Rio-2016: a farra fiscal olímpica
McDonald’s, Bradesco e Globo não pagarão impostos, apesar de lucrarem bilhões. O que isso revela sobre globalização e sociedade do espetáculo
por Antonio Martins — na Carta Capital - publicado 04/08/2016
Gabriel Bouys / AFP
Voluntário sorri com óculos escuros que exibem os aros olímpicos: farra para as empresas |
As primeiras competições dos Jogos Olímpicos do Rio começaram na quarta-feira 3 e a grande cerimônia de abertura ocorrerá nesta sexta-feira 5. Será um espetáculo de repercussão planetária, mas um fato está sendo cuidadosamente ocultado das sociedades.
Uma autêntica farra fiscal garantirá às empresas multibilionárias que patrocinam os jogos isenção total de impostos. Cada espectador que consumir um refrigerante durante as disputas; cada faxineiro que usar transporte público para limpar o banheiro de uma lanchonete contribuirá com as finanças públicas.
Mas megaempresas como a Coca-Cola, o MacDonald’s, a Rede Globo, o Bradesco e a Latam estarão 100% isentos. Não pagarão Imposto de Renda, IPI, IOF, Contribuições previdenciárias, nada. Só este privilégio custará ao país, em duas semanas e meia de jogos, R$ 3,83 bilhões – quatro vezes o orçamento anual do ministério da Cultura. O episódio joga luz num dos temas centrais da globalização: a injustiça fiscal aguda. Há, porém, uma alternativa.
As primeiras denúncias internacionais sobre o privilégio fiscal abusivo concedido às megacorporações “olímpicas” foram feitas em 2012. Ao examinar a documentação sobre os Jogos de Londres, a rede internacional Tax Justice Network – Rede de Justiça Tributária, ou TJN, simplesmente – descobriu algo singular. As obras olímpicas custavam, para a população, bilhões de libras.
Ainda assim, as empresas que mais lucravam com elas, financeiramente, não contribuíam em nada com a infraestrutura ou serviços públicos. O fisco inglês calculou que a perda de arrecadação da sociedade seria equivalente a 700 milhões de libras. Ou seja: o lucro das megacorporações era muito maior. E elas recusavam-se, ainda assim, a pagar impostos.
A jornalista Naomi Fowler, da TJN, conta que se trata de uma cláusula pétrea nos Jogos Olímpicos. Está relacionada às desigualdades e à alienação típicas da Sociedade do Espetáculo, um fenômeno estudado, entre outros, pelo filósofo marxista heterodoxo Guy Debord.
Na era do capitalismo imaterial, as sociedades abandonam a prerrogativa de refletir sobre si mesmas. Rendem-se a um mundo fantástico comandado pelo poder político e econômico. Os organizadores de eventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos aproveitam-se disso para impor condições humilhantes aos Estados. Isenção total de impostos é cláusula pétrea exigida pela FIFA e pelo Comitê Olímpico Internacional de qualquer país candidato a sediar uma mega-evento esportivo.
No Brasil Olímpico, este privilégio abusivo – idêntico ao da aristocracia, que jamais pagava impostos até a Revolução Francesa – foi consagrado pela Lei 12.780, de janeiro de 2013, jamais levada ao debate público.
A isenção fiscal ao Comitê Olímpico e todos os seus patrocinadores estende-se por cinco anos, até 2017. Inclui tudo: das competições, treinos, seminários, entrevistas coletivas e até “banquetes” – assim denominados na lei. Beneficiam-se empresas ou pessoas físicas, os dirigentes, com sede no Brasil ou no exterior.
A lógica é a mais típica do neoliberalismo, muito estudados por Pierre Dardot e Christian Laval, num livro essencial. Segundo tal lógica, cada participante da vida social deve agir da maneira mais egoísta possível, sem nenhuma preocupação com a comunidade. Os impostos, sob esta ótica, não são vistos como algo indispensável para criar o mundo coletivo – mas como um obstáculo a evitar.
Quem paga o pato somos nós. Enquanto os dirigentes da Fiesp sonegam, alegremente, bilhões em impostos, cada passagem de ônibus urbano tem embutida 20% de tributos. É da própria Receita Federal o cálculo segundo o qual os privilégios fiscais oferecidos aos patrocinadores dos Jogos Olímpicos cortam a arrecadação fiscal brasileira em 3,83 bilhões de reais..
No entanto há, como sempre, brechas, alternativas – inclusive de curto prazo. A Rede de Justiça Fiscal, cuja expressão mais pública no Brasil é o Instituto de Justiça Fiscal, IJF – identificou uma. Significa revelar o privilégio, escancarar seu caráter injusto e inaceitável.
Em 2012, durante os Jogos Olímpicos de Londres, a Rede de Justiça Fiscal promoveu intensa pressão sobre as empresas que se beneficiavam da isenção fiscal imposta. Após intenso debate público, reivindicou que renunciassem aos privilégios insultantes. Descobriu que, tanto na Inglaterra quanto agora no Brasil, é possível renunciar a tais mamatas.
O resultado foi revelador. Pelo menos dez mega-corporações patrocinadoras dos Jogos Olímpicos de 2012 incomodaram-se com a campanha, que revelava sua atitude eticamente inaceitável. Aceitaram o desafio da TJN. Comprometeram-se a abrir mão dos privilégios.
Há algo muito relevante nessa atitude. Ela indica que, embora sejamos todos parte da Sociedade do Espetáculo, os que a comandam temem a luz do dia. Uma vez revelados os abusos, eles recuam – porque sabem que não podem suportar a hostilidade da opinião pública.
A Tax Justice Network está retomando a campanha agora. Ela vai questionar as dez empresas que aceitaram renunciar aos privilégios. Perguntará a elas se efetivaram a promessa. Indagará, neste caso, quanto imposto acabaram efetivamente recolhendo. As respostas deixarão claro o absurdo da renúncia fiscal. A TJN perguntará, também, corporações: vocês estariam dispostos a manter a mesma atitude nos Jogos Olímpicos do Rio. Pagarão impostos sobre os lucros bilionários recebidos?
Outras Palavras é parceiro da Rede de Justiça Fiscal nesta iniciativa. Nos próximos dias e semanas, você poderá acompanhar, em nossas matérias, a posição das corporações questionadas. Mas repare: este debate está totalmente interditado na velha mídia.
Nenhum jornal ou TV parece ter julgado importante debater um rombo fiscal de 3,8 bilhões de reais – embora falem tanto em “ajuste fiscal”. Alguns atores sociais parecem interessados em fazer da globalização algo cada vez mais obscuro, mais inatingível pelas sociedades. Nós não. É ótimo contar com disposição para construirmos, juntos, outro discurso.
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