O gosto do pecado em Bosch. Por Francisco Louçã.
Hieronimus Bosch, ou Jerome van Aeken (c1450-1516), morreu há quinhentos anos e é agora homenageado por uma exposição no Museu do Prado, em Madrid.
por Francisco Louçã - no ESQUERDA.NET - 30 de Julho, 2016
por Francisco Louçã - no ESQUERDA.NET - 30 de Julho, 2016
A pintura de Hieronimus Bosch é excepcional, pela iconografia única, pelo simbolismo revelado e escondido das sua metáforas, pela imaginação transbordante que alguns entenderam como exprimindo os sentidos de artes ocultas, pelo detalhe minucioso e pela força crítica da descrição da humanidade e das suas alucinações
Hieronimus Bosch, ou Jerome van Aeken (c1450-1516), morreu há quinhentos anos e é agora homenageado por uma exposição no Museu do Prado, em Madrid.
A sua pintura é excepcional, pela iconografia única, pelo simbolismo revelado e escondido das sua metáforas, pela imaginação transbordante que alguns entenderam como exprimindo os sentidos de artes ocultas, pelo detalhe minucioso e pela força crítica da descrição da humanidade e das suas alucinações.
Surpreendentemente benquisto pelos poderes do seu tempo, a sua obra foi acolhida por Filipe II e assim ficou protegido de qualquer interpretação oficiosa e punitiva – mesmo quando incluía na denúncia da corrupção por exemplo uma caricatura de certa Igreja, como se vê no detalhe ao lado (clique para ampliar). Poucos se poderiam atrever a tanto, no seu tempo.
Essa liberdade foi explorada por Bosch para criar o mais provocador dos projectos artísticos a partir de uma interpretação livre dos textos bíblicos, precisamente o que seria mais vigiado. É então por devoção ou por transgressão que nos pinta essas paisagens de tentação no paraíso e de pecados no caminho até ao Juízo Final?
O “Jardim das Delícias”, a sua obra mais reconhecida, é manifesto de cepticismo desiludido sobre a racionalidade humana, pois todos se deixam levar pela luxúria, ou é uma ironia sobre as pulsões humanas, algumas descritas com afecto?
Não sabemos nem podemos saber do que pensava o pintor, só do que vemos.
Mas olhe então para as reproduções dos quadros. Estão cheios de símbolos da vida e da criação e não poupam a realidade dos poderes da terra. Nas “Tentações de Santo Antão”, um quadro do Museu de Arte Antiga, em Lisboa, encontra uma descrição dos poderes sociais, a aristocracia, a igreja, os seus ministros. Mas, nesse como noutros, há descrições do amor dentro de uma redoma: é denúncia da tentação, como as autoridades aceitaram ver, ou é também, ironicamente, a exibição do prazer? É um retrato da vida libertada ou uma condenação da vida?
É ainda de registar que o paraíso é solitário, nele chilreiam passarinhos e passeiam animais encantadores. Mas é solitário. Onde estão as construções artificiosas, onde estão as pessoas, onde cavalgam as paixões, é onde está a tentação e onde se pode cair no inferno.
Duzentos anos antes, na “Divina Comédia”, Dante descreve com palavras – mas registe-se a importância que a representação gráfica teve para a divulgação da sua obra – este percurso entre inferno, purgatório e paraíso, mas o seu paraíso é distinto do de Bosch: é o lugar do misticismo. Na pintura de Bosch, em contrapartida, esse misticismo invade todos os terrenos da imaginação e só nos podemos perguntar se não é na vida corrente, como atestam os dois últimos detalhes aqui reproduzidos, que se se encontra o prazer. Essa seria a mais perturbante e fascinante das insinuações.
Será isso que vêem os nossos olhos, já desabituados do deslumbramento do paraíso, ou é o que nos queria dizer o pintor? Mais uma vez, não sabemos.
Mas ele aí está, nestes trípticos magníficos, a mostrar que o humano é uma invenção sem freio e que há mais entre a terra e a lua do que sonhos na nossa imaginação.
Artigo de Francisco Louçã, publicado em blogues.publico.pt a 27 de julho de 2016
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