EUA perderam o controle sobre Nova Guerra Fria
26/9/2016, Alastair Crooke, Consortium News (in Conflicts Forum)
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Logo depois do ataque norte-americano a posições do exército sírio que supervisionam e comandam o campo de pouso de Dier A-Zor – de onde partem e ao qual retornam voos estilo "ponte aérea de Berlin", que são a única linha de sobrevivência de uma cidade há muito tempo sitiada pelo ISIS –, o embaixador russo na ONU fez uma pergunta retórica e pertinente ao Conselho de Segurança: Quem manda na política externa dos EUA? O Pentágono ou a Casa Branca?
Claro que não houve resposta oficial, nem era necessária: o conselho editorial do New York Times encarregou-se do veredito em editorial de 15 de setembro. Elogiando o secretário de Estado dos EUA por sua diplomacia enérgica mas "quixotesca", o "Board" escreveu:
"O acordo [de cessar-fogo na Síria] também enfrenta críticos poderosos dentro do governo Obama, inclusive do secretário da Defesa Ashton Carter. Na 3ª-feira, funcionários do Pentágono recusaram-se a dizer se cumpririam a parte deles no acordo, que determina que os EUA partilhem informação com os russos sobre alvos no Estado Islâmico na Síria, se o cessar-fogo for respeitado por sete dias. Seria proposta de colaboração pouco usual e possivelmente arriscada, com um regime russo que se tornou cada dia mais opositivo e pode aproveitar-se do conhecimento sobre segredos militares dos EUA."
O que mais surpreende aqui é o tom de surpresa zero evidente no editorial do New York Times. O conselho editorial está simplesmente afirmando que é possível que o secretário da Defesa e o Pentágono não cumpram acordo assinado pelo governo dos EUA. E sem um piscar de olhos de surpresa quanto às implicações constitucionais dessa desobediência escancarada à autoridade presidencial.
Surpresa nenhuma. O Board do NYT parece ver como natural e até recomendável que Carter recuse-se a cumprir essa cláusula "pouco usual e possivelmente arriscada". Mas não se trata de "proposta de colaboração". Trata-se de acordo formal já firmado entre os EUA e outro Estado – ao qual se chegou depois de longas negociações, e firmado por ordem do presidente dos EUA.
Resumindo, o presidente Obama já não tem autoridade alguma – caso suas ordens andem em direção diferente do que desejam o Pentágono, a CIA, o New York Times, oWashington Post e a candidata do Partido Democrata à presidência. Não é absurdo portanto pressupor que a détente precária, cheia de resmungos e caras de desagrado, entre o presidente Obama e o presidente Putin (que Obama pessoalmente detesta) já não passe de conversa diplomática fiada.
O professor Stephen Cohen, respeitado especialista em Rússia, já chamou a atenção para o paralelo com outro caso em que os linhas-duras dentro da burocracia da segurança dos EUA fizeram naufragar outras tentativas presidenciais de détente com a Rússia. Um desses casos aconteceu quando a CIA mandou Gary Powers sobrevoar a Rússia em seu avião espião U2, na contramão do acordo que Eisenhower tinha com a Rússia (e exclusivamente, como depois se viu, para ser abatido pelos russos).
Desafiar a autoridade de Obama
Acusações mútuas voam de um lado para outro, sobre quem fez o que na Síria nos últimos dias, mas o que se vê é que Obama enfrenta dissidência insuperável, pode-se dizer até desobediência aberta, de dentro de seu próprio governo.
Esse "cessar-fogo" sírio não será salvo – não apenas por causa da amarga troca de recriminações, que já atravessaram irreversivelmente qualquer tipo de limite não declarado – mas também porque, de nossa parte, já demos provas de sobra (na avaliação de um militar norte-americano insider) de O Quanto Deu Desastrosamente Errada a Sabotagem que Forças dos EUA Fazem Hoje, Servindo-se de Agentes Clandestinos Dentro da Síria, Contra a Política da Casa Branca.
É claro a partir dessa avaliação que tudo de que já se suspeitava há muito tempo é absoluta verdade: que os EUA já não controlam nem podem mais controlar o monstro 'jihadista' que criaram, porque, por efeito de haver facções opostas dentro do "estado de segurança" em que os EUA estão convertidos, os próprios militares norte-americanos há muito tempo vivem de fingir que não veem a natureza e as reais intenções dos 'moderados' (sic) que há muito tempo eles mesmos armam, treinam e financiam.
Em outras palavras, o secretário de Defesa Ashton Carter e o diretor da CIA John Brennan não têm interesse em cumprir o cessar-fogo e podem não cumpri-lo, o que, inclusive, pode ajudar a explicar, de certo modo, o tumulto em que se debate Washington. E a Casa Branca? Será que compreende plenamente o quanto os vários serviços "especiais" dos EUA trabalhavam cada um a favor de interesses específicos e, por isso, minaram qualquer possibilidade real de os EUA serem bem-sucedidos no controle das próprias operações e na mesa de negociações?
Outro aspecto do mesmo processo pode ser a crescente possibilidade de que Donald Trump já tenha encontrado espaço para intervir com seu "Eu bem que avisei" – em termos de quem "criou" o "monstro" jihadista –, se optar por fazê-lo.
A "imagem" de uma vontade concertada, ampla, internacional, para resolver o conflito sírio já foi destruída – deixando sobre a mesa apenas os interesses pulverizados de diversos movimentos golpistas sírios, e a retórica polarizada dos estados externos. O mais provável é que o conflito sírio entre em nova e terrível fase – e, se assim acontecer, a Ucrânia se tornará ainda mais intratável, porque os dois conflitos parecem ser conectados.
Provavelmente não por acaso, o presidente ucraniano Petro Poroshenko, que está brincando de "agora estou/agora não estou" com os europeus, estará em New York para encontrar-se com Hillary Clinton (Donald Trump declarou que não se reuniria com ele). Estarão os Democratas planejando elevar as apostas, ao lado de Poroshenko?
E daí em diante? Bem, as eleições parlamentares na Rússia aconteceram e já passaram. Não houve surpresa, o que não significa que não tenham sido eleições importantíssimas. Pode-se concluir que foram mais que eleições de rotina.
O partido hoje governante, Rússia Unida, venceu – apesar do baixo comparecimento de eleitores às urnas, mas porque eleições ao Parlamento, nesse momento, não incendeiam a imaginação dos russos. Putin não é propriamente membro do RU, mas o partido está diretamente associado a ele. A vitória do partido deve-se a Putin, à impressionante aprovação que os russos garantem ao presidente – e apesar das dificuldades econômicas.
Duas coisas foram especialmente significativas: primeiro, o partido RU ultrapassou a maioria simples de 300 deputados com direito a voto. Com 343 deputados, num Parlamento de 450 votos, o RU tem hoje uma "super maioria". Pode modificar a Constituição Russa – e isso **é** importante. Em segundo lugar, os três partidos liberais pró-ocidente mal alcançaram, somados, reles 4% do total de votos. Individualmente, só obtiveram entre 1% e 2%. E uma cláusula constitucional de barreira impede que cheguem ao Parlamento partidos que não alcancem 5% dos votos. Como o professor Cohen observa em tom duro, pouco característico dele: "O movimento liberal pró-ocidente na Rússia está morto – e foi assassinado por Washington."
Eleições russas garantem mais poder a Putin
Em resumo, as sanções econômicas e consequente aperto de cinto ao qual os russos foram obrigados não comprometeram, nem de longe, a aprovação que a população dá ao presidente. Os russos culpam o ocidente (mesmo que também detestem a equipe econômica do primeiro-ministro Dmitri Medvedev). Isso, agora, está perfeitamente claro para todos.
Com isso o presidente Putin está em posição – com "super maioria" no Parlamento – para fazer mudanças. E há rumores de que, sim, há grandes mudanças a caminho. Um comentarista muito respeitado sugere que a verdadeira oposição a Putin não estaria no Parlamento, mas dentro do próprio "partido do poder":
"A verdade é que a real oposição a Putin está precisamente nos grupos que cercam os ministros financeiro-econômicos do governo Medvedev em todas as facções que aqueles grupos representam: banqueiros, office-boys do FMI, empresários corruptos desde os anos 1990s, que odeiam Putin porque não lhes permite continuar a roubar o país como antes; toda a ex-Nomenklatura e respectivos filhotes que 'detonaram' nos anos 1990s e cujo coração está no ocidente; são os Integracionistas Atlanticistas[1] à moda Kudrin os quais, basicamente são "gente do Consenso de Washington" que despreza o povo russo por votar em Putin. Aí está a verdadeira oposição, e essa oposição é muito mais perigosa que EUA e OTAN somados. Pois para essa oposição, o resultado das eleições foi derrota arrasadora. Por quê?
Porque, assim como o "partido do poder" hiper oficial Partido Rússia Unida, todos os demais partidos no Parlamento são muito mais anticapitalistas e anti-norte-americanos que Putin. Para o Império "Rússia Unida" é o melhor com que podem contar. Alternativas ao Partido de Putin seriam, sem dúvida, muito, muito piores para o 'ocidente'." Como escreveu o Saker.
E aí está o ponto: a situação na Síria para os próximos meses parece condenada a agravar-se, mas não a ponto de levar a algum tipo de derrota estratégica dos russos. A intervenção militar da Rússia, e a mudança da Turquia – apesar de não ser mudança garantida – tornam improvável que os EUA consigam a tal tão desejada "mudança de regime". Na Ucrânia as melhores cartas então em mãos russas – e os europeus compreendem perfeitamente.
Mas, paralelamente às crescentes tensões na Síria e na Ucrânia e ao aumento de forças da OTAN nos Estados do Báltico, a recente reunião do G-20, por sua vez, mostrou a crescente cooperação geoestratégica entre Rússia e China; agora as eleições para o Parlamento prometem a Putin a possibilidade de introduzir mudanças estratégicas dentro da própria Rússia. Mudanças na política econômica – quase com certeza. Mas Putin pode também se sentir mais confiante na própria postura ante o ocidente.
Nada disso implica dizer que Putin teria qualquer desejo de escalar a tensão contra o ocidente. Não há qualquer indício disso (o que o vice-comandante da OTAN confirmou). Mas o presidente russo já pode relaxar um pouco, sem ter de se preocupar com proteger a retaguarda a cada passo que desse. Pode permitir-se esperar, à distância das crises econômicas e políticas que atormentam o ocidente.*****
[1] Sobre isso, ver 16/10/2013, "O longo (20 anos!) pas de deux de Rússia e EUA está chegando ao fim?", no Blog Redecastorphoto[NTs]
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