Umberto Eco e o fascismo em trajes civis
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Em abril de 1995 Umberto Eco proferiu uma conferência na Universidade de Columbia, posteriormente publicada com o título de “O fascismo eterno”, em “Cinco escritos morais”. O texto de Eco guarda espantosa atualidade, especialmente pela listagem de características do que ele chamou de Ur-Fascismo ou fascismo eterno.
Uma dessas características é o irracionalismo. “A cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas”. Parece que Eco falava sobre o Brasil quando alertava para o uso de expressões como “as universidades são um ninho de comunistas”. O “escola sem partido” é bem um exemplo desse irracionalismo fascista. Os ataques a artistas e intelectuais (quase sempre com acusações de serem beneficiários da Lei Rouanet) e a defesa dos valores tradicionais da família ajustam-se perfeitamente a essa noção de irracionalismo.
“Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição. (...) O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. (...) O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.” Os hidrófobos ataques à política de cotas, apenas para ficarmos em um exemplo, mostram a força dessa característica no momento atual. Não há nenhum respeito à diferença, seja ela no campo do pensamento ou do comportamento social. Se o pensamento ou o comportamento não estão dentro daquilo que se estabeleceu como padrão eles são diferentes, eles estão em desacordo e eles podem ser considerados como traição.
Ao lado disso, há a mitificação do herói. O Ur-Fascismo busca incessantemente o herói. Joaquim Barbosa (que já foi e deixou de sê-lo), Sérgio Moro (com suas sugestivas camisas pretas), Deltan Dallagnol (que beira o fanatismo religioso e se intitula seguidor de Jesus e Procurador da República por vocação), são exemplos desses heróis, incensados por uma horda irracional de seguidores. Umberto Eco alerta que, “como tanto a guerra permanente como heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais”. Eco enxerga aí a origem do machismo, implicando desdém pelas mulheres e condenação de hábitos sexuais. Machismo, misoginia, homofobia, transfobia, dentre outros tão atuais, são características do Ur-Fascismo.
“O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica porque uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.” Mais uma vez a formulação de Umberto Eco encontra guarida na atualidade brasileira. A virulência com que parcelas consideráveis da chamada classe média atacam o Bolsa Família, o Mais Médicos ou qualquer outra política compensatória ou de inclusão revela o seu medo do que Eco chama de grupos subalternos e a sua conversão radical ao Ur-Fascismo.
Para Eco, o Ur-Fascismo baseia-se em um “populismo qualitativo”. Alertava ele que “em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo na TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a ‘voz do povo’”. Esse “populismo qualitativo” serviu, por exemplo, para o golpe contra Dilma. Os mais de 54 milhões de votos foram ignorados por conta da “voz das ruas”. A manipulação grosseira dos poderosos setores da mídia, aliada aos interesses escusos de parcela do parlamento, com a cumplicidade cínica do judiciário e do Ministério Público Federal, fez com que a “opinião pública” fosse mais importante que o voto soberano da maioria. Dilma foi apeada por um “crime” que não cometeu, e que deixou de ser “crime” dois dias após a consumação do golpe, e o populismo qualitativo se revelou no voto de quantos alegaram a cínica justificativa de que a presidenta havia perdido a governabilidade.
Por fim, Eco elenca como característica o uso da “novilíngua”. “Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos, porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando tomam a forma inocente de um talk-show popular.” No Brasil de hoje, a “novilíngua” está presente nos comentários raivosos das redes sociais, repletos de maiúsculas e de “kkkkks”, ou nas idiotices com fumos de ironia intelectual, que produziram termos pobres como petralha, presidanta e o mais recente propinocracia. Ainda bem que, provavelmente, Umberto Eco não teve a má sorte de ouvir um Gentili, um Tas, uma Sheerazade, um Villa, um Carioca, dentre tantos outros que zurram por aí, numa escandalosa indigência intelectual .
Umberto Eco dizia que, dos arquétipos possíveis do Ur-Fascismo, era suficiente que apenas um deles se apresentasse para que em seu redor se formasse uma nebulosa fascista. Das quatorze características apresentadas em seu texto, há pelo menos metade presentes no Brasil de hoje. Eco conclui o seu texto afirmando que “o Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis”.
Eu ousaria afirmar que o Ur-Fascismo está entre nós, no Brasil de hoje, usando os coletes da Polícia Federal, os ternos e as falas arrogantes e empoladas de membros do Ministério Público (parte deles autoproclamados fundamentalistas religiosos), ou mesmo as camisas negras e as togas do judiciário. E há, nas redes sociais, para usar um termo de Umberto Eco, uma legião de imbecis pronta a tratar os Ur-Fascistas como heróis e a segui-los cega e irracionalmente.
* Educador, Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
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