As lições não aprendidas da Guerra ao Terror. Por Antonio Luiz M. C. Costa

Quinze anos depois, o combate ao terrorismo continua a ser um cão em busca do próprio rabo
por Antonio Luiz M. C. Costa —na Carta Capital -  publicado 23/09/2016

Mahmud Turkia/AFP
Líbia
O caos causado na Líbia mostra que o Ocidente não aprendeu nada do que 2001 deveria ter ensinado
Passaram-se 15 anos do ataque às desaparecidas torres gêmeas e ao Pentágono. Encerrou-se no Ocidente o ciclo de otimismo aberto pelo fim da Guerra Fria e pela falta de resistência eficaz e de alternativas aparentes à globalização neoliberal imposta pelo consenso e hegemonia de Washington.
Os Estados Unidos e o mundo capitalista foram bruscamente despertados dos devaneios hoje quase esquecidos do “fim da história” de Francis Fukuyama, do “mundo plano” de Thomas Friedman e da “nova economia” dos analistas de Wall Street.

O poder e a mídia desistiram de ninar o público com o conto de fadas no qual a humanidade se casa com o livre-comércio e vive feliz para sempre. Em seu lugar, passaram a contar uma interminável história de terror na qual bichos-papões de burca e turbante se escondem atrás de cada árvore e cada esquina para devorar crianças malcriadas que desobedecem aos superiores e falam com estranhos. Uma estética mais sombria, mas nem por isso mais real ou madura.
A nova narrativa é uma teia igualmente inconsistente de crenças e diretrizes construídas sobre suposições e fatos escolhidos a dedo e apresentados sem contexto e proporção. E sua função é igualmente controlar as massas e desviar sua atenção.
Que os fundamentalistas existem e seus atentados causaram sofrimento a muitos é um fato, mas sua proporção tem sido sistematicamente exagerada. Principalmente nos EUA, onde essa vaga ameaça serve de espantalho contra a imigração e de pretexto à construção de um aparato de espionagem, intimidação e controle, mas na realidade é muito pequena.
Nos últimos dez anos, morreram em média nove pessoas por ano por atentados jihadistas, sete das quais em ataques perpetrados por cidadãos dos próprios EUA. Um número muito menor do que o das mortes causadas anualmente por crianças de até 3 anos que pegam armas deixadas ao seu alcance (21), relâmpagos (31), cortadores de grama (69) ou quedas da cama (737), para não falar de crimes comuns cometidos por estadunidenses (11.737).
9/11
O ciclo do 11 de setembro continua a ser alimentado (Foto: Patrick Sison/AP)
Enquanto restringem liberdades, impõem Estados de exceção e revisam suas constituições em nome dessa ameaça superdimensionada, Washington e outras capitais ocidentais mantêm ótimas relações com Estados e famílias sabidamente patrocinadoras de organizações jihadistas e insistem em tentar manipulá-las quando lhes parece conveniente a seus fins, para depois culpar Maomé e o Alcorão pelas consequências.
Os sequestradores dos aviões fizeram contato e receberam assistência de agentes sauditas nos Estados Unidos. Membros da Casa de Saud transferiram recursos públicos a Osama bin Ladene aos financiadores dos atentados.
Não está provada a participação institucional e direta da monarquia saudita, mas o envolvimento de setores do governo e da família real é evidente. Na sexta-feira 9, a Câmara dos EUA aprovou  por rara unanimidade uma lei para permitir às vítimas do 11 de Setembro processarem a Arábia Saudita por seus vínculos com o terrorismo.
O presidente Barack Obama pretende vetar a lei, mesmo que o veto possa ser derrubado por dois terços do Congresso. Os sauditas ameaçam com a liquidação em massa de títulos dos EUA e com “caos e instabilidade nas relações internacionais”.
Tanto quanto perder a amizade dos sauditas, a Casa Branca receia que a lei abra um precedente para que outros países, por sua vez, abram processos contra os Estados Unidos por sua participação em intervenções duvidosas pelo mundo. Pois a “Guerra ao Terror” é cada vez mais um cão que corre atrás do próprio rabo.
Sequer a lição mais óbvia do 11 de Setembro foi aprendida. Os líderes do mundo continuam a cometer os mesmos erros de Ronald Reagan e Bush pai ao apoiar os mujaheddin do Afeganistão contra seu governo socialista dos anos 1980.
Ainda menos serviram de aprendizado os erros cometidos por Bush filho ao usar o ataque da Al-Qaeda e imaginárias armas químicas e projetos nucleares como pretexto para invadir o Iraque. Mesmo sem desafiar os aliados europeus e comprometer tropas e recursos dos EUA na mesma escala, o governo de Obama os repetiu na essência e contribuiu para espalhar ainda mais o caos no Oriente Médio.
Hillary
Hillary, como Obama, quer boas relações com cúmplices do jihadismo (Foto: Saul Loeb/AFP)

Apesar da propaganda de Donald Trump, o Estado Islâmico não foi criado por Barack Obama, mas de fato ele e a ex-secretária de Estado Hillary Clinton quiseram manejá-lo como instrumento do jogo geopolítico contra o ex-premier iraquiano Nouri al-Maliki, o regime de Bashar al-Assad, o Irã e a Rússia. Assim como tentaram usar fundamentalistas da Síria, Iêmen e Líbia.
Sempre estiveram conscientes de que derrubar Muammar Kaddafi proporcionaria poder e armas aos jihadistas da África. Tanto quanto George W. Bush e Tony Blair exageraram a suposta ameaça representada por Saddam Hussein, eles e David Cameron foram cúmplices em mentiras sobre o ditador líbio. No Reino Unido, o Comitê de Relações Exteriores do Parlamento publicou na quarta-feira 14 um relatório devastador.
O governo de Cameron “não demonstrou que o regime de Kaddafi representasse uma ameaça real aos civis, fez uma leitura literal e seletiva dos seus elementos retóricos e fracassou na identificação das facções islâmicas radicais dentro da rebelião”, concluíram os legisladores.
Com um cálculo tão frio quanto o dos neoconservadores de Bush, os democratas avaliaram que os fundamentalistas poderiam ser neutralizados ou cooptados no momento conveniente e julgaram que a recompensa valia os riscos. Há pouco tempo, Donald Trump foi com razão vituperado por dizer em campanha que o “erro” dos EUA no Iraque foi não ter se apossado do petróleo para pagar os custos da invasão e por suas declarações em 2011, quando se discutia a ação na Líbia: “A menos que tomemos o petróleo, a Líbia não me interessa”.
Entretanto, um dos  e-mails do instituto democrata Center for American Progress vazados ao site The Intercept é da presidenta Neera Tanden, cotada para chefe de gabinete de Hillary. “A Líbia deveria nos compensar? Temos um déficit gigante. Eles têm um monte de petróleo. A maioria dos estadunidenses prefere não se envolver com o mundo por causa desse déficit. Se quisermos continuar a intervir no mundo, gestos como fazer países ricos em petróleo nos reembolsarem parcialmente não me parece loucura. Preferimos cortar o Head Start (educação), WIC (assistência social) ou Medicaid (saúde)? Pois vivemos a política do déficit, isso acontece e vai acontecer cada vez mais.”
Tanden
A assessora de Hillary, Tanden, sugere que países como a Líbia paguem pelo privilégio de ser
bombardeados (Foto: Neilson Barnard/AFP)
Aqui, a diferença entre republicanos e democratas se reduz àquela que existe entre o cinismo e a hipocrisia: os primeiros sentem menos necessidade de disfarçar a ganância com pretextos humanitários e programas sociais.
O mesmo modus operandi se tentou aplicar à Síria, neste caso com menos sucesso por causa da oposição do Irã, do Hezbollah e da Rússia. A Casa Branca e seus aliados também sabiam que a maior parte do apoio militar e financeiro aos rebeldes sírios – talvez a metade do oferecido pelas potências ocidentais e praticamente todo o proveniente das monarquias árabes e da Turquia – acabaria nas mãos dos extremistas.

Isso inclui notoriamente a Al-Nusra, ramo sírio da Al-Qaeda de Osama bin Laden, cuja execução foi tão festejada por Obama e sua então secretária de Estado em 2011. Recentemente, adotou o novo nome de Jabhat Fatah Al-Sham e alegou ter-se separado da matriz.
Não mudou de métodos ou de ideologia. A expectativa é parecer mais palatável e facilitar o trabalho de assessores, consultores e colunistas prontos a defender o apoio a quaisquer grupos dispostos a criar problemas para os rivais estratégicos do momento.
Isso inclui o Estado Islâmico. Efraim Inbar, assessor do governo de Benjamin Netanyahu, conselheiro da Otan e diretor do centro Begin-Sadat de Estudos Estratégicos (Besa) da Universidade Bar-Ilan de Tel-Aviv, um artigo intitulado “A Destruição do Estado Islâmico É um Erro Estratégico”.
O argumento é que o “califado” atrai terroristas em potencial e os mantém ocupados na Síria, além de consumir tropas e recursos do Hezbollah, do Irã e da Rússia. Seu colapso aumentaria a influência e o prestígio desses inimigos e liberaria suas forças, assim como a dos jihadistas sobreviventes, para atacar Israel e o Ocidente. “A estabilidade só é desejável quando serve a nossos interesses”, admitiu o estrategista.
Petróleo
Trumpo proclama aos brados que os EUA deveriam saquear o petróleo da Líbia e do Iraque
 (Foto: Haidar Mohammed Ali/AFP)
Por essa miopia, pagam são só os civis sírios assediados na própria terra ou em fuga para a Europa, mas o mundo inteiro. O governo turco julgou poder tirar proveito da crise na Síriae aumentar sua influência com o apoio aos fundamentalistas e acabou por trazer a guerra para dentro de suas fronteiras.
Os governos britânico e francês, ao tentar aumentar sua popularidade e sua fatia no mercado bélico e petrolífero, criaram a onda de refugiados que gerou o Brexit e ameaça desintegrar a União Europeia e a cooperação internacional.
Os Estados Unidos estão distantes demais para receber mais do que respingos ocasionais dessa violência e podem dar-se ao luxo de mais apostas irresponsáveis para satisfazer lobbies e iludir eleitores.
Mas pagam um preço visível em termos de gastos militares e dívidas que restringem suas opções de política econômica e outro invisível na forma de crescentes ressentimentos contra suas ações, apoio popular e prestígio para quaisquer forças dispostas a enfrentá-los, de potências como a China e a Rússia a fanáticos como Al-Baghdadi e Ayman al-Zawahiri.
*Publicado originalmente na edição 919 de CartaCapital, com o título "Lições não aprendidas". Assine CartaCapital.

Comentários