Dilma, na encruzilhada
Com o desfecho se desenhando, claro, voltaram as análises dos erros cometidos. E nesse caso, muitos veem o erro capital na demora de Dilma.
por André Roberto de A. Machado - na Carta Maior -11/08/2016
por André Roberto de A. Machado - na Carta Maior -11/08/2016
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Dizem que todo brasileiro é um técnico de futebol. Mas os vestibulandos sabem que a nossa população também é uma nação de orientadores vocacionais. Da mesma forma, os doentes dispõe de um especialista a cada esquina que pode sugerir aos enfermos tanto remédios clássicos como heterodoxos, além de uma lista enorme de benzedeiras, igrejas e afins. Agora a novidade, com o movimento “Escola Sem Partido”, é o desejo de formular uma política educacional sem debater com os educadores, tratando a matéria como assunto jurídico e legislativo. Não por acaso, professores fizeram circular na rede o meme “Eu apoio a Escola Sem Palpite”, numa clara crítica ao fato de que a maioria dos líderes e defensores desse movimento nunca foi um profissional de ensino. A verdade é que palpitar é um esporte nacional. Uma prática às vezes simpática, galhofeira e outras simples demonstração do desprezo por certos conhecimentos especializados.
Por dever de ofício, sempre observo a forma como as pessoas se apropriam do conhecimento histórico. E acho curioso o papel central que o palpite tem na mediação das pessoas com este saber. É quase uma vingança, uma subversão do homem comum contra um campo do conhecimento de que durante boa parte da sua existência reservou a sua essência a preservar o registro das ações dos homens de poder econômico e político. Assim, a história é recontada apenas para observar a inaptidão de certas decisões do passado, sem lembrar, é claro, que julgamos tudo isso do conforto do nosso lugar no presente, quando sabemos de coisas que nossos antepassados jamais poderiam ter certeza.
Por algum motivo que ainda não entendi, cresci ouvindo palpites e mais palpites sobre Napoleão Bonaparte. Antes que fosse capaz de entender que ele era mais do que estereótipo do louco de hospício das esquetes de TV, já tinha ouvido várias vezes, entre risadas, sobre a sua imprudência ao enfrentar os russos tão próximo do inverno, caindo em uma armadilha aparentemente pueril. Não sei se o fascínio era maior por Napoleão ou por imaginar o gélido inverno russo, mas continuei ouvindo isso vida a dentro. Não deixa de ser curioso pensar que à frente de um exército poderoso e de uma das revoluções mais importantes da História, Napoleão conquistou ou subjugou quase toda a Europa, humilhou reis e o Papa e modificou o panorama político do Velho Mundo que viria, na sequência, a ter consequências decisivas na própria independência dos países americanos. Mas é descrito como quase um imbecil, logicamente porque se esquece de todos os outros componentes que estavam jogo, a começar pela própria imprevisibilidade dos tempos gastos em campanhas militares quando se está fora do tabuleiro do “War”.
Decisões afoitas ou inibidas só são assim vistas depois do jogo jogado, quando perderam. Se vitoriosas, passam para o nosso imaginário como ousadia ou recuos táticos geniais. Mas os agentes, em seu próprio tempo, decidem com base nos dados que dispõem. Dessa forma, é cruel a análise, inclusive de parte da esquerda, que com frequência censura aqueles que decidiram caminhar para uma resistência armada contra o regime militar instaurado em 1964. Hoje é claro que a famosa “correlação de forças” tornava essa ação um suicídio. No entanto, como resistir ao exemplo cubano?
Depois de Barbosa, o goleiro da fatídica final da copa do mundo de 1950, certamente não há brasileiro que teve a sua conduta mais questionada do que João Goulart, o presidente deposto pelo golpe de 1964. Vez por outra, volta-se a questionar porque Goulart não teria enfrentando os militares que se sublevavam, quase que o culpando pelos vinte anos de ditadura que se seguiram. O paralelo óbvio é de Allende que saiu morto do Palácio do Governo. Só não se costuma lembrar que isso não evitou a ditadura que se instalou no Chile, tampouco o fato de que o líder do golpe, o general Pinochet, tinha sido um pouco antes integrado ao governo de Allende.
Aliás, há muitas proximidades entre o governo Allende e o último mandato de Dilma Roussef, para além da firme decisão de não renunciar, mesmo a beira do cadafalso: afinal, foram dois governos eleitos por uma margem muito estreita, assolados por uma paralisia de anos provocadas por um país dividido, instituições insurgentes e uma crise econômica que castigava os mais pobres. Não bastasse todas essas coincidências, é preciso lembrar que Allende imaginava que a solução para evitar um golpe e pacificar o país era a convocação de um plebiscito. No caso, a esperança era que a aprovação popular, enfim, legitimasse as suas propostas de reformas ou, em caso contrário, definisse a sua retirada do poder.
Por uma dessas ironias da história, parece que a última estratégia de Dilma Roussef para barrar o impeachment no Senado é também a proposta de uma convocação de um plebiscito. Mas diferentemente de Allende, desta vez a consulta seria para a realização de novas eleições, talvez apenas para presidente, talvez gerais ou, quem sabe, até para uma Assembleia Constituinte. A própria incerteza sobre a abrangência do plebiscito, por si, demonstra como a proposta se move em um terreno pantanoso.
A lógica por trás da proposta, liderada especialmente pelo senador Roberto Requião é simples: parte do entendimento de que Dilma não conseguiria reverter os votos necessários no Senado e que, mesmo que conseguisse, não teria condições de governabilidade, especialmente com a atual composição do parlamento. Tendo em vista esses dois fatores, oferecer a proposta de um plebiscito para convocação de novas eleições teria duas funções: por um lado, seria a demonstração máxima de que a presidenta afastada aceita negociar, inclusive abdicando do cargo num futuro próximo; em segundo lugar, acredita-se que o plebiscito poderia se tornar uma bandeira das esquerdas e talvez até dos opositores, devolvendo ao povo a decisão. É um pouco a esperança de conseguir reeditar o espírito da campanha das “Diretas Já”. Talvez seja justamente por isso que Dilma, em entrevista recente a BBC, defendeu o plebiscito contrapondo-se a um argumento dos líderes da Ditadura Militar: para Dilma, dizer que o plebiscito traria instabilidade política é o mesmo discurso que a Ditadura usou para negar por vinte anos as eleições diretas para presidente.
Uma vez posta na mesa essa proposta, o mais interessante foi perceber a paralisia que provocou entre as esquerdas, dividas entre o apoio e a contrariedade à medida. Tornou-se comum ouvir de pessoas muito esclarecidas, acostumadas ao debate político: “que decisão difícil. Não sei o que dizer”. Não é por acaso: afinal, ainda que um grupo muito restrito vá decidir sobre esse encaminhamento, chamou-se os movimentos sociais para compartilhar o peso da decisão. Para esmagadora maioria, foi a primeira e, talvez a única vez, em que uma “escolha de Sofia” de dimensões nacionais pede uma resposta em tempo real. Sem saber os desdobramentos do futuro, há apenas especulações. Se vitoriosa, seria um custo necessário para barrar as mudanças em curso no governo interino? Mas, se eleito um governo de direita, isso não seria o mesmo que legitimar a mudança nas políticas de inclusão que foram eleitas em 2014? Quer se chamar o povo para decidir, mas ele já não o fez em 2014? Novas eleições não são uma forma de legitimar o golpe? É preciso lembrar que até mesmo o presidente do PT desprezou publicamente esta hipótese, na semana passada, lembrando as dificuldades legais para viabilizar a proposta em menos de dois anos. Em seguida, Rui Falcão veio ser novamente contrariado por Dilma, mostrando a dificuldade para se chegar a um acordo sobre essa decisão.
São muitas questões sem resposta hoje. Não por acaso o gosto pelo palpite pareceu refluir. Mas certamente voltará daqui a alguns anos, ou talvez semanas, quando todos terão muita “certeza” de qual era o caminho certo a seguir.
Uma escolha para ganhar ou perder tudo
Durante as últimas semanas, ao pensar na encruzilhada que está posta à frente da presidenta Dilma, pensei nas semelhanças entre a sua situação e a de D. João VI em 1821.
Por uma dessas fantasias nacionais, a figura de D. João VI entrou para o imaginário nacional como uma caricatura, já descrita em clássicos e, ultimamente, reforçado pelo cinema: um homem indeciso, sempre arrastando as decisões para a última hora. E, claro, um devorador de frangos apaspalhado, ideia que mais provavelmente cristalizou-se no anedotário carioca em função da espantosa demanda por carnes que se criou com a chegada de uma Corte Europeia. Nada mais falso. Ao encarar os fatos em perspectiva, percebe-se que D. João VI esteve diante de encruzilhadas difíceis durante todo o reinado, equilibrando-se entre uma conjuntura europeia hostil, a independência da sua colônia mais importante e uma tentativa de golpe organizada no paço. Apesar de todas as condições desfavoráveis, D. João VI sobreviveu e conseguiu manter a independência portuguesa num cenário de enormes pressões externas. A própria manutenção da enorme colônia americana até a década de 1820 é mais surpreendente do que a sua perda.
A verdade é que D. João VI foi um político astuto e hábil. Mas, em 1821, chegara a sua prova mais difícil: no Rio passara-se a saber que, no ano anterior, um levante militar em Portugal iniciara uma Revolução que exigia a criação de uma constituinte e o retorno do rei para a Europa. A esta altura, antigas capitanias americanas já tinham deposto os governos escolhidos pelo rei, transformando-se em províncias e elegendo pela primeira vez as administrações máximas desses territórios. Com certeza foi espantoso saber no Rio de Janeiro que uma província como a Bahia tinha se levantado e, correndo o risco de ser condenado por lesa majestade, os baianos declararam sua adesão ao movimento revolucionário do Porto. Por trás de tanto entusiasmo de baianos, paraenses e logo dos cariocas, estava a perspectiva de gozar de um governo liberal, constitucional, logo beneficiando-se de novidades incríveis como a liberdade de imprensa. Numa surpreendente velocidade, apareceram uma grande quantidade de tipografias e jornais espalhados por todo o território, onde antes só era permitida uma imprensa altamente controlada, sob censura régia.
Como lembra Marco Morel, no fabuloso livro “As Transformações dos Espaços Públicos”, o surgimento da opinião pública no Brasil tem uma estreia nobre: toda a imprensa da época vai debater e opinar se D. João VI deveria ou não retornar a Europa, como era exigido pelas Cortes de Lisboa. De uma situação em que há poucos meses não havia liberdade para publicar uma coisa tola sem passar pela censura, agora qualquer homem com recursos suficientes ou influência para ser publicado poderia opinar sobre o destino do próprio monarca e da monarquia. Isabel Lustosa, em “Insultos Impressos”, livro no qual conta o que chamou de “guerra dos jornalistas” no começo da década de 1820, mostra como esse debate sobre a permanência ou não de D. João VI na América mobilizou toda a sociedade, com textos circulando em jornais ou mesmo panfletos, inclusive com participação do Paço.
Assim como Dilma, D. João estava em uma situação em que arriscava-se ganhar tudo ou perder tudo. Já vivera isso em 1807, mas na ocasião havia tropas francesas no seu encalço e uma marinha inglesa à beira de Lisboa que rapidamente podia transmutar-se de protetora à algoz. Portanto, fora uma questão de sobrevivência. Em 1821, não: as variáveis eram muitas. Como lembra a historiadora Márcia Berbel, no limite os revolucionários portugueses cogitavam até integrar-se à Espanha, então também tomada por um levante constitucional, caso D. João VI recusasse voltar a Europa ou tentasse retomar seus poderes absolutos. Assim como agora, com Dilma, o que estava em jogo era saber se haveria uma decisão que permitiria que o monarca continuasse a liderar o processo político, retomar a legitimidade. O problema, lá como cá, é que em uma situação como essa não há avaliação política que consiga dar conta de todas as variáveis.
E nestas situações sempre lembro de um episódio primoroso. Numa situação tão delicada, obviamente, D. João VI recorreu a pareceres feitos por homens de consideração no período. Um desses casos é narrado pelo historiador português Valentim Alexandre. Perguntado se o monarca deveria ficar no Brasil ou retornar a Portugal, o desembargador José Albano Fragoso foi incisivo: segundo ele, o Rei deveria voltar a Portugal porque jamais poderia garantir o controle do reino europeu com os recursos militares que tinha na América. Se fosse para Portugal, segundo Fragoso, ele ainda teria alguma chance de manter o domínio sobre o Brasil. Se ao contrário, insistisse em permanecer na América, perderia não só Portugal como não conseguiria manter a unidade dos domínios americanos já que, segundo Fragoso, as províncias do Norte, como Maranhão e Pará, seguiriam os destinos da Europa uma vez que os seus interesses estavam voltados para lá.
Como se sabe, talvez influenciado por essa análise, D. João VI decidiu retornar a Lisboa, mas não conseguiu manter o domínio americano. O que é interessante, no entanto, é que a análise do desembargador era absolutamente sensata. O quadro desenhado por ele é muito mais realista do que boa parte das análises feitas posteriormente por historiadores. Mas, como sabemos, as coisas saíram diferentes do que ele previa. Isto porque a política é muito mais dinâmica do que geralmente se supõe.
Quem estará fazendo hoje o papel que coube ao desembargador Fragoso? Quem hoje poderá dizer estar seguro do caminho a seguir?
Devolver o poder ao povo?
Não é à toa que Dilma, a exemplo dos defensores da convocação de um plebiscito, ligou à iniciativa a mesma ideia que moveu às Diretas Já. No entanto, naquela época a luta era para que a população tivesse o direito de votar e hoje o problema é que se respeite o resultado das eleições de 2014. Dois problemas diferentes, mas nos dois casos está o lembrete de que o poder emana dos povos e que nenhum governo ou parlamento está acima dessa máxima.
Trata-se de um argumento poderoso, mas nem sempre o suficiente para vergar as instituições. Tome-se sobre isso a década de 1830, na primeira reforma constitucional do Brasil, quando os liberais mais radicais ficaram inconformados com as próprias limitações impostas pelo Parlamento sobre o que deveria ser ou não modificado na constituição. O maior exemplo disso foi o veto imposto pelo Parlamento para que se discutisse o fim do Senado, uma das maiores defesas dos radicais que viam ali um resquício da Nobiliarquia e, na sua leitura, do Antigo Regime . Um dos maiores embates da época, o veto a essa discussão foi decidido por um voto de diferença, numa eleição em que os próprios interessados – os senadores com cargos vitalícios – decidiram a disputa. A vitória por um voto foi considerada como um escárnio e a solução dada por liberais radicais foi a de iniciar uma campanha reivindicando o poder popular como soberano sobre as instituições.
O artifício era simples: naquele tempo, para uma reforma constitucional, nas atas eleitorais tinha que constar uma autorização dos eleitores para que deputados fizessem as mudanças na Carta, deixando-se explícito o que podia ser modificado. Os ditos “exaltados” passaram a escrever na sua rede de jornais que bastava que as juntas propusessem autorizações amplas, nas quais fosse dada permissão para qualquer emenda constitucional, inclusive sobre o fim do senado. Há notícias de que algumas juntas eleitorais fizeram isso, mas a ação foi totalmente ignorada no Parlamento.
Está aí um triste verdade que parece acontecer também hoje: afinal, a Câmara e o Senado parecem estar imune a qualquer argumento, a qualquer clamor que os retire de um roteiro já traçado e que culmina no impeachment. É como se estas instituições, assim como as do século 19, vivessem em uma realidade paralela, em um clube de notáveis. Pouco importam pareceres do Ministério Público que desmerecem o argumento de crime de responsabilidade, pouco importa o argumento que as manobras contábeis acontecem em quase todos os Estados Brasileiros, pouco importam as sérias acusações de corrupção contra membros do atual governo. Não é à toa que se disse que o julgamento do impeachment no Senado era uma fala para surdos.
E aí se volta para a tática de convocação de um plebiscito para eleições gerais. Assim como estava na cabeça de Allende, os estrategistas de Dilma acreditam que essa é a única forma de chegar novamente a um consenso mínimo e revestir um governo de alguma legitimidade. É a ideia de devolver o poder de decisão ao povo e evitar que ele fique restrito ao Parlamento.
Mas há dois problemas aí. O primeiro deles é saber qual é o grau de sensibilidade dos senadores a esse clamor de devolver o poder ao povo. Em primeiro lugar porque, como dito acima, estes parecem viver no seu clube particular, imunes ao que acontece ao seu redor. As manifestações populares dos meses anteriores foram manipuladas nos discursos políticos, uma vez que cada lado usou apenas os protestos que lhes convinham para dar um lustro de credibilidade às suas decisões. Poucos tiveram a honradez de reconhecer de que o país está tristemente dividido e perigosamente conflagrado.
O outro problema, pouco refletido, é saber os limites desse artifício de retornar o poder ao povo. Sim, porque se é tão importante reconhecer que o poder emana do povo, ao mesmo tempo é preciso ter em mente que as instituições só são fortes quando as regras não são quebradas, quando há estabilidade no sistema. As contínuas quebras na governabilidade geram uma descrença perigosa.
Para os brasileiros, talvez o maior exemplo disso seja a nossa monarquia. Como se sabe, após dissolver a Constituinte de 1823, D. Pedro I impôs uma Carta Constitucional, a de 1824, que vai perdurar por todo o Império. Sempre lembram que D. Pedro I impôs nesta Carta a figura de um quarto poder, o Moderador, que tinha, entre outros atributos, o poder de dissolver o Ministério e também a Câmara dos Deputados. Talvez seja essa uma das maiores marcas de antipatia dos brasileiros por D. Pedro I, mas a verdade é que ele nunca chegou a usar esse poder para dissolver o Parlamento. Por outro lado, deixou essa “herança” para o filho que usou e se lambuzou desse recurso.
A consequência disso foi um sistema de governo que a cada impasse político resolvia-se com sucessivas quedas de Gabinete de Ministros e, muitas vezes, de dissolução do Parlamento, neste caso recorrendo-se a novas consultas populares. A contínua convocação de eleições para resolver os impasses nem sempre era visto como algo positivo. As sucessivas quebras de governabilidade parecem ter sido mais fortes e imprimido um ar carnavalesco e farsesco ao sistema político do Império.
Não por acaso, a literatura e o teatro do século 19 registraram o tom galhofeiro com o qual os cariocas viam as sucessivas quedas de governo e da Câmara dos Deputados. No final do século, França Júnior escreveu a famosa peça “Caiu o Ministério”, que trata exatamente do frenesi provocado por cada uma das mudanças de governo e como a cada uma delas o sistema caia em descrédito. A cena inicial da peça, passada no rua do Ouvidor, é o maior termômetro disso: vários homens, entre proeminentes políticos e aspirantes a cargos públicos, conversam sobre os acontecimentos como se estivessem em uma bolsa de apostas, tentando adivinhar qual seria o novo governo e como se beneficiar dele. Em uma história paralela, um golpista inglês tenta convencer o novo gabinete a lhe conceder um privilégio comercial para uma empreitada absurda: a criação de um sistema para subir o Corcovado puxada por cães. Até mesmo para o golpista, a situação política, com as sucessivas quedas de governo e parlamentos, era absurda e a maior ameaça para estabilidade política. O quadro pintado por França Pinto, de governo fracos, sempre à mercê de aproveitadores nacionais e estrangeiros, dá conta de como os brasileiros e os cariocas em particular viam o sistema monárquico.
No entanto, como sempre, nada supera a narrativa de Machado de Assis. Em “Um homem Célebre”, talvez o seu melhor conto, Machado narra as façanhas de Pestana, um homem frustrado por não conseguir produzir peças musicais ao estilo dos seus grandes mestres, como Mozart, mas que é um sucesso nas composições de polca, uma música muito popular no Rio do final do século 19. A história de Pestana é o brilhante resumo de Machado sobre a Corte no Rio de Janeiro: uma força criativa original que vive sob a vergonha de macaquear, e mal, a Europa. A questão é a que a composição de polcas de Pestana, como era comum à época, eram impressas por um editor e vendidas no comércio. As pessoas, então, reproduziam as composições nos pianos ou nos outros instrumentos das casas.
Como um artifício para aumentar as vendas, o editor de Pestana dava nomes chamativos para as peças e, muitas vezes, vinculava esses nomes a acontecimentos políticos. As quedas de ministérios eram tão comuns, que muitas dessas músicas levavam nomes que lembravam esses episódios. Na cena final do conto, Pestana estava mortalmente doente. Seu editor não sabia disso e fora lhe pedir uma polca para marcar a subida dos conservadores ao poder. Constrangido, disse que Pestana fizesse isso quando ficasse bom de saúde, mesmo sabendo que isso não aconteceria. Pestana, também consciente do seu fim, fez o que segundo Machado foi a sua única piada: disse que estando melhor faria duas: uma para agora e a outra para quando os liberais subissem ao poder. O rodízio entre os grupos políticos era tão certo quanto a morte de Pestana e por isso ele podia deixar uma “herança” ao editor. Maior chacota com um sistema político, era impossível.
O que talvez muitos não se deem conta é que atropelar as regras institucionais é ferir o sistema político mortalmente.
Esperando Godot: a Carta aos Brasileiros
Escrevo essas últimas linhas quando o Senado acaba de votar o relatório do Senador Anastasia. Por uma larga margem de vantagem, o Senado aprovou o relatório e tornou a presidenta réu. Ao que tudo indica essa mesma margem deve ser mantida na votação final e Dilma deve ser apeada do poder em definitivo.
Com o desfecho se desenhando, claro, voltaram as análises dos erros cometidos. E nesse caso, muitos veem o erro capital na demora de Dilma em lançar a “Carta aos Brasileiros”, na qual se comprometeria com a convocação de um plebiscito para novas eleições. A despeito sobre a eficácia ou não da medida, é fato de que o seu anúncio foi continuamente postergado, com a própria presidenta ironizando para os jornalistas o fato de que eram contínuos os pedidos de mudança na carta, entre os que estavam participando da sua redação. Daí, choveram comparações entre essa demora e o que teria sido a tônica do próprio governo, sempre lento, com um timing em eterno descompasso. Em resumo, passa-se a culpabilizar o próprio governo por sua queda por não ter sido capaz de criar um fato novo que revertesse o golpe.
Mas não deixa de ser irônico que um democracia como a brasileira, uma das maiores populações e economias do mundo, aguardem uma carta de intenções como sua salvadora, como se estivesse “Esperando Godot”. Parece que muitos agora, com o desfecho quase certo, apontarão essa demora como o erro fatal, ocupando hoje o papel que o desembargador Fragoso teve para D. João VI no século 19: o de vender uma análise política e uma estratégia invencível. Ao que parece a temporada de palpite post factum só está começando.
André Roberto de A. Machado é historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.
Créditos da foto: Roberto Stuckert Filho/PR
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