Em nota, MST rebate editorial do Estadão


  
No mesmo julgamento, os ministros negaram o pedido de soltura do agricultor Luis Batista Borges e o pedido de cancelamento dos mandados de prisão em aberto contra os militantes Diessyka Lorena Santana e Natalino de Jesus, também de Goiás. Os quatro são acusados em um processo que busca enquadrar o MST como organização criminosa.

Segundo o Movimento, o jornal distorceu diversos fatos em torno do julgamento, dando a entender que a Sexta Turma do STJ decidiu, por unanimidade, que a Lei n° 12.850/2013 enquadrou o MST enquanto organização criminosa. Porém, a decisão do julgamento quebrou "a espinha dorsal da própria denúncia que o Ministério Público de Goiás ofereceu contra os quatro integrantes do MST", diz um trecho da nota.



"O Superior Tribunal de Justiça, nessa decisão, mostra o caminho a ser seguido por todos os juízes brasileiros, em matéria de aplicação da teoria do domínio do fato: um militante social não pode ser considerado responsável por crimes, pelo simples fato de ser um militante social. O Estadão não entendeu nada...", denunciam.

Confira:


Resposta ao editorial do Estadão de 24 de outubro de 2016 
O editorial do Estadão de 24 de outubro, segunda-feira, "O MST e a Lei 12.850/13", tratou do julgamento, pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), do habeas corpus impetrado em favor de quatro militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). O texto requer esclarecimentos e correções aqui apresentados na sequência.

1) Não é exata a afirmação de que a Sexta Turma do STJ "decretou a prisão de três dos integrantes do MST". Aqui há dois erros. Primeiro, erro de narrativa do fato. As quatro ordens de prisão partiram de Juiz da Comarca de Santa Helena de Goiás e foram mantidas pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás. Essa é a razão pela qual foi impetrado habeas corpus no STJ. Segundo, há erro jurídico na informação, pois, em julgamento de habeas corpus, a prisão pode ser mantida ou revogada, mas nunca decretada. Não se decreta prisão em julgamento de habeas corpus – que é ação constitucional de defesa da liberdade de ir e vir (art. 5º, inc. LXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil).

2) Errou também o Estadão ao afirmar que as "invasões" ocorreram numa fazenda de propriedade do senador Eunício Oliveira (PMDB-CE). Não. A fazenda relacionada à decisão comentada no editorial nada tem a ver com a propriedade registrada em nome do senador, Agropecuária Santa Mônica, que fica em outra região do mesmo Estado, entre os municípios de Alexânia, Abadiânia e Corumbá de Goiás, autodeclarada improdutiva e parte integrante de um complexo de mais de 21 mil hectares. A fazenda Santa Mônica foi, no ano passado, ocupada por mais de três mil famílias Sem Terra. Fruto dessa mobilização, acompanhada de denúncias contra desmatamento ilegal e especulação fundiária, é o processo de assentamento de certa de 500 famílias em diferentes regiões do Estado e a inserção de mais de duas mil e quinhentas no programa de assentamento até o início de 2017. As famílias Sem Terra seguem firmes na reivindicação de que a Agropecuária Santa Mônica seja destinada à reforma agrária.

O habeas corpus citado no editorial tem relação com outro latifúndio localizado no município de Santa Helena de Goiás. Reocupada por cerca de mil famílias de trabalhadores rurais sem terra, a fazenda Várzea das Emas está na mesma propriedade onde se situa a Usina Santa Helena – atualmente em processo de recuperação judicial e parte de um conglomerado de empresas pertencentes ao grupo Naoum, dono de outras usinas falidas em Mato Grosso e de hotéis em Brasília e região. A dívida total da Usina gira em torno de 1,2 bilhão e o imóvel já foi adjudicado em ação de execução fiscal promovida pela União, para quitar parcela insignificante de dívida de seus proprietários com a Fazenda Pública Federal. Após a adjudicação, a Fazenda Pública expressou interesse em destinar o imóvel ao INCRA, para realização da reforma agrária.

3) Outro equívoco contido no editorial é a afirmada oposição entre o Código Penal e a Lei n° 12.850/2013, passando a falsa ideia de que uma lei houvesse sido superada pela outra. O Código Penal é apresentado como "anacrônico", enquanto a Lei de 2013 é saudada como "inovadora". Nesse ponto, o editorial desinforma e comete uma sucessão de erros cuja gravidade denota verdadeiro desprezo pelo campo jurídico, como se esse fosse "terra de ninguém" a ser explorada por qualquer aventureiro, despreocupado com o grau de ignorância – alheia ou própria – a respeito dos conceitos legais.

Esse é o principal erro do editorial, pois, ao contrário do que dá a entender, a Sexta Turma do STJ decidiu, por unanimidade, que a Lei n° 12.850/2013 não se aplica ao caso, quebrando a espinha dorsal da própria denúncia que o Ministério Público de Goiás ofereceu contra os quatro integrantes do MST.

O Ministro Rogério Cruz destacou que "participar de movimentos sociais, entre eles o MST, não é crime". A Ministra Maria Thereza de Assis Moura se referiu à "importância dos movimentos sociais". O Ministro Antonio Saldanha também se manifestou sobre a importância dos movimentos sociais no cumprimento da Constituição da República e no contexto democrático. Todas as falas estão registradas em gravações e notas taquigráficas, documentos que podem – e devem ser – consultados pelo jornal Estadão. A manutenção da prisão de três entre os quatro militantes do movimento não teve, portanto, nenhuma relação com a tese da organização criminosa que, ao contrário, foi afastada pela Sexta Turma.

A decisão de manter a prisão preventiva em desfavor dos outros três acusados está amparada em outros argumentos e fatos que não a "organização criminosa" e se baseiam em relato incipiente da Polícia local. Enquanto o habeas corpus tramitava no STJ, os militantes acusados eram ouvidos pela primeira vez no juízo onde corre o processo. Uma série dessas acusações já se mostrou infundada. Os advogados do MST estão esperançosos de que as prisões remanescentes sejam anuladas no Supremo Tribunal Federal, em consequência de novos elementos de prova já colhidos no juízo da acusação.

O editorial do Estadão, ele sim, distorce os fatos e interpreta mal o sentido da decisão do STJ, ao sugerir a ideia de que a manutenção de três das quatro prisões está fundamentada na acusação de prática do crime de "constituir ou integrar organização criminosa" (art. 2º combinado com art. 1º, § 1º, da Lei nº 12.850/2013).

Na ação penal que tramita perante o juízo criminal da Comarca de Santa Helena de Goiás, quatro ativistas do movimento são acusados de constituírem e integrarem organização criminosa. Nos termos da denúncia, essa organização seria o próprio MST.

A acusação é insustentável. Toda organização criminosa tem por objetivo a obtenção de vantagem ilícita. Este é um elemento indispensável à sua caracterização, é exatamente o que determina a natureza da organização definida no art. 1º, da Lei nº 12.850/2013. Trabalhadores rurais sem terra que participam de organização – o MST – cujo objetivo é reivindicar a reforma agrária não podem ser, nessa condição, considerados "integrantes de organização criminosa". A melhoria das condições de vida de milhares de trabalhadores rurais é uma causa social, não é crime. O fim visado pelo movimento, a reforma agrária, não é apenas lícito, mas justo e inteiramente adequado à consecução de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, da Constituição Federal).

4) Por fim, mas não menos grave, é o erro consistente em dizer que "a Lei 12.850/13 pressupõe a teoria do domínio dos fatos, com base na qual qualquer militante de uma organização criminosa pode ser acusado em qualquer inquérito".

É exigível de jornalistas que escrevem sobre medidas na área econômica qualificação e conhecimento da área, como condição para se manifestarem sobre temas dessa natureza. A mesma exigência deveria orientar sua incursão nos assuntos jurídicos. Nem a teoria do domínio do fato é uma exclusividade da Lei das Organizações Criminosas, nem o domínio do fato é esse curinga que o editorial apresenta contra "todo e qualquer militante" de uma "organização criminosa", como se "militante" de uma causa social fosse sinônimo de membro de organização criminosa. Essa confusão foi desfeita pelo STJ no julgamento do habeas corpus, mas o editorial do Estadão insiste em mantê-la.

A teoria do domínio do fato ainda não foi bem compreendida por todos os juristas e já é "explicada" pelos jornalões. Mais uma vez o desrespeito ao campo jurídico e a desatenção às falas dos Ministros do STJ. O domínio do fato, como conceito penal, não corresponde ao senso comum. É preciso ter muita cautela para transitar nesse campo minado. Tudo o que a teoria do domínio do fato não é foi sintetizado pelo "achismo" do editorial do Estadão. Não se pode interpretar uma decisão jurídica sem procurar entender alguma coisa dos conceitos envolvidos. A decisão dos Ministros da Sexta Turma do STJ prestigia a melhor aplicação da teoria do domínio do fato, no sentido de que ela não pode ser interpretada como uma fórmula aberta, sem conteúdo e sem conexão com todas as garantias penais e processuais em vigor. A teoria existe e deve ser utilizada não para promover a criminalização a qualquer preço, como dá a entender o editorial do Estadão, mas exatamente para limitar e poder punitivo e controlar o abuso acusatório, com base nos princípios penais constitucionais em vigor.

Ao conceder alvará de soltura a José Valdir Misnerovicz, histórico militante do MST, de renome nacional e internacional, o STJ partiu da premissa de que não há responsabilidade objetiva em direito penal, esconjurando o mau uso da teoria do domínio do fato.

O Superior Tribunal de Justiça, nessa decisão, mostra o caminho a ser seguido por todos os juízes brasileiros, em matéria de aplicação da teoria do domínio do fato: um militante social não pode ser considerado responsável por crimes, pelo simples fato de ser um militante social. O Estadão não entendeu nada... 


Fonte: MST

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