O retorno da crítica (recalcada) contra os rentistas: Veblen no capitalismo rentista do século 21

21/10/2016, Michael Hudson, Counterpunch

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Em 2012, realizou-se em Istanbul uma conferência sobre Thorstein Veblen.[1] Lá estive, patrocinado por um sindicato socialista de trabalhadores, a Chamber of Electrical Engineers [Câmara dos Engenheiros Eletricistas]. Nos perguntaram por que não nos concentrávamos em Marx? Respondi que a causa está em que Marx morrera uma geração antes, e a principal crítica do capitalismo financista foi trabalho de Veblen. Esse livro Absentee Ownership and its Discontents: Critical Essays on the legacy of Thorstein Veblen, (do qual extraí as observações seguintes) é uma série de ensaios, inclusive meus e de outro amigo, Michael Perelman. – MH
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"Existe uma convicção cega e ingênua (...), no sentido de que, no fundo, os interesses das massas coincidem com os interesses pecuniários dos homens de negócios que vivem na esfera do mesmo conjunto de normas governamentais" (Thorstein Veblen, A Teoria da Empresa Comercial, 1904, traduzido ao port. como Teoria da Empresa Industrial)*

 Simon Patten recordou em 1912 que sua geração de economistas norte-americanos – a maioria dos quais estudara na Alemanha nos anos 1870s – aprendeu que Principles of Political Economy (1848) de John Stuart Mill era o ponto mais alto que o pensamento clássico jamais atingira; e que monopólios têm de ser estatizados ou é preciso regular os preços para que reflitam reais custos de produção. Contudo, Patten acrescentou, a filosofia reformista de Mill "revelou-se não a meta, mas um entreposto de meio de caminho" em direção às reformas da Era Progressista, sobretudo ou nacionalizar integralmente a terra ou taxá-la integralmente, e ou nacionalizar os monopólios ou, no mínimo, regular os preços de modo a pô-los em linha com custos reais de produção. Mill foi "pensador que se ia tornando socialista sem ver o que a mudança realmente significava," Patten concluiu. 

"A época do século 19 não termina com as teorias de Mill, mas com os sistemas mais lógicos de Karl Marx e Henry George." Mas George não passava de jornalista de celebridades, antiacadêmico; a abordagem clássica da economia política por tudo isso evoluiu, sobretudo, pelo trabalho de Thorstein Veblen.

Como Marx e a crescente agitação socialista, as ideias de Veblen ameaçaram o que ele chamou de "os interesses escusos" [ing. "the vested interests]." O que tornava tão perturbadora a análise de Veblen era o muito que ele conservava do passado. A economia política clássica havia usado a teoria trabalhista do valor [orig. the labor theory of value] para isolar os elementos do preço que não tinham contraparte em custos necessários de produção. Renda econômica [ing. Economic rent] – o excesso do preço, acima de seu "custo real" – é renda não justificada (mais literalmente, "renda não merecida" [ing. unearned income]). É um sobrepreço pelo acesso à terra, minérios ou outros recursos naturais, crédito bancário ou outras necessidades básicas que são monopolizadas. Esse conceito de renda não justificada/não merecida como elemento não necessário do preço levou Veblen a se concentrar sobre o que hoje se conhece como engenharia financeira, especulação e alavancagem de dívida. 

A percepção de uma porção crescente da renda e da riqueza é "almoço grátis" não justificado foi o ponto de decolagem para que Veblen pusesse a propriedade imobiliária e o esquema de financiamento no centro de sua análise, num tempo em que os economistas mainstream estavam abandonando essas áreas de estudo. 

A exclusão de Veblen, hoje, dos currículos acadêmicos, é parte da reação contra o programa de reforma social da economia política clássica. No tempo em que começou a publicar, nos anos 1890s, a economia acadêmica andava às turras com uma contrarrevolução patrocinada por grandes proprietários de terra, banqueiros e monopolistas que negavam que existisse a tal de renda não justificada. A nova corrente mainstream pós-clássica aceitava os direitos existentes e os privilégios de propriedade como um "dado". Em contraste com o argumento de Veblen, para quem a economia só tratava da organização de esquemas predatórios, aquela abordagem culminou com a Escola de Chicago de Milton Friedman e a defesa que ali se construiu do argumento pró-rentista: "Não existe almoço grátis."

Essa negação abrupta rejeitava os três séculos precedentes da teoria clássica do preço e valor, junto com as suas conclusões políticas que promoviam a taxação da terra e de outros recursos naturais e a reforma financeira. Saiu de cena também o excesso rentista na forma de modalidades predatórias e não produtivas de buscar riqueza. O mainstream pós-clássico ameaça toda e qualquer renda dita "justificada/merecida" [ing. "earned"], inclusive a dos rentistas

Sem os conceitos clássicos de trabalho, crédito ou investimento não produtivo, os manuais de hoje descrevem a renda como uma recompensa pela contribuição de cada um à produção; e a riqueza é "economicizada" como resultado de esforço de investimento produtivo de alguém, não como não justificado, não 'ganho' ou predatório almoço grátis. Essa virada na teoria modelou as [contas] aparentemente empíricas National Income and Product Accounts para que entrassem num raciocínio circular que trata os recipiendários de renda e lucros como se prestassem algum serviço, uma contribuição econômica igual ao que quer que os rentistas recebam como "ganhos". Não há categorias de renda não ganha (renda não justificada) ou ganhos especulativos no preço de ativos.

Veblen descreveu os maiores setores da economia, onde se fazem fortunas rápidas, como setores que só têm a ver com organizar oportunidades para buscar renda, para conseguir ganhos sem custo real. Considerou a utilidade psicológica como utilidade social. Em contraste, para alimento ou outras necessidades corporais saciáveis caracterizadas por utilidade marginal decrescente – e.g., comer e ficar saciado –, seu conceito de consumo conspícuo enfatizava os impulsos insaciáveis para ascender no status social. O desejo de consumir bens é caracterizado por modismos, desejo por bens mais caros como troféus a serem exibidos da própria riqueza. 

Resultado disso era a vulgaridade mercenária dos Babbitts, que fazem da cultura uma arena para modas mutáveis, tudo para impressionar outros que têm as mesmas sensibilidades ocas ou rasas. O fator principal para definir o status era o bairro onde se localizasse a moradia. Moradia não era simplesmente espaço básico para viver, como "valor de uso". Estabelecia a posição de cada um na sociedade, devidamente inflada por promoção cívica, subsídio público e gastos em infraestrutura.

Propriedade imobiliária: "O Grande Jogo Norte-americano" 

Descrevendo a propriedade imobiliária como "o grande jogo norte-americano", Veblen focou o modo como preços futuros eram aumentados, sobre os valores presentes mediante publicidade e promoção. "Propriedade imobiliária é um empresa em 'futuros', criada para arrancar alguma coisa do nada dos desatentos (e gente experiente ensina que 'nasce um otário por minuto')." Fazendeiros e outras famílias do meio rural das terras circundantes sonham "com o tempo quando a comunidade, satisfazendo todas as necessidades, permitirá que eles realizem os valores inflados de sua propriedade", quer dizer, encontrem um otário "que acredite em qualquer coisa que eles digam e torne-se devedor deles, na quantia de dinheiro que eles digam que vale o imóvel que o otário compre." 

Toda a operação, das propriedades individuais à cidade como um todo, é "uma empresa de vendas", da qual a regra é a colusão.

Varejistas em pequenas cidades coludem para explorar fazendeiros, prática que só foi arranhada com a disseminação dos catálogos para vendas pelo correio. Mas o poder de monopólio é consumado, atingido de modo mais rigoroso, no banking local. Muitos empréstimos existem para que as hipotecas inflacionem os preços da terra. "E o banqueiro está sob a necessidade – 'necessidade interior', como dizem os hegelianos – de arrancar tudo que possa e de se proteger contra todos os riscos, à custa de qualquer um ao qual a coisa interesse, por quantas obrigações e cláusulas sejam necessárias para assegurar seu ganho líquido em qualquer caso."

Nas cidades maiores os preços da terra subiam, como efeito da prosperidade geral, e da facilidade do acesso a financiamentos hipotecários, enquanto a inversão pública de dinheiro em estradas, trens subterrâneos e sistemas de ônibus, parques, museus e outras atividades de prestígio eram organizadas para fazer aumentar os valores da área. Tais práticas levaram Veblen a criticar Clark e também Marshall por ignorarem a dimensão financeira "pecuniária" da vida. Foi grave erro de omissão no novo mainstream, ao lado dos monopólios e grandes fraudes iniciadas em tempos coloniais destacadas pela fraude da terra Yahoo, logo no início da República, e que culminou com as doações de terras públicas a empresas de estradas de ferro [ing. railroad land grants]. 

Henry Liu descreve o modo como Veblen enfatizou o papel predatório da alta finança: "Veblen introduziu uma distinção básica entre a produtividade da 'indústria' dirigida por engenheiros capacitados, que fabrica bens de real utilidade, e o parasitismo do 'business,' que existe só para gerar lucros para uma classe ociosa que se engaja em 'escandaloso consumo' [ing. 'conspicuous consumption']. A única contribuição econômica que a classe ociosa faz é 'lixo econômico' [ing. 'economic waste'], atividades que contribuem negativamente para a produtividade. Por via de consequência, Veblen viu a economia dos EUA transformada em ineficaz e corrupta por homens do 'business' que se põem perversamente numa posição indispensável na sociedade."

Veblen contra a academia convertida em business 

Veblen criticou os economistas de academia por se terem tornado objeto de "incapacidade adquirida" [ing. "trained incapacity"], resultado de se terem convertido em factótuns para defender os interesses rentistas. Escolas de business pintavam um quadro irrealistamente 'feliz' da economia, ensinando técnicas financeiras, mas deixando de fora da conta a necessidade de reformar as práticas e instituições da economia. 

Numa conclusão em que relembra Higher Education in America de Veblen, Herman Kahn descreve o modo como "a pressão pelos pares leva especialistas a não aceitar explicações que desviam dos conceitos aceitos: a incapacidade educada muitas vezes faz referência a uma incapacidade adquirida ou aprendida para compreender ou, mesmo, para perceber um problema, muito menos alguma solução. A expressão original "incapacidade adquirida" vem do economista Thorstein Veblen, que a usou para se referir, dentre outras coisas, à incapacidade de pessoas com training de engenharia ou sociologia, para compreender certas questões que as mesmas pessoas seriam capazes de compreender, se não tivessem tido aquele específico training."

Kahn acrescenta que esse fenômeno ocorre especialmente nas "universidades líderes nos EUA – particularmente nos departamentos de psicologia, sociologia e história, e em certa medida em todas as Humanidades em geral. Indivíduos formados nesse meio frequentemente têm dificuldades nos confrontos com a realidade, mesmo que em graus relativamente simples." O problema é maior, é claro, na economia.

De Marx a Veblen 

O socialismo inicial (e quase todo não marxista) visava a alcançar maior igualdade, sobretudo por taxar a renda rentista não justificada/merecida e mantendo sob domínio público os recursos naturais e os monopólios. O foco marxista na luta de classes entre os empregadores e os trabalhadores da indústria relegou a crítica contra os rentistas a uma posição secundária, deixando essa luta para reformadores mais burgueses. Poupança financeira era tratada como uma acumulação de lucros industriais, não como o fenômeno autônomo que o próprio Marx enfatizou no Vol. 3 de Capital

A começar por Lênin, seguidores de Marx discutiram o capital financeiro principalmente em referência aos impulsos do imperialismo. A ruína de Pérsia e Egito era notória, e credores instalaram coletores de impostos nas aduanas das colônias europeias na América Latina. O principal problema previsto foi a guerra gerada por rivalidades comerciais, no processo de esculpir o mundo de então. 

E coube a Veblen enfrentar o papel corrosivo, mas cada vez mais dominante dos rentistas, que extraem sua riqueza pela imposição de cargas abusivas ao restante da sociedade. A campanha pela taxação da terra e até a reforma financeira sumiram da discussão popular, com socialistas e outros reformadores tornando-se cada vez mais marxistas e, portanto, cada vez mais focados na exploração industrial do trabalho. Veblen descreveu como as classes rentistas estavam em ascensão – em vez de serem reformadas, taxadas até ficarem inviáveis, ou socializadas. 

Seu Theory of Business Enterprise (1904) enfatizou a divergência entre capacidade produtiva, o valor registrado de ativos de negócios e seus preços no mercado de ações (o que hoje se conhece como a razão Q do preço de mercado para o valor registrado). Viu o crescente excesso financeiro como fator que estava levando à bancarrota e à liquidação de empresas. A indústria ia-se tornando financializada, pondo os ganhos financeiros à frente da produção. Os gerentes financeiros contemporâneos usam os lucros não para investir, mas para comprar ações de sua própria empresa (o que faz subir o valor de mercado das ações de que eles mesmos são proprietários) e pagar como dividendos, e até tomam empréstimos para se pagarem eles mesmos. Os fundos hedge tornaram-se notórios por depenar patrimônio e carregar as empresas de dívidas, deixando só ruínas e bancarrota pelo caminho, no que George Ackerlof e Paul Romer caracterizaram como "saqueio". 

Ao enfatizar o modo como a "predação" financeira estava sequestrando o potencial tecnológico da economia, a visão de Veblen foi tão materialista e tão culturalmente ampla quanto a dos marxistas, e igualmente adversária do status quo

A inovação tecnológica estava reduzindo os custos, mas alimentando monopólios, com os setores Finance, Insurance and Real Estate (FIRE) [Finanças, Seguros e Propriedade Imobiliária] unindo forças para criar uma simbiose financeira cimentada por acordos políticos costurados dentro dos governos – e uma trivialização da teoria econômica, porque opera para não enfrentar o fracasso das sociedades, que nunca realizam a seu favor o próprio potencial tecnológico. 

Os frutos da produtividade crescente são usados para financiar "barões ladrões" que não têm melhor uso a dar à sua riqueza que reduzir grandes obras de interesse público ao status de troféus de propriedade; e que alcançam o status de classe ociosa ao financiarem escolas de comércio e universidades 'de negócios' [no Brasil essas, sim, mas também quantidade imensa de Faculdades de Direito privadas, como, dentre outras e só para citar uma, o Instituto de Direito Público de São Paulo], para erigir um retrato autocongratulatório, mas falso, do comportamento dos proprietários ladrões de riqueza social.

Significação de Veblen hoje

Como herdeiros da economia política clássica e da escola histórica alemã, os institucionalistas norte-americanos conservaram a teoria do rentismo e a ideia de renda não justificada/merecida, corolário dela. Mais que qualquer outro institucionalista, Veblen enfatizou a dinâmica dos bancos financiando a especulação imobiliária, e Wall Street manobrando para organizar monopólios e trustes. Mesmo assim, apesar da popularidade de seus escritos entre o público leitor, sua contribuição permaneceu isolada das correntes acadêmicas mainstream, e Veblen não deixou "escola". A estratégia dos rentistas foi tornar invisível a extração de renda não justificada/merecida, tirá-la do centro das atenções onde estivera na economia política clássica. Mal se vê hoje o quanto o lucro extraído pelo rentismo e seguradoras já ultrapassa todos os custos de produção, ainda que os preços assim gerados estejam jogando as economias financializadas para fora dos mercados mundiais.

O estreitamento do monetarismo e do neoliberalismo estilo Chicago deixou a disciplina econômica praticamente no mesmo estado que Max Planck descreveu para a Física, de Maxwell a Einstein: o progresso avança, um funeral de cada vez. Os velhos conservadores vão morrendo, abrindo caminho para que sucessores mais progressistas assumam o timão. 

Mas o que torna diferente a economia de hoje, é que realmente ajuda olhar para trás, para a época antes de o setor financeiro e seus interesses rentistas aliados terem sequestrado a disciplina. E quem mais sistematicamente analisou esse processo foi Veblen, há quase um século. Para avaliar a importância disso, basta ver que os marxistas e outros críticos mais heterodoxos efetivamente incorporaram a teorização de Veblen à sua própria visão de mundo.*****



[1] Em português, encontramos sobre ele o que se lê em http://www.corecon-rj.org.br/anexos/C6CA36E075977D806AB2A8FC4B5EF6C4.pdf [NTs]
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores [NTs]

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