Fogos de Erdogan dão chabu, rojões da OTAN estão molhados

10/8/2016, John Hellmer, Dances with Bears, Moscou

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu



Não há aluno de Direito na Inglaterra que, chegado pela primeira vez à lei e aos crimes, não tenha estudado o caso "Scott contra Shepherd". Nesse caso, decidido em 1773, um homem, que caminhava por um mercado, foi atingido no rosto por um rojão que lhe cegou um olho. A decisão do tribunal foi: se o sujeito acende e dispara rojões, ele é culpado por cegar um homem, mesmo que não tenha planejado o crime.

Nas preliminares da reunião dessa semana, em S. Petersburgo, o presidente da Turquia Tayyip Recep Erdogan brincou com rojões incendiários. O presidente da Rússia Vladimir Putin manteve os olhos bem abertos. Na conclusão da reunião em S. Petersburgo, na 3ª-feira à tarde, os olhos de Putin revelaram muito mais do que a boca, sobre Erdogan e sua conversa incendiária.

Funcionários dos governos russo e turco e respectivas equipes de especialistas já haviam esclarecido que haveria quatro pontos estratégicos na agenda das negociações russo-turcas, um corolário político e várias recompensas comerciais.

A prioridade é a Turquia comprometer-se a pôr fim aos seus esforços para mudar o regime na Síria, no Cáucaso Russo, e nos estados da Comunidade dos Estados Independentes, CEI [ing. CIS], incluindo a Armênia e o Tadjiquistão. Significa expulsar os combatentes chechenos dos paraísos seguros que têm na Turquia e em áreas sob controle da Turquia; vedar completamente a fronteira turco-síria para o ISIS e outros jihadistas; e pôr fim ao apoio turco à guerra do Azerbaijão contra a Armênia e a oposicionistas islamistas no Tadjiquistão, Uzbequistão e Crimeia.

Em troca, os turcos querem que os russos comprometam-se a não apoiar o projeto de grupos curdos de estabelecer autonomias territoriais ou statelets ao longo da fronteira da Turquia com Síria e Iraque e a não encorajar os curdos a lutar para voltarem à Turquia para estabelecer um Curdistão independente.

Outra prioridade dos russos – e a chave das guerras que o Kremlin combateu contra os otomanos ao longo de mais de dois séculos – é que a Turquia comprometa-se a não violar os tratados que governam os estreitos entre o Mar Negro e o Mediterrâneo (a violação desses tratados pela Turquia é que continua a permitir que a OTAN continue a tentar manter no Mar Negro uma instalação naval permanente de sistemas de mísseis Aegis apontados contra a Rússia).

Para detalhes das condições de operações de navios nos chamados Estreitos Turcos, leia aqui.
O corolário político é que Rússia e Turquia passem a não permitir que EUA e OTAN disponham e armem forças turcas sob bandeira da OTAN, em território de Chipre.

As recompensas incluem reviver planos de aumentar o fluxo de gás da russa Gazprom para e através da Turquia, nas duas variantes (gasodutos Ramo Turco e Ramo Sul); retomar o turismo russo para a Turquia; fim das restrições mútuas contra projetos de construção, inclusive do reator nuclear russo em Akkuyu; e fim das sanções russas que baniram exportações de frutas e verduras turcas para o mercado russo.

Local do reator nuclear em Akkuyu (esquerda); maquete do reator (direita) (mais detalhes aqui).
Pouco antes da chegada de Erdogan a São Petersburgo, ele e o Kremlin concordaram com gravar uma entrevista para a televisão, na qual Erdogan enxertou inúmeras metáforas para se fazer simpático ao público russo. O encontro com Putin, disse Erdogan, é "um novo marco nas relações bilaterais, um ponto limpo do qual recomeçar tudo." A cada quatro minutos na entrevista, Erdogan referia-se ao presidente da Rússia como seu "caro amigo Vladimir" (há versão em inglês, da Agência Tass).


Erdogan fez mais do que pedir desculpas pelo ataque que derrubou um jato russo Su-24 em novembro passado. Admitiu que o jato russo estava em espaço aéreo da Síria, não da Turquia, quando foi atacado. "Os culpados do que aconteceu em território sírio foram presos e estão sendo processados. A investigação prossegue. De fato, já disse isso em minha mensagem [ao presidente Putin]. Quanto aos pilotos, ordenei investigação sobre as circunstâncias em que ocorreram os eventos, mais amplas que os limites de nossas leis consuetudinárias. Vocês também sabem que o homem que causou a morte do piloto russo, que matou o piloto russo, foi preso e continua preso. Está sendo julgado. Quero chamar a atenção para isso."

Erdogan também se serviu da questão que a mídia 'ocidental' tem explorado à exaustão – a inteligência russa preveniu ou não preveniu Erdogan sobre o golpe em andamento? Aí, Erdogan exagerou na encenação: "É a primeira vez que ouço tal coisa. Ainda que tivesse realmente acontecido, os envolvidos mesmo assim teriam de ter-me avisado. Nunca recebi essa informação, nem da inteligência nem por outros canais. Não sabemos quem disse o quê, a quem. Para mim, é boato sem fundamento."

Erdogan também disse que os povos russo e turco são tão próximos e amigos quanto ele e Putin. "Se choro, alguém sempre ouvirá minha voz em Sochi" – Erdogan apelou ao sentimentalismo russo –, "e se alguém chama por mim de Sochi, ouvirei. Somos próximos assim, uns dos outros."

As respostas de Erdogan relacionadas à agenda real foram muito distantes dos temas, como sempre. Fez parar as suspeitas difundidas pela mídia-empresa de que estariam pondo fim à campanha para derrubar o presidente da Síria, Bashar Al-Assad. "Não queremos a desintegração da Síria, mas, sim, a saída de Bashar Assad, culpado da morte de 600 mil pessoas. Essa é a condição. Não é possível manter a unidade da Síria, com Assad. E não se pode apoiar um assassino que cometeu atos de terrorismo de estado."

Negou qualquer participação no financiamento do comércio/contrabando de petróleo, armas e outros itens que abastecem as forças do ISIS na Síria e no Iraque. Repetiu que a Turquia apoia os tártaros crimeanos que, com apoio de Kiev e Washington, lutam contra Moscou.

Sobre o futuro dos projetos da Gazprom e o reator Akkuyu ofereceu novas conversações, nenhum compromisso. Não falou de legumes e verduras. Quanto ao turismo, Erdogan declarou que nenhum turista fora morto no putsch militar do mês passado e que "atualmente as praias são seguras."

O entrevistador da agência Tass, vice-diretor geral da agência de notícias, Mikhail Gusman, evitou atentamente tocar em questões como chechenos, Estreitos, OTAN, Chipre, Crimeia ou guerra azeris-armênios.

"Erdogan usou a entrevista da Tass para tirar da mesa todos os temas nos quais os russos viam a possibilidade de alguma abertura" – disse um observador em Moscou. – "Usou a Tass para passar a perna em Putin. Era visível na gravação de São Petersburgo que Putin não estava feliz. Quem mais perde com o alvoroço em torno de Erdogan é Putin – e havia órgãos da mídia-empresa de propaganda 'jornalística' que operam dentro da Rússia, especialmente os veículos que publicam em inglês, também presentes na cobertura."

"Agora, vamos ver como a grande mídia-empresa ocidental repercute a mais recente, dessa já longa lista de vitórias de Putin sobre o homem do teleprompter [Barack Obama]", comentou um website que publica em inglês, financiado pelo Kremlin. RT tuitou em efusiva celebração (imagem) que "os dois líderes elogiaram efusivamente um o outro".Sputnik News chamou a reunião de "reset" que não interessa aos EUA e à União Europeia.

A gravação oficial das conversas das delegações, que tiveram início às 13h e terminaram três horas mais tarde, não registram qualquer discussão nem qualquer acordo que tivesse algo a ver com qualquer questão que envolvesse qualquer interesse prioritário, de política ou de segurança, para os russos. Na conferência de imprensa, o presidente Putin revelou que, apesar das juras de ótimas intenções, nada se concluiu, de importante para qualquer dos lados. Horas depois de concluída a reunião, o Ministério de Relações Exteriores da Rússia ainda nada informara sobre a reunião entre o ministro Sergei Lavrov e seu contraparte Mevlüt Çavuşoğlu.

Não houve qualquer discussão entre os presidentes, sobre a Síria. Segundo Erdogan, "durante as negociações que tiveram lugar, até agora não discutimos essa questão. Depois de uma conferência de imprensa pretendemos discutir isso. Assim sendo, por hora, nada tenho a dizer, porque não discutimos esse tema." Putin acrescentou: "Confirmo o que acaba de dizer nosso convidado, caro presidente da Turquia. Todos sabem que nossas visões sobre como solucionar os problemas nem sempre coincidiram na direção da Síria. Concordamos que depois dessa parte, vamos nos reunir separadamente com os ministros de Relações Exteriores , com representantes dos serviços especiais, nos comunicaremos e procuraremos uma decisão."

Apesar de funcionários do Kremlin terem dito mais cedo que os russos pediriam indenização pelo assassinato do piloto do Su-24, Oleg Peshkov, nada se discutiu sobre isso.

Veículos da mídia-empresa russa identificaram, como participantes nas conversações, o general Valery Gerasimov (esquerda), comandante do Estado-maior da Rússia, e Alexander Lavrentiev (centro), agente da inteligência que é o negociador do Kremlin para a guerra síria. Não havia oficiais dos militares turcos rebeldes na delegação de Erdogan, mas ele levou Hakan Fidan (direita), diretor da agência de inteligência turca, MIT, educado nos EUA.


Putin não disse palavra sobre questões de segurança da Rússia durante a conferência de imprensa. Fez parecer que as conversas com Erdogan limitaram-se à política econômica, e informou que não haviam chegado a qualquer acordo, exceto que continuarão a conversar. "Quanto à recomposição integral das relações" – disse Putin, – "sim, queremos. Chegaremos lá. A vida anda depressa. E depois que se criaram algumas restrições, no campo previsto dessas restrições, algumas transformações começaram a acontecer. Temos de considerar essas transformações, no evento da implementação de planos para a recuperar nosso comércio e nossas relações econômicas."

"Quanto a isso, tomamos a decisão, no nível ministerial, de preparar planos de médio prazo. Só falei disso – comércio e cooperação econômica, científica, técnica e cultural agora para 2016-2019. Estimo, sim, que esse programa será adotado em futuro próximo." Putin recusou uma demanda turca, de levantar as restrições de visto para trabalhadores turcos na Rússia; dispôs-se a "considerar tudo isso, para desbloquear questões de interação econômica."

A expressão de Putin manteve-se sombria durante toda a conferência de imprensa.

Nunca antes, desde a conferência de imprensa em junho de 2013, ao lado do presidente Barack Obama dos EUA, a linguagem corporal de Putin foi tão manifestamente hostil ao seu contraparte. Muito mais relaxado e afável era o Putin que se viu dois dias antes, em reuniões com os presidentes do Irã, Hassan Rouhani (foto da esquerda) do Irã, e Ilham Aliyev (centro, foto da direita) do Azerbaijão (de http://en.kremlin.ru/events/president/news/52666).


O Kremlin distribuiu um vídeo e várias grandes imagens da sessão da 3ª-feira, de empresários russos e turcos, que foi presidida por Putin e Erdogan (de http://kremlin.ru/events/president/news/52675/photos/45193).


O texto publicado da sessão reiterou condicionalidades. "De vocês, empresários" (nessa rodada, Erdogan 'passou') – "esperamos medidas sérias, no que tenha a ver a dar corpo a projetos que contribuirão para o desenvolvimento econômico entre nossos dois países (...) Removidos todos os obstáculos que existem diante de nossas relações e criadas novas áreas para cooperação, penso que podemos alcançar esses objetivos. Portanto, o peso mais sério dessa tarefa cai nos ombros de vocês, caros empresários." Referiu-se uma vez ao Estreito de Bósforo, mas só para mencionar que está próximo de começar a escavar um túnel por baixo daquelas águas. Nessa fala de seis minutos e meio, Putin foi citado como "caro amigo" uma única vez. Putin fez careta e mexeu-se na cadeira.

Os dois presidentes recitaram as estatísticas comerciais que confirmam as vastas perdas financeiras que a Turquia vem sofrendo desde o início das sanções em dezembro passado. O total comerciado nos primeiros cinco meses de 2016 caiu, de $10,7 bilhões, para $6,1 bilhão, perda de $4,6 bilhões. A fatia turca no comércio global russo caiu de 4,8% para 3,6%.

Tabela – Importações de Legumes e Frutas Turcas. Janeiro-Maio, 2015, 2016

A tabela mostra que os eleitores de Erdogan que vivem de plantar e comerciar alimentos perderam, até 31 de maio, $812 milhões (no momento em que Erdogan chegou à Rússia, na 3ª-feira pela manhã, as perdas já ultrapassavam $1 bilhão). E são perdas que se podem aferir em vários segmentos do mercado russo de alimentos.

A Agência de Alfândega Russa informou que os tomates turcos, que dominavam 57% do mercado de importações (em valor importado) antes de o jato Su-24 ser derrubado em novembro, simplesmente desapareceram do mapa. Damascos, morangos, pêssegos, cebolas e pepinos turcos também dominavam largas faixas do mercado russo, mas vêm sofrendo pesadas perdas desde janeiro. Alexander Khorev de APK-Inform, empresa líder de consultoria sobre comércio de alimentos em Moscou, diz que ano passado – antes do conflito com a Turquia, mas depois que as sanções já haviam cortado a oferta de frutas e legumes da União Europeia –, a Rússia comprou um total de 665 mil toneladas de tomates, 52% das quais compradas da Turquia. A importação de pepinos totalizou 545 mil toneladas, 23% das quais compradas da Turquia; e 264 mil toneladas de cebolas, 14% das quais, compradas da Turquia.

Uma das curiosidades que transparecem nos números da alfândega é o visível salto, em volume e valor, nos tomates armênios. Fontes em Moscou informam que o volume de tomates armênios importados para a Rússia esse ano ultrapassa a capacidade com que os plantadores armênios podem contar para embarcar tomates. Em Moscou, suspeita-se que haja turcos que contrabandeiam seus tomates para a Rússia, travestidos como se viessem do arqui-inimigo dos turcos, a Armênia (terra dos Tomates diVine).

Uma das razões pelas quais Putin nada disse sobre reviver esse comércio, é que os plantadores russos de tomates investiram consideravelmente em estufas subsidiadas em parte por bancos estatais russos , para produzir tomates que substituam os importados. Confiam agora em manter a mesma fatia do mercado e preços correspondentes aos que os turcos recebiam há nove meses. Também fontes alternativas de oferta – Síria, Tunísia, África do Sul, Uzbequistão, Irã e Armênia – ganharam muito à custa da Turquia de Erdogan. 

O comentário de Philip Owen de Volga Traders é que os arranjos de logística, pagamento e marketing para alimentos importados são caros, e é possível que o mercado russo não volte para os fornecedores turcos. Erdogan não ofereceu nenhuma razão política pela qual o Kremlin devesse ressuscitar o comércio de alimentos com a Turquia. E os agricultores russos dizem que, hoje, há boa razão para não ressuscitá-lo.

Na conferência de imprensa na 3ª-feira em São Petersburgo, Erdogan disse: "Se vocês se recordam, tínhamos uma meta – chegar a um volume de negócios de 100 bilhões de dólares, e vamos insistir resolutamente, até atingir esses objetivos. Hoje, posso dizer, recomeçamos o processo, começamos a andar nessa direção." 

Uma fonte russa, do mundo dos negócios, responde: "Erdogan pode dizer o que quiser aos seus exportadores. Para eles, o mercado russo nunca mais será o mesmo."

Observadores gregos e cipriotas comentam que Erdogan fez o que se previa que faria e nada restou, a ganhar ou aprender, dessa sua visita à Rússia. "Erdogan só falou para Washington, Berlin e Bruxelas. Era o público que queria alcançar. Quem se deixará enganar com esses truques?" Outro, cipriota e influente, acrescentou: "Putin deixou Erdogan tornar público o apoio que a Turquia dá aos tártaros da Crimeia. Por que Putin não comentou isso? Por que não condenou a ação de ocupação, dos turcos, em Chipre?"

"Não acredito na emergência de novos triângulos políticos" – diz Irina Zvyagelskaya do Centro Árabe e Islâmico de Pesquisas em Moscou. – "Não acho que, do dia para a noite, surjam mudanças na configuração das alianças. Vimos nossos amigos e parceiros darem alguns passos. No caso daqueles com os quais não vivemos em termos muito amigáveis, são passos táticos. Tudo isso é resultado da situação atual." 

A avaliação feita pelos russos, abertamente repercutida em Chipre e na Grécia, e mais discretamente em Washington, é que o golpe turco ainda não terminou. Um analista russo comenta em tom enigmático. "Ninguém, nem do gabinete de Putin, nem nos serviços de inteligência, jamais encontraria, para dar ao presidente Putin, qualquer razão para esperar coisa melhor de Erdogan, e a entrevista da Agência Tass é prova disso. O que não está claro é que benefício Putin calculou que obteria, por levar adiante toda essa farsa. Putin joga para ganhar tempo. Se o tempo de Erdogan se esgotar, o lado russo ainda poderá decidir se lamenta, ou não."*****




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