Turquia entra na Síria: conspiração unipolar ou coordenação multipolar?
24/8/2016, Andrew Korybko, Katheon
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
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Está 'na moda' atualmente criticar o Kremlin por incompetência, e sua história recente de decisões controversas, combinada com a suspeita de infiltração de 5ª e 6ª colunas liberais nas instituições nacionais chaves, oferece abundante terreno para críticas.
Mas tem acontecido de as pessoas perderem as proporções, e porem-se a acusar a Rússia de ter-se deixado 'engambelar' pela Turquia. Interessante que nenhuma dessas críticas seja dirigida publicamente contra o Irã, apesar de Teerã ter-se curvado a Ankara durante e depois da fracassada tentativa de golpe pró-EUA contra Erdogan. Mas dois pesos e duas medidas são a norma, nesse tipo de 'crítica'. E fato é que a Rússia tem recebido muito mais contestações que qualquer outro país, sempre que comentadores multipolares criticam o próprio campo.
Isso precisamente é o que aconteceu no caso do noticiário de que forças curdas haviam cruzado a fronteira para a Síria;e a reação automática mais comum foi que o presidente Putin teria sido manipulado por Erdogan, como parte de alguma trama maquiavélica em larga escala. Naturalmente, ninguém parece ter-se dado conta de que a mesma acusação poderia ser feita, com mais motivos, ao próprio Aiatolá.
De qualquer modo, a narrativa predominante entre os apoiadores da concepção multipolar parece ser de tristeza e desespero, com Facebookers arrancando cabelos de fúria ante a estupidez russa ao confiar na Turquia e pôr-se a trabalhar para ajudá-la a girar na direção da Eurásia.
Por mais moderno e 'atualizado' que pareça o movimento de saltar para o vagão 'crítico' e pôr-se a esbravejar contra a Rússia, e por "saudável" que seja para as pessoas vez ou outra extravasar as tensões e gritar as próprias frustrações, verdade é que há importantes evidências de que a operação da Turquia não é conspiração unipolar, mas coordenação multipolar de alto nível.
É preciso explicar, uma vez que no momento em que escrevo (11h30 em Moscou) nem Moscou nem Teerã nem Damasco emitiram qualquer declaração condenando a intervenção militar turca, e o website site da agência oficial de notícias Árabe Síria (SANA) mantém-se estranhamente mudo sobre esse desenvolvimento. Tudo isso é de estranhar, se se aceita a premissa de que os movimentos da Turquia constituiriam 'invasão' da Síria.
Se os críticos contra o Kremlin podem inventar as explicações mais variadas de por que Moscou mantém-se calada, não há muita gente que possa oferecer motivo que seja no mínimo meio-plausível de por que Teerã e Damasco não estão nesse momento em surto público de fúria. Embora seja verdade que a Turquia está coordenando parte de sua operação com ajuda de apoio aéreo dos EUA, não há dúvidas de que há novidades – um toque contextual que exige elaboração extra.
Os recentes confrontos entre o Exército Árabe Sírio (EAS) e a milícia YPG curda em Hasakah foram interrompidos por hora, por efeito da mediação russa, mas mesmo quando estavam em andamento já muitos observadores concordaram que não interessava a ninguém além dos EUA, que o EAS iniciasse operação ampla de lei e ordem contra os curdos, porque operação desse tipo impediria dramaticamente que se empreendessem esforços pós-conflito com vistas a preservar a soberania territorial e a natureza unitária da República Árabe Síria. Mas essas sensibilidades diplomáticas desaparecem, quando se trata da capacidade da Turquia para fazer o mesmo, uma vez que se sabe globalmente com que ferocidade Erdogan sempre se opôs à criação de um statelet curdo "federalizado" (dividido internamente) bem ali junto à fronteira sul da Turquia. Somado a tudo isso, muita gente sabe que os EUA estão tentando desesperadamente bajular a Turquia e impedir que se retire do ninho unipolar, o que explicaria a ânsia americana para ajudar publicamente o seu parceiro no Oriente Médio, na sua recente operação.
Dizendo de modo mais simplificado, nem a Rússia nem o EAS – por razões de sensibilidade política e estratégia de longo prazo –querem atacar os curdos do YPG e proativamente impedi-los de ocupar todo o norte da Síria; mas a Turquia não precisa ter tantas reservas e está ansiosíssima para fazer o 'trabalho pesado', especialmente se puder arrastar a Força Aérea dos Estados Unidos e forçar os norte-americanos a matar terroristas de verdade, dessa vez, em campo.
O objetivo dos EUA em tudo isso é provar que são 'aliados leais' da Turquia, e contribuir para a reconciliação que Washington está tentando realizar com Ancara (apesar de, nesse caso, os EUA estarem sendo explorados como 'idiotas úteis', ajudando a Comunidade Multipolar em seu esforço para destruir aquela segunda 'Israel geopolítico' do "Curdistão").
Tudo isso posto, ainda haverá opositores que insistirão que a Turquia não é confiável e que a presença de quaisquer tropas estrangeiras ou a ordem para qualquer ataque militar em solo sírio sem a permissão de Damasco sempre será violação de sua soberania e quebra da lei internacional. Tudo isso sim, seria verdade, se o presidente Assad não tivesse coordenado a operação com seu homólogo turco.
Por mais 'inconveniente' que seja admitir, para os mais entusiastas (quase todos no exterior) apoiadores da Síria, fato é que Damasco e Ancara estão envolvidos em conversações secretas já há meses, em Argel, capital da Argélia, já confirmadas repetidas vezes por várias fontes de mídia, desde a primavera. Além disso, a Turquia acaba de enviar a Damasco dos seus chefes adjuntos de inteligência, há poucos dias, para reunir-se com colegas sírios, no mesmo alto nível. Assim se pode explicar o motivo por que Rússia e Irã não estão condenando a incursão da Turquia em território sírio, nem há funcionários sírios dedicados também a protestar contra a incursão.
Cada vez mais, tudo indica que a operação turca é parte de movimento mais amplo, previamente coordenado com Síria, Rússia e Irã.
Contudo, por razões políticas internas, tanto na Síria como na Turquia, deve-se esperar que nenhum dos lados admita qualquer tipo de coordenação. E é possível até que Ancara apareça com rompantes de retórica bélica, assim como também é possível que Damasco discurse sobre proteger sua soberania.
O mais importante, porém, não é tanto ouvir Turquia e Síria, mas observar o que Rússia e Irã dizem e fazem, uma vez que estes são os dois países mais capazes de defender a Síria contra qualquer agressão efetiva contra seu território e que se têm mantido firmemente na defesa do país já há anos, embora em graus qualitativos diferentes, mas com sinergia complementar (a saber, a operação aérea russa antiterroristas da Rússia e a operação em terra das forças especiais iranianas).
Nada disso visa, de modo algum, a 'desculpar', ou a 'descartar' a contribuição oportunista, ilegal, temerária e inadvertida dos EUA para essa campanha multipolar coordenada. O objetivo aqui é documentar com precisão como e por que os EUA concordaram com envolver-se nessa aventura só superficialmente liderada por Erdogan, e foram claramente trapaceados por ele (Erdogan convenceu os norte-americanos de que a ação na Síria seria precondição para normalizar as relações entre os dois lados).
Falta à Rússia vontade política para varrer, ela mesma, os terroristas wahhabistas e os separatistas curdos do norte da Síria, e por mais que se possa ou apoiar ou condenar, é impossível não levar em conta essa evidência, se se visa a analisar eventos e prever desdobramentos.
Com esta restrição óbvia como importante fator que influencia o estado de coisas na Síria, é razoável pois que Síria, Rússia e Irã não manifestem muito fortes objeções ao 'engambelamento' dos EUA pela Turquia; também é razoável que, nessas circunstâncias, deixem de considerar só os próprios interesses, no que tenha a ver com a tentativa de normalizar as relações com Ancara.
A principal variável qualitativa que se tem de mencionar nesse ponto é que qualquer séria condenação russa e iraniana contra a operação turca em andamento indicaria que alguma coisa saíra errada no plano multilateralmente coordenado; ou que a Turquia não passara de Cavalo de Troia traiçoeiramente pró-EUA. Nesses dois casos, todo o ceticismo em torno do sucesso dos empenhados esforços de Moscou e Teerã para atrair a Turquia para um movimento de pivô multipolar estaria confirmado como a única análise correta desde o início.
Para concluir, o autor gostaria de remeter o leitor a artigo seu, de cerca de um mês – "Regional War Looms as 'Kurdistan' Crosses The Euphrates" – [aprox."Guerra regional cresce. O 'Curdistão' cruza o Eufrates"], no qual se prevê que a Rússia trataria de montar uma coalizão multipolar de tipo "Liderar pela Retaguarda", para empurrar de volta contra os EUA as tentativas dos norte-americanos para arrancar do território do norte da Síria um "Curdistão", como uma 'segunda 'Israel geopolítica'.
Naquele artigo lê-se que "é razoável supor que haja uma mão russa invisível que coordena suavemente as atividades regionais amplas" dedicadas a conter aquele movimento dos EUA.
Com (1) a Turquia entrando agora na Síria para impedir que o YPG unifique todo o seu território ocupado no norte da Síria e dê novo alento geopolítico ao mais novo projeto de "dividir para governar" dos EUA no Oriente Médio; tendo em mente (2) a diplomacia a passos rápidos entre Rússia, Irã e Turquia; e (3) os meses de longas negociações secretas em curso entre Ancara e Damasco, todas as evidências empíricas sugerem que este mais recente desenvolvimento na guerra contra a Síria é menos uma conspiração unipolar e mais um plano multipolar coordenado, para pôr fim ao conflito; impedir a divisão do território sírio; e impedir a implantação ali, pelos EUA, de uma 'segunda Israel' geopolítica.*****
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