O retorno da mancha de sangue em berço dos assentamentos
por Patricia Faermann - no GGN - 04/11/2016
Quando o município de Quedas do Iguaçu, de 32 mil habitantes e economia hoje impulsionada pelos assentamentos que ocuparam as terras, estava próximo de por fim a acirrado e violento conflito com fazendeiros, novo capítulo fecha horizonte para o MST
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O que motivou a ação de 70 policiais civis, no Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, com a prisão de 14 lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre eles um vereador do PT eleito este ano, foi a denúncia de um fazendeiro de que integrantes do MST invadiram suas terras no interior paranaense, desaparecendo com 1.300 cabeças de gados e gerando um prejuízo de R$ 5 milhões à propriedade.
Batizada de "Operação Castra", do latim, a origem da palavra vem de "castra movere": levantar acampamento, ou ainda "profisci in castra": partir para a guerra. O reflexo da investigação que começou em março deste ano por delegados de Cascavel mostrou suas extensões a quase mil quilômetros de distância, na violenta entrada de policiais pelas janelas da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, no interior de São Paulo.
Vídeos, fotos e depoimentos comprovaram a agressão embarcada nas 10 viaturas das polícias civil e militar, que chegaram a pular o portão da Escola - reconhecida por ser um marco nas conquistas do MST, reunindo cursos de formação e educação a ativistas e setores ligados ao campo e lutas sociais - com armas letais, atirando em direção às pessoas presentes na unidade.
PEÇAS FALTANTES
Mas as poucas informações concedidas ao GGN pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que foi contactada no início da manhã e emitiu um posicionamento desconexo com a origem das investigações, aliada às também escassas informações da Polícia Civil do Paraná, guarda explicações no histórico do local.
O terreno é a Fazenda Dona Hilda, em Quedas do Iguaçu, interior do Paraná, palco de histórica luta por terras entre grandes proprietários rurais e os trabalhadores sem-terra.
No período em que a investigação pela Delegacia de Cascavel teve início, outra derrota era registrada para os grandes fazendeiros, e vitória aos movimentos sociais. Em abril, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) anunciava o que deveria ser um desfecho da luta por terras na região, e o fim do ciclo de violências.
O Incra havia conquistado a posse de outros imóveis rurais no município de Quedas do Iguaçu, no Paraná. Um deles conhecido como Três Elos, que inclui as áreas Três Elos I, II e III e Fazenda Campo Novo, e a então fazenda Dona Hilda. "Com as imissões na posse, o Incra procederá com a implantação de dois novos assentamentos para atender aproximadamente 350 famílias de trabalhadores rurais sem-terra", celebrava naquele mês o Instituto.
No dia 7 de abril deste ano, as famílias do Acampamento Dom Tomas Balduíno foram vítimas de um ataque armado, envolvendo seguranças contratados pela Araupel e supostamente policiais militares, com mais de 120 tiros, gerando a morte de dois integrantes do assentamento, Vilmar Bordim e Leomar Orback, e outros inúmeros feridos.
ORIGENS DO CASO
Mas o início do caso data de anos anteriores. Mais especificamente entre 1997 e 1998, quando uma área de 25 mil hectares do Título Pinhal Ralo, de então posse da empresa Araupel, foi desapropriada por ter sido considerada improdutiva. Naquele período, a ação gerou o assentamento de 1.550 famílias de trabalhadores rurais, na região de Rio Bonito do Iguaçu, cerca de 35 quilômetros do município hoje contexto da ação policial, Quedas do Iguaçu.
Não sem violência. Naquele ano, pistoleiros contratados pela empresa assassinaram dois trabalhadores Sem Terra. Foi quando começou o conflito rural nas terras paranaenses isoladas entre o tripé Cascavel, Guarapuava e Pato Branco. Hoje, em Pinhal Ralo vivem cerca de 7 mil pessoas somados ao complexo de assentamentos Marcos Freire e Ireno Alves.
Cinco anos depois, o contexto de violência acirrado motivou o Incra a intermediar a compra de mais 23 mil hectares do Título Rio das Cobras. Ao negociar o processo, o Instituto, junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, identificou que as terras já estavam viciadas pela grilagem.
Diante das ações do Incra, a Justiça Federal do Paraná determinou que a posse provisória do local estava sob o direito do Instituto. A partir daí, foi criado o Projeto de Assentamento Celso Furtado, com a ocupação de pouco mais de mil famílias, em Quedas do Iguaçu. Hoje, o assentamento é um dos principais impulsionadores de renda e produção da cidade paranaense.
Em maio do ano passado, a Justiça reconheceu definitivamente a situação de grilagem no Rio das Cobras, reconhecendo-a como pública e condenando a empresa Araupel. Mas a situação da Araupel não estava concluída e faltavam terras a solucionar o conflito agrário do interior do Paraná.
Isso porque uma área remanescente de cerca de 12 mil hectares faltava ser decidida pela Justiça do Paraná. O Incra, a União e a Procuradoria Federal do Paraná entraram com uma ação civil pública questionando o restante das terras do Rio das Cobras. Os recursos protocolados pela empresa Araupel e pelo poder público estendem a ação, sem ser concluída, até hoje.
Ao mesmo tempo, a empresa condenada por cometer grilagem chegou pediu a reintegração de posse em outra Justiça, a Estadual, para a retirada forçada das famílias do acampamento Herdeiros da Luta, em Rio Bonito do Iguaçu, em 18 mil hectares.
"Desde maio de 2014 aproximadamente 3 mil famílias acampadas, ocupam áreas griladas pela empresa Araupel. Essas áreas foram griladas e por isso declaradas pela Justiça Federal terras públicas, pertencentes à União que devem ser destinadas para a Reforma Agrária", afirmou o MST, em nota oficial.
Nesse meio tempo de incertezas jurídicas, ainda que com a intermediação do Incra e da Procuradoria Federal do Paraná, a região não secou a sangria do violento conflito rural. Em 2009, o Brasil chegou a ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo assassinato de trabalhador rural no Paraná.
RELAÇÕES POLÍTICAS
Para o Movimento, a ligação do caso no contexto de repressão em diversas regiões, além do Paraná, contra ativistas guarda relações com a política. "A empresa Araupel que constitui em um poderoso império econômico e político, utilizando da grilagem de terras públicas, do uso constante da violência contra trabalhadores rurais e posseiros, muitas vezes atua em conluio com o aparato policial civil e militar, e tendo inclusive financiado campanhas políticas de autoridades públicas, tal como o chefe da Casa Civil do Governo Beto Richa, Valdir Rossoni."
"O objetivo da operação é prender e criminalizar as lideranças dos Acampamentos Dom Tomás Balduíno e Herdeiros da Luta pela Terra, militantes assentados da região central do Paraná. (...) Denunciamos a escalada da repressão contra a luta pela terra, onde predominam os interesses do agronegócio associado a violência do Estado de Exceção", completou.
"COMPARSAS FORAM VIOLENTOS"
A dúvida se as ações realizadas em Quedas do Iguaçu, Francisco Beltrão e Laranjeiras foram realizadas em coordenação com os mandados cumpridos em Guararema, em São Paulo, e no Mato Grosso do Sul foi respondida pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
"A Polícia Civil de Mogi das Cruzes informa que recebeu da Polícia Civil do Paraná solicitação de ajuda para cumprir um mandado de prisão na cidade de Guararema", respondeu, em comunicado, às 17 horas desta sexta-feira.
Mas o motivo apresentado para as prisões e a entrada das 10 viaturas policiais no local mostra que o enredo sofreu mudanças para as ações deflagradas hoje, em criminalização de integrantes do movimento.
"A polícia paranaense indicou que Margareth Barbosa de Souza estaria na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Ela é procurada, junto a outros comparsas, pela prática de furto e dano qualificado, roubo, invasão de propriedade, incêndio criminoso, cárcere privado, lesão corporal, porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal", justificou em nota.
Ainda, contrariando o que mostram os vídeos e fotos do local, a Secretaria da Segurança Pública, pasta do governo de Geraldo Alckmin em São Paulo, afirmou que os policiais do GARRA, apesar de munidos com armas letais, "foram recebidos com violência" por "cerca de duzentas pessoas que estavam presentes e tentaram desarmar os agentes", o que justificaria que quatro deles ficaram feridos.
"Durante a ação, duas pessoas foram encaminhadas à Delegacia de Guararema para registro de Termo Circunstanciado de Desobediência, Resistência e Desacato", ainda informou a SSP ao GGN
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