‘Feminicídio é a ponta do iceberg’, diz pesquisadora

Mobilizações como o 'Ni una menos', após assassinato na Argentina, alertam a sociedade


Mulheres fazem protesto contra estupro no Brasil
Mulheres fazem protesto contra estupro no Brasil
por Rebeca Letieri * - no Jornal do Brasil - 22/10/2016

Segundo o El País, desde o assassinato da adolescente, pelo menos outras três mulheres foram mortas na Argentina: Silvia Filomena Ruiz foi esfaqueada aos 55 anos por seu ex-marido; Marilyn Méndez também morreu esfaqueada, aos 28 anos e grávida de três meses, pelo ex-namorado, e Vanesa Débora Moreno, morta pelo marido, aos 38 anos. No ano passado, a Suprema Corte da Argentina registrou 235 feminicídios, contra 225 em 2014. 
Catarina Muñoz conta o caso de sua filha através de uma página do Facebook, Justicia por Suhene, que tem mais de 10 mil curtidas. A brasileira Suhene Muñoz tinha 26 anos e morreu ano passado, no hospital em Buenos Aires, após ter sido espancada pelo ex-namorado. 

“Foi numa briga, após comemorarem um ano de noivado, que ele se transformou e começou a espancá-la. Além de ser muito maior e mais forte que ela, ele sabia lutar boxe, e deixou traumas tão grandes, como trombose cerebral e hidrocefalia, que levou minha filha à morte, depois de meses tentando tratamento”, emocionou-se Catarina. 
Estatísticas
Casos como o de Lucía e Suhene se repetem por toda a América Latina. Em maio, ainda deste ano, uma vítima de estupro coletivo acordou dopada e nua em uma comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro. A jovem de 16 anos foi violentada por, pelo menos, 30 homens. Seu corpo machucado foi exibido nas redes sociais por alguns dos criminosos, por meio de fotos e vídeos que, além de expor a vítima, mostravam a frieza e a banalidade do ato praticado.
Vanessa Fogaça Prateano é jornalista pela UFPR, pesquisadora de feminicídio e consultora de Mídia e Gênero da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero - Cevige da OAB Paraná. Ela acredita que a visibilidade de casos como esses aumentou, o que não quer dizer que tenha aumentado o número de ocorrências. Ainda assim, a curitibana afirma que ainda há muito a evoluir. 
“O feminicídio é a parte mais extrema de uma serie de fenômenos que inferiorizam a mulher. Antes tem toda uma série de violências que são psicológicas, morais, simbólicas, midiáticas. Ele é a ponta do iceberg. Hoje, existem 15 países na America Latina, incluindo o Brasil, que criminalizam o feminicidio. As pessoas estão mais informadas, mas acho que há ainda um longo caminho pela frente. O problema é que nós não somos educados para as questões de gênero, na escola, na família, nem na justiça”, disse Vanessa.
O crime mobilizou pessoas por todo país e levantou questionamentos sobre a “cultura do estupro”. O sentido da expressão, questionada por muitos, não quer dizer, necessariamente, defender o ato em si, mas um conjunto de valores e pontos de vista naturalizados com relação à mulher. Valores que determinam um padrão de beleza, prescrevem certo tipo de comportamento e defendem confinamento ao espaço doméstico, ao mesmo tempo em que estampam o mal-estar da sociedade com relação ao espaço que as mulheres vêm ocupando cada vez mais. 
“As pessoas tem muito receio da expressão, porque elas associam cultura ao aspecto positivo. A cultura do estupro são representações sociais que a gente têm do fenômeno do estupro. São idéias que vamos reproduzindo de geração para geração a respeito do que é o estupro. Isso demonstra como as mulheres não têm autonomias sobre seus próprios corpos e vidas. Quando ocorre um femincídio é a mesma lógica, porque ela não tem autonomia para decidir que ela não quer mais estar naquele relacionamento”, destacou a militante. 
Em 2014, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que 65,1% dos brasileiros acreditavam que mulheres que mostram o corpo "merecem ser atacadas". O dado, depois corrigido para 26%, provocou uma enxurrada de manifestações e uma campanha em que mulheres e homens expuseram seus corpos em fotos acompanhadas da hashtag #EuNãoMereçoSerEstuprada. 
Uma pesquisa mais recente (21/09/2016) divulgada pelo Instituto Datafolha indica que um em cada três brasileiros acredita que, em casos de estupro, a responsabilidade é da mulher por “não se dar ao respeito”. São 33,3% da população culpabilizando a vítima pelo crime. A pesquisa, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entrevistou, entre os dias 1º e 5 de agosto, 3.625 pessoas de 217 cidades do Brasil. 
“No geral, o Brasil está começando a coletar essas estatísticas, a gente não sabe ainda as especificidades dela. As mulheres negras, por exemplo, morrem mais do que as brancas. Tem que ter políticas públicas específicas para cada segmento e precisamos de mais dados”, comentou Vanessa.
Delegacias especializadas
São 30 anos, mas às vezes parece que foi ontem que surgiu a primeira Delegacia Especial de Atendimento à Mulher do Rio.  Hoje, o Rio de Janeiro conta com 14 DEAMs em todo o estado. São três no município do Rio, quatro na Baixada Fluminense, cinco no Interior do Estado, uma em Niterói e uma em São Gonçalo. Mas para Catarina e Vanessa, ainda existe um despreparo nos atendimentos. 
No Brasil, o caso de estupro coletivo intensificou os protestos de rua, ao mesmo tempo em que cresciam os protestos contra a condução do caso pela polícia carioca: o delegado responsável estaria constrangendo a vítima ao lhe perguntar detalhes sobre sua vida íntima. Finalmente, a ocorrência passou para a delegacia especializada em crimes contra crianças e adolescentes conduzido por uma mulher. 
“Aqui na Argentina, os policiais perguntam o que você fez para merecer apanhar. Quando minha filha foi vítima, e fomos até a delegacia denunciar o espancamento, ela foi colocada numa cela, enquanto ele [o agressor] que pagou para o policial ficar calado, tomava café com o comandante. Até hoje eu tento fazer com que a justiça reconheça a morte da minha filha como violência de gênero, mas ele continua solto e foragido fora do país, um covarde”, exaltou-se Catarina Muñoz. 
“Não existe capacitação de gênero para essas pessoas. Hoje a lei diz que o feminicídio se enquadra na violência domestica, ou em outras circunstâncias que demonstram um menosprezo ao sexo feminino. Então em muitos casos, ela só vai investigar os casos que se enquadram na lei Maria da Penha, ou seja, quando ela conhecia o agressor. Os casos que não se enquadram em violência doméstica sofrem certa invisibilidade”, disse Vanessa, para quem a linguagem e estereótipos comuns da sociedade também têm influência direta na maneira como as delegacias especializadas atuam. 
“As pessoas ainda usam o termo crime passional, ou seja, aquela ideia de que o crime ocorre porque o homem amava a mulher. Não é amor, é feminicídio. Então até a nossa linguagem não acompanha o nosso tempo, e nem nossa legislação. E a DEAM não está apartada dessa sociedade.”, completou. 
* do projeto de estágio do JB

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