Tereza Cruvinel: As feridas no legado de Ulysses Guimarães

Agencia Brasil
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Por Tereza Cruvinel - 06/10/2016

A memória de Ulysses Guimarães merece as honrosas lembranças do centenário de seu nascimento, neste 6 de outubro. Devemos lembra-lo agora e sempre, por sua integridade, por seu destemor diante da ditadura, por seu papel na transição e pelo empenho na produção de uma Constituição comprometida com a transformação do Brasil, que lhe custou o sacrifício da própria saúde, a presidência da Constituinte o exauriu fisicamente, seu vigor balançou mas logo ele soergueu-se para novas batalhas.  Faltam porém duas perguntas nos depoimentos, artigos e reflexões sobre o legado de Ulysses. A primeira: 28 anos depois da promulgação,  por um Ulysses trêmulo de emoção, mas com a voz firme trovejante de sempre, o que restou da Constituição Cidadã? A segunda: se vivo estivesse, o que diria Ulysses das feridas que vêm sendo abertas na democracia pela qual se bateu com energia e coragem, enfrentando até mesmo os cães da ditadura? O que diria ele sobre os ensaios em curso para um novo Estado de exceção, em que parcelas do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal e da mídia substituem as baionetas e os tanques da ditadura para impor suas convicções?

         Da Constituição de 1988, que não é obra individual de Ulysses mas é fruto de sua liderança e de seu compromisso nas praças, durante as lutas pela redemocratização, muito já foi descartado nestes 28 anos.  Sem Ulysses, a Carta teria sido outra, e o processo Constituinte talvez não tivesse sido o que foi: um pacto entre de todos os brasileiros, que através de corporações, sindicatos, associações, movimentos sociais, capital e trabalho, índios, brancos e negros, minorias e maiorias,  acorreram ao Congresso para apresentar demandas e negociar os termos dos artigos que inscreveriam direitos, garantias e deveres na Carta estava sendo escrita.  Vivi profissionalmente aqueles quase dois anos singulares e posso assegurar que nunca o Congresso mereceu tanto, como naquele período, ser chamado de “a casa do povo”. E tudo acontecia porque o presidente permitia. Mais que isso, fazia questão que houvesse participação popular no processo, e que de tudo a população fosse informada através do “Diário da Constituinte”, que ia ao ar todos os dias e era também impresso. “A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento,  à procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões”, lembrou ele no discurso da promulgação.

         Mas o que restou da “Constituição Cidadã”, que no dizer dele era a “constituição peregrina”, destinada a unir e incluir?  A última proposta de emenda constitucional proposta pelo Governo Temer tem o número 241. É a PEC que limita o gasto público ao índice da inflação do ano anterior, sacrificando políticas de educação e saúde, que a Constituição entronizou como direitos de todos e dever do Estado.  Salvo algum erro em minhas atualizações, a Constituição já sofreu 93 emendas. Muitas foram necessárias, muitos foram desconstruções do espírito da Constituinte que surgiu da urnas de 1986. Urnas que, por sinal, deram maioria absoluta ao PMDB de Ulysses. Outro PMDB o sucedeu, e este contribuiu para muitas alterações e agora patrocina uma que ofenderia Ulysses: a PEC 241 não apenas engessa o gasto público, comprometendo direitos constitucionais, como também legisla para o futuro,  invadindo competências de futuros presidentes, que terão de obedecer aos limites que agora serão impostos. Logo, a emenda alcança a vontade dos eleitores do futuro.  Continuamos tendo uma Constituição admirável em sua preocupação com o cidadão mas é exatamente este o ponto que vem sendo mutilado por sucessivas emendas. Tenho certeza de que Ulysses discordaria de muitas destas alterações dos anos recentes.

         Antes de passar ao segundo ponto,  os danos ao legado da democracia, transcrevo para os mais jovens a parte que, para mim, é a mais relevante de seu discurso na promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. 

A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. 

Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia, bradamos por imposição de sua honra.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”

          Quem conheceu seu sincero compromisso com a democracia liberal e o Estado de Direito sabe que ele não aprovaria muito do que vem sendo feito pelas instituições que a Constituinte empoderou para que fizessem justiça e não justiçamentos.  Para defenderem o interesse público e vigiarem os governantes, não para legitimarem conspirações. Ulysses demorou a se convencer de que era preciso fazer o impeachment de Collor. Não temia retrocesso, a volta do “caminho maldito”.  Temia rasgar a Constituição, associar-se a um processo que poderia fugir a seus regramentos.   Acabou se rendendo porque os crimes eram evidentes, o povo estava unido pedindo afastamento do presidente e o rito era legalmente inatacável.  Mas a torsão na interpretação do artigo sobre o impeachment para afastar Dilma Rousseff por pedaladas fiscais e decretos orçamentários, forçando um crime de responsabilidade inconvincente, ele não aprovaria.

         Deve-se principalmente ao PT e a um grupo de juristas, à frente Nelson Jobim, além do relator Bernardo Cabral, aos artigos que garantiram tanto poder e autonomia ao Ministério Público e  que conferiram à Polícia Federal seus poderes de polícia judiciária. O mesmo vale para as prerrogativas do Judiciário e o grande poder conferido ao STF como corte constitucional,  que pode não apenas dirimir questões relacionadas com a Carta, mas também interpretar o que ela não disse mas estaria implícito em sua alma jurídica. Ulysses tudo avalizou, empenhando-se também para que fossem bem explícita a condenação a qualquer forma de censura e limitação à liberdade de expressão.  

         São estes setores que hoje, em nome da moralidade, violentam garantias da Carta, como a presunção da inocência e o amplo direito de defesa. Limites vêm sendo quebrados para fazer anda um processo de “assepesia moral” que é necessário,  mas não com o sacrifício das balizas constitucionais. A democracia concebida por Ulyssses não compactuava com as práticas de trucidar, perseguir, condenar antes de provar a culpa. Não pressupunha o primado das convicções sobre a lei e as garantias individuais e coletivas.  Linchamentos morais, massacres midiáticos e outras barbáries dos tempos correntes fazem parte do “caminho maldito” do autoritarismo, que vem alargando sua presença no Brasil de hoje.

         E, muito menos, Ulysses compactuaria com o desmonte do Estado de Bem Estar Social, que lhe inspirou o apelido de “Constituição Cidadã” para a Constituição que promulgou. Mas desde os primeiros anos da década de 1990,   foram sendo dilapidados os fundamentos da sociedade mais justa e igualitária que a Constituição projetou. Emendas e mais emendas foram ajustando o texto às conjunturas, quando o contrário é que teria de ser feito. Se a Constituição é o legado maior de Ulysses, muito já foi feito contra ele.

         Cada um lembra o Ulysses que lhe interessa.   Eu o recordo como o último político liberal-social de uma escola que se acabou, com a degradação da classe política. Ele, que idealizava o Parlamento, onde fez toda sua carreira,  lamentaria a pobreza do  atual Congresso, reduzido a uma casa de homens de negócios sem pudor. Mas detestaria mais ainda esta campanha, liderada pelas mídia, de desqualificação da política como ação primordial na democracia, apesar dos agentes nefastos que nela sempre ingressarão em busca de interesses menores.  Nos anos 1970, a esquerda pregou o voto nulo em protesto contra a ditadura. Ulysses bateu-se, em todas as campanhas,  pelo que hoje poderíamos chamar de “voto útil” no MDB. Acreditava no voto e na vontade popular. Para explicitar a existência de uma alternativa civil aos militares, foi anti-candidato a presidente contra Geisel.  Em 1874, foi recompensado por uma estrondosa vitória de seu partido. O PMDB elegeu uma grande safra de senadores, impondo grande derrota à ditadura, além de ampliar sua bancada na Câmara.  O povo entendia que era preciso fortalecer a oposição para derrotar a ditadura, o que ainda levou dez anos para acontecer. “Fora da política, não há salvação”, dizia ele,. E aí estamos, com este oceano de votos nulos e brancos, decorrência da campanha anti-política e anti-políticos, apesar dos que não merecem o voto de ninguém.

         Eu o recordo com seus olhos sempre úmidos, seu laconismo cheio de significados que nós, jornalistas, precisávamos decifrar. Recordo, principalmente, seus discursos insubstituíveis. Ulysses sabia a hora de falar e a hora de calar. Nem oradores restaram no Parlamento de hoje.

         Pessoalmente, tenho duas grandes lembranças. Uma, quando meu filho Rodrigo nasceu e ele apareceu, com meu colega, amigo e depois compadre Jorge Bastos Moreno, para uma visita inesperada.  Eram 7 horas da manhã e eu não tinha sequer um pão de queijo para servi-lhes.  Mas o dia na política seria cheio e ele queria fazer a visita. Isso foi nos primeiros dias de janeiro de 1992. Disso restou a foto em que segura uma trouxinha azul, Rodrigo no saco de bebê.

         Meses depois, no curso do impeachment, eu e Moreno estávamos em seu gabinete, falando dos ataques que Collor lhe fizera. Ele os responderia à noite no programa de Jô Soaes, com tiradas espirituosas. Fora chamado de velho que vivia às custas de remédios. “Sou velho mas não sou velhaco. E meu remédio, compro em farmácias”. Naquela tarde, aniversário da Constituição e véspera do aniversário dele, Ulysses puxou da gaveta um exemplar da primeira edição da Constituição, dedicou-a e disse. “Leve para o menino. Entregue quando ele crescer”.

         Eu o fiz recentemente, quando o menino ingressou na carreira diplomática. Ele a guarda com muito orgulho e zelo. Ulysses morreu uma semana depois, no dia 12. Dia das crianças. Ao contrário de Severo Gomes, Henriqueta e Dona Mora, que viajavam no mesmo avião, nunca foi encontrado.  Devemos sempre procurar Ulysses, seu legado, seu exemplo.

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