Mau uso da tecnologia pode causar danos ao cérebro e à capacidade produtiva
CIÊNCIA DO TRABALHO
Para Miguel Nicolelis, por ser extremamente adaptável, condicionado ao uso extremo da tecnologia, o cérebro pode se comportar como sistema digital, o que expõe os indivíduos ao risco de alienação social
por Sarah Fernandes, da RBA publicado 27/08/2016 10:04
PIXABAY
Tecnologia deve ser usada para melhorar a vida no planeta, mas modelo de hoje coíbe a criatividade. Situação se agravará se essa lógica se massificar no mercado de trabalho
São Paulo – O cientista brasileiro Miguel Nicolelis defendeu que o chamado “sonho dourado” do capitalismo, de substituir totalmente a mão de obra pela tecnologia para baratear os custos de produção, é “completamente impossível”, já que algumas características do intelecto humano são impossíveis de serem reproduzidas por máquinas. O que ocorre, no entanto, é que muitos trabalhadores acabam como coadjuvantes da tecnologia no processo produtivo, o que pode causar danos sérios ao cérebro humano, à capacidade de produção e a organização do mercado de trabalho.
Nicolelis foi o primeiro cientista a receber, num mesmo ano (2009), dois prêmios dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos e o primeiro brasileiro a ter um artigo publicado na capa da revista Science. Ele participou nesta sexta-feira (26), do o 4º Congresso Internacional de Ciências do Trabalho, Meio Ambiente, Direito e Saúde, realizado em São Paulo pela Fundacentro – autarquia vinculada ao Ministério do Trabalho.
“Nós estamos condicionando nosso cérebro ao uso de tecnologia ao longo da vida, e como ele é extremamente adaptável, passa a imaginar que o que vale a pena, como os prazeres sociais e financeiros, se comporta também como um sistema digital. O continuo contato digital, por exemplo, leva a alienação social dos indivíduos”, disse. “Um grande risco é que a condição humana está sendo moldada pelas nossas interações digitais modernas. A tecnologia deve ser usada para melhorar a vida no planeta e para a felicidade plena, mas esse modelo de hoje coíbe a criatividade, as expressões artísticas e a comunicação.”
A situação se tornará mais grave quando essa lógica se massificar no mercado de trabalho, segundo Nicolelis, que pediu aos representantes de sindicatos presentes no evento que comecem a debater a questão. “O grande embate trabalhista do futuro passa por uma automação da vida cotidiana. Os futuros acidentes de trabalho não vão ser só físicos. Talvez o fato de o sujeito passar 8h como coadjuvante de um sistema automatizado que controla a produção cause danos para a mente muito mais relevantes que todos os danos físicos registrados na história do trabalho”, disse.
O milagre da ciência
Pouco mais de dois anos após a abertura da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, em que a Fifa tentou esconder a cena de um jovem com paralisia se levantando para chutar uma bola com ajuda de um exoesqueleto movimentado com suas próprias ondas cerebrais, Miguel Nicolelis voltou a surpreender. Ou melhor, aumentar a esperança que tem dado a pessoas que perderam o movimento das pernas devido a lesão medular.
No começo de agosto, as principais revistas científicas do mundo publicaram artigo do neurocientista brasileiro em que ele descreve os primeiros meses de treinamento de oito pacientes realizados na AACD, em São Paulo. Os especialistas da equipe de Nicolelis foram surpreendidos com a recuperação motora parcial: depois de 12 meses do projeto, 50% dos pacientes foram reclassificados de paralisia completa para parcial e hoje, após 28 meses de trabalho, todos os pacientes já foram reclassificados.
Nicolelis é coordenador do projeto Andar de Novo, que reúne cientistas de várias partes do mundo no desenvolvimento de um aparato capaz de estimular os movimentos perdidos por meio de uma tecnologia estudada pelo cientista, chamada interface cérebro-máquina. “Pacientes nos relataram que foram à praia e pediram protetor solar, porque sentiam o sol queimando as pernas. O Juliano, que deu o chute inicial na Copa do Mundo e que era paralisado do tórax para baixo, nos pediu para refazer seu uniforme de treinamento porque ele machucava sua virilha”, contou
Segundo Nicolelis, a explicação da evolução dos pacientes está na reorganização plástica do córtex cerebral. Conforme explicou, ao reinserir a representação dos membros inferiores e locomoção nessa região do cérebro, os pacientes podem ter transmitido algumas informações do córtex por meio dos pouquíssimos nervos que devem ter sobrevivido ao trauma que causou a paralisia.
“É como se os tivéssemos ligado novamente, e por causa disso, a medula foi reativada pelo córtex e, ao mesmo tempo, recebido o feedback da periferia, porque esses pacientes andavam durante o treino”, explicou.
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