Clinton, Trump e o triunfo do capitalismo global
Slavoj Žižek Σλάβοϊ Ζίζεκ Славој Жижек سلافوي جيجك | ||
Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Vudu |
Por que o consenso Hillary Clinton é ameaça contra a democracia – e a esquerda.
Roger Ebert disse certa vez que um filme é tão bom quanto seja o seu vilão. Significa que a próximas eleições nos EUA serão boas, porque o "vilão" (Donald Trump) é quase um vilão ideal? Sim, mas num sentido muito problemático. Para a maioria liberal, as eleições de 2016 são escolha clara: Trump é ridículo, excessivo e vulgar. Explora nosso pior racismo, nossos piores preconceitos sexistas, a tal ponto que Republicanos de alto coturno já o estão abandonando aos magotes. Se Trump permanecer candidato Republicano, teremos uma verdadeira eleição 'para todos se sentirem bem'. Apesar de todos nossos problemas e questiúnculas, quando a ameaça contra nossos valores democráticos básicos é real nós nos unimos, feito a França depois dos ataques terroristas. Mas esse confortável consenso democrático deve preocupar a Esquerda. Temos de dar um passo atrás e nos examinar, nós mesmos. Qual a verdadeira cara dessa unidade democrática que tudo une? Todos estão unidos, de banqueiros de Wall Street a apoiadores de Bernie Sanders e veteranos do movimento Occupy, do big business aos sindicatos, de veteranos do exército a ativistas LGBT+, de ecologistas horrorizados por Trump negar o aquecimento global e feministas deliciadas ante a possibilidade de terem uma "primeira presidenta mulher", a figuras "decentes" do establishmentRepublicano horrorizadas com as inconsistências e as propostas "demagógicas" e irresponsáveis de Trump. Todas essas inconsistências tornam única a posição de Trump. Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, observou em e-mail pessoal para mim: "Depois de Orlando, ele veio todo caloroso e falante sobre o pessoal/vítimas LGBT – de modo que nenhum outro Republicano jamais ousaria. Todos sabem também que Trump não é cristão "de fé" e que só diz que é, para efeito cenográfico – e quando digo "todos sabem" quero dizer que é fato sabido pelas seitas cristãs que constituem o front fundamentalista norte-americano. Por fim, a posição dele sobre aborto sempre foi, por décadas, posição liberal, e, outra vez, todos sabem que ele não aprova o voto contrário à decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade. Em resumo, Trump conseguiu mudar a política cultural do Partido Republicano pela primeira vez desde [Richard] Nixon. Ao adotar linguajar crasso, misógino, racista, conseguiu libertar o Partido Republicano da dependência tradicional que o condenava à estreiteza ideológica dos fundamentalistas, homofóbicos e antiabortistas. É contradição notável, que só um hegeliano poderá perceber!"A referência que Varoufakis faz a Hegel é justificada. Foi o estilo de Trump, vulgarmente racista e misógino, que o capacitou para minar o dogma conservador fundamentalista dos Republicanos. Trump não é o candidato só dos fundamentalistas conservadores. (Provavelmente, Trump é ameaça ainda maior para esses, que para os Republicanos "racionais" moderados.) O paradoxo é, pois, que dentro do espaço ideológico do Partido Republicano, Trump, com aquelas vulgaridades populistas racistas e sexistas, conseguiu abalar o núcleo duro fundamentalista. Essa complexidade, é claro, desaparece na demonização padrão obrada pela esquerda liberal, contra Trump. Por quê? Para entender isso, temos de examinar outra vez o consenso Hillary-Clintonista. A ira popular que fez nascer Trump candidato, também fez nascer Sanders. Os dois manifestam descontentamento social e político amplamente disseminado, mas o fazem de modos opostos – um abraça o populismo direitista; o outro abraça um clamor esquerdista por 'justiça'. E aí está o truque. O clamor esquerdista por 'justiça' tende a aparecer combinado com lutas por direitos da mulher e dos gays, a favor do multiculturalismo e contra o racismo. O objetivo estratégico do consenso Hillary-Clintonista é claramente dissociar, de um lado todas essas lutas; de outro, o clamor esquerdista por justiça, motivo pelo qual o símbolo vivo desse consenso é Tim Cook. Cook, presidente da Apple, assinou orgulhosamente uma carta pró-LGBT dirigida ao governador Pat McCrory da Carolina do Sul; agora, pode esquecer facilmente as centenas de milhares de trabalhadores da Foxconn na China que trabalham em condições de escravidão, montando aparelhos Apple. Fez seu grande gesto de solidariedade com os despossuídos, ao exigir a abolição de privadas segregadas por gênero. Se Cook é o símbolo vivo desse consenso, Madeleine Albright, a primeira mulher que foi secretária de Estado nos EUA, é outro modelo incarnado. No programa "60 minutos" da CBS (12/5/1996), perguntaram a Albright sobre a guerra do Iraque: "Ouvimos que morreram meio milhão de crianças. Quero dizer... mais crianças mortas que em Hiroshima. Será que... o preço valeu a pena?" Albright respondeu sem se alterar que "Acho que é escolha muito difícil, mas o preço... Entendemos que sim, valeu a pena." Ignoremos todas as perguntas que essa resposta faz surgir – inclusive a interessante troca dos sujeitos, de "eu (acho)" para "nós (entendemos)" – e nos concentremos num só aspecto: podemos imaginar a extensão e fúria do inferno que haveria, se a mesma resposta fosse dada por, digamos, um Vladimir Putin ou um Xi Jinping ou o presidente do Irã? Os 'respondedores' não seriam imediatamente denunciados em todas as manchetes jornalísticas como monstros frios e sanguinários? Em campanha a favor de Clinton, Albright disse: "Há lugar especial reservado no inferno para mulheres que não se ajudam umas as outras." (Tradução: para mulheres que votassem em Sanders, não em Clinton.) Talvez se tenha de corrigir a frase. Há lugar especial reservado no inferno para mulheres – e homens – que pensem e digam que meio milhão de crianças mortas seria preço aceitável por uma intervenção militar para arruinar um país, ao mesmo tempo em que defendem direitos para mulheres e gays em casa.
Anthony Freda Illma Gore
Trump não é a água suja que se tem de jogar fora para salvar o bebê hígido da democracia norte-americana. É o bebê sujo que será jogado fora para nos fazer crer que nos livramos da sujeira, i.e., para nos fazer esquecer a sujeira remanescente, a sujeira que espreita de dentro do consenso Hillary-Clintonista. A mensagem desse consenso para a Esquerda é: Podem ficar com tudo, só queremos conservar para nós o essencial, o capital global que funcione sem estorvo. Nessa moldura, o "Sim, podemos" [Yes, we can!] do presidente Obama adquire novo significado: Sim, podemos aceder a todas as demandas culturais de vocês, sem que isso ponha em risco a economia do mercado global, sem que sejam necessárias medidas econômicas radicais. Ou, como disse o professor Todd McGowan, da University of Vermont (em comunicação privada para mim): "O consenso do pessoal do 'pensamento politicamente correto' que se opõe a Trump é assustador. É como se os excessos dele liberassem a aparição de um consenso capitalista real, pelo qual os capitalistas podem autocongratular-se pela própria abertura de pensamento." Eis por que o fundador de WikiLeaks Julian Assange tem razão em sua cruzada contra Clinton, e estão errados os liberais que o criticam por atacá-la, 'única pessoa que nos poderia salvar de Trump' o que realmente tem de ser atacado e minado agora é, precisamente, esse consenso democrático contra o vilão. E quanto ao pobre Bernie Sanders? Infelizmente, Trump acertou o alvo quando comparou o apoio de Sanders à Clinton, a um defensor do movimento Occupy que apoie Goldman Sachs. Sanders teria de se retirar e manter-se calado, dignamente calado, de modo que a ausência dele pesasse duramente em todas as celebrações da Clinton, sempre a nos fazer-ver o que ali não estava, mantendo aberto o espaço para alternativas mais radicais no futuro. Muito obrigado a Tlaxcala Fonte: http://inthesetimes.com/article/19410/clinton-trump-and-the-triumph-of-ideology Data de publicação do artigo original: 24/08/2016 URL deste artigo: http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=18748 |
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