precária.
Mas no coro contra Trump é possível identificar a melodia de uma ópera desafinada, formada por aquele ninho aquecido de privilegiados da terra de Santa Cruz.
"Fossem os EUA uma republica bananeira, o desfecho eleitoral seria danoso apenas para seus infelizes habitantes," escreve o Estado de S. Paulo em editorial"Mas é desse país que depende grande parte da segurança internacional e da estabilidade econômica global. Um passo falso do governo americano, por voluntarismo ou por uma visão estreita das relações internacionais, pode arrastar o resto do mundo para uma turbulência que só interessa aos inconsequentes e aos inimigos dos valores ocidentais. Não há razões para otimismo, "concluiu o jornal, que encerra o texto com um apelo religioso: "Deus Salve a América!"
No editorial "O retrocesso com Trump," o Globo avançou na mesma linha. Falou em crescimento das "forças do atraso", empregando uma régua peculiar para definir avanços e retrocessos. Referindo-se a lideranças regionais importantes e diferenciadas entre si, como Hugo Chávez, Nestor e Kristina Kirschner, Rafael Correa, Lula e Dilma, classificou Trump num mesmo grupo de políticos "populistas, xenófobos, anti-imigrantes e outras características típicas de movimentos reacionários".
Em entrevista ao Brasil 247, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um dos personagens mais influentes do Itamaraty brasileira nos dois mandatos de Lula, e um dos mais aplicados estudiosos e nossa diplomacia, esclarece que é conveniente assumir uma postura independente no debate, única forma de distinguir os interesses de um país soberano de questões internas da política norte-americana.
"Não há motivo real para que se pense que a vitória do Trump pode ser mais ameaçadora para a paz mundial nem mais nociva para nós, brasileiros, do que uma eventual vitória da Hillary Clinton," afirma o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em entrevista ao Brasil 247. "Do ponto de vista da diplomacia mundial, basta lembrar a intervenção em vários países do Oriente Médio para reconhecer na diplomacia do governo democrata uma agressividade poucas vezes vista na história dos Estados Unidos. Quanto ao interesse dos brasileiros, a discussão começa por nossas prioridades, como nação soberana. Desse ponto de vista, o resultado da eleição pode ser interessante."
Samuel recorda que, para o Brasil, "a prioridade é o desenvolvimento, o fortalecimento da indústria e de suas empresas produtivas. Esta é a discussão que o país deve fazer. Neste aspecto, o Trump tem uma atitude crítica em relação a globalização. Essa postura dá margem para o debate que nos interessa, que é defender o desenvolvimento, o capital produtivo, os empregos."
Para Samuel, o incômodo da elite brasileira com a vitória de Trump reflete sua postura no processo de desenvolvimento do país, inteiramente integrado ao sistema de poder em vigor em Washington durante o governo democrata de Barack Obama e também no governo de Bill Clinton, que mantinha relações até pessoais com Fernando Henrique Cardoso.
Nesta situação, o desconforto diante de uma mudança no núcleo de poder do império norte-americano é provocado pela chegada de um presidente que não só é um adversário do pacto do governo Obama, mas também pela vitória de um candidato que era um outsider mesmo dentro do Partido Republicano.
"Estamos falando de um grupo de grupos brasileiros que tem uma política de adesão incondicional ao Império. Aderem sem criticar e sem questionar. É uma vocação interna. Todo o programa de governo do Michel Temer, que eles apoiam sem uma crítica, um reparo, até porque são seus verdadeiros autores, depende da continuidade do que estava aí, do apoio daquilo que Washington fazia e decidia até segunda-feira passada. Tudo se baseia na esperança de chegada investimentos externos, num país onde cada pedaço de seu patrimônio e do território -- é importante notar que até a lei de terras está mudando -- foi colocada a venda. O parceiro desse governo, o centro dessa política, era a Hillary. "
Para Samuel, "ninguém sabe o que vai acontecer daqui para a frente. É certo que cedo ou tarde o Trump irá chegar a alguma acomodação com o sistema de poder norte-americano. A grande pergunta não é saber se isso vai acontecer. Mas como. O que se sabe é que ele recebeu o voto do eleitorado que repudia a globalização, quer empregos, quer a volta das indústrias a seus antigos lugares e terá de dar uma resposta a isso."
Não custa sublinhar que a crítica à globalização se baseia em fatos difíceis de negar. Os estudos são tão antigos e volumosos que ninguém mais tem o direito de alegar desconhecimento de um processo que está na origem da crise de derivativos de 2008/2009, que deu início a uma catástrofe econômica sem remédio até hoje. Um dos tantos mestres a explicar isso, numa época em que Trump era apenas dono de cassinos, bilionário e espalhafatoso, é Dani Rodrik, articulista regular do Valor Econômico, das Organizações Globo.
Já em 1997, dez anos antes do colapso de Wall Street Rodrik falava da globalização em tom de risco, dizendo, em termos que seriam denunciados pela campanha de Trump de forma quase literal, ainda que mais barulhenta, que era preciso garantir que "a integração econômica internacional não contribua para a desintegração social interna." A análise, que antecipou um longo percurso, é que a exportação de empregos para países de salário mais baixo, em especial a China, enfraqueceu a economia e desorganizou a sociedade, rompendo bases que faziam o país andar. "A paz do império era assegurada por uma economia que assegurava ganhos fabulosos para quem se encontra no topo mas permitia a casa própria, o automóvel, e até viagem de férias de vez em quando para o assalariado," explica Samuel."Isso acabou."
No livro "A Globalização longe demais?", Dani Rodrik lembra verdades básicas. Explica que o processo de abertura comercial indiscriminada e as reformas estruturais levaram à exportação de empregos com a consequente diminuição do poder de barganha dos trabalhadores; abalou as finanças dos serviços de bem-estar social, colocando os sistemas de previdência sob ataque prioritário; consolidou a um "novo conjunto de divisões de classe," entre aquelas que prosperam com a globalização e aquelas que não prosperam."
Do ponto de vista dos países e povos que foram condenados a pagar a conta da globalização, este é um debate que interessa fazer, explica Samuel. "Nesta situação, elite inteiramente integrada aos interesses externos se comporta como vice-cônsules do império, que temem qualquer mudança que possa ocorrer em Roma. Eles fizeram de tudo para agradar o trono, sem medir esforços nem genuflexões. As regras a vida em submissão ensinam que um império está preparado para prevenir e punir províncias que rebelam. A questão agora é que ocorreu uma rebelião em Roma. Responsáveis pela ordem nas províncias, os proconsules não sabem como reagir. Esta é a situação atual."
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