'Não há crime': Lula mantém a fé no partido e no sistema judiciário

Enquanto Lula lida com instabilidade dentro do PT e perspectiva de julgamento, está aberto o debate se o 'melhor presidente do país' é vítima ou vilão.

Jonathan Watts, The Guardian - Carta maior - 06/07/2016


Ricardo Stuckert/Instituto Lula
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Na noite em que a Câmara dos Deputados do Brasil votou pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, ela assistiu aos procedimentos na televisão com seu predecessor no cargo, Luiz Inácio Lula da Silva.
Rousseff pareceu calma e até pediu pipoca. Mas Lula – um homem emotivo – chorou ao menos três vezes. 
“Foi muito triste. Eu sofri muito”, relembrou o fundador do PT em uma entrevista ao The Guardian. “Eu vi o projeto de transformar esse país se despedaçando”.
Outrora um baluarte da esperança por uma sociedade global mais justa, o Partido dos Trabalhadores que Lula fundou está sendo decapitado, e suas conquistas em 13 anos de governo de aliviar a pobreza, aumentando o acesso à educação e promovendo gastos com assistência medica estão sendo desfeitos como um resultado da recessão e de cortes de gastos. 

Quando ele deixou o cargo em 2010, Lula – como é conhecido mundialmente – era o presidente mais popular do mundo, uma figura carismática de um mundo em desenvolvimento confiante e o arquiteto de um projeto democrático de centro-esquerda para reduzir a desigualdade no Brasil. 
Desde então, no entanto, a economia deteriorou, os ventos da política global mudaram de direção da cooperação à competição, e uma vasta investigação anti-corrupção no Brasil condenou muitos políticos, incluindo muitos aliados de Lula.
Hoje, ele sabe que pode ser levado a julgamento qualquer dia. O ex-presidente é alvo de ao menos quatro investigações criminais; suas ligações telefônicas privadas foram gravadas secretamente e vazadas para a mídia; a polícia o deteve brevemente para questionamento. Sua sucessora, Rousseff, foi suspensa do cargo, impichada e tão abalada pelo governo interino de centro-direita que, mesmo ela ainda sendo a presidente oficial do país, amigos iniciaram uma vaquinha para pagar seus gastos com viagens. 



A decaída do governo do PT foi uma de proporções Shakesperianas, mesmo que a dúvida se Lula é vítima ou vilão continue objeto de debate. 
A questão sobre de quem é a culpa divide o país amplamente em falhas sísmicas políticas. A direita alega que Lula é uma figura tipo o Rei Lear de Shakespeare, que cavou sua própria cova com mal gerenciamento econômico, erros políticos e forjando uma cultura de corrupção ao longo setor público. A esquerda o vê mais como um Otelo, um grande líder abalado por traição.
Grandes protestos esse ano sugeriam  que muitos eleitores estavam cansados de um político e um partido que falhou em alcançar as expectativas e que se tornou parte integrante de um sistema que eles prometeram mudar.
Lula vê as coisas de um modo diferente. Ele acredita que a ênfase do PT nos pobres, políticas de redistribuição e aumento dos gastos públicos com educação e saúde públicas foram encaradas negativamente por uma classe política que cresceu acostumada com as coisas do seu jeito. 
“Eu acredito sinceramente que isso incomodou muita gente. Agora existe mais (nova classe média) nas ruas, nos teatros, nos aeroportos. Pare da elite não quer dividir”, ele disse.
Os vazamentos e investigações, como ele os vê, são parte de uma conspiração para remover o PT e evitar que ele concorra novamente para a presidência em dois anos.
“Eu acredito que há um acordo entre algumas partes da mídia, os promotores públicos e a polícia para destruir minha imagem”, ele disse.  “É tudo com um objetivo: condenar Lula. [Têm pessoas que acreditam] que ‘não podemos deixar esse homem concorrer em 2018’”.
Dado o contexto regional amplo de recentes derrotas eleitorais de governos de esquerda na Argentina, Venezuela e Bolívia, uma parte da esquerda vai além. Eles vêem forças terríveis trabalhando, incluindo conspirações da CIA.
Mas Lula dispensa sugestões de que os EUA estejam envolvidos em conspirações para abalar os líderes de esquerda na região. “Eu não acredito”, ele disse. “Os Venezuelanos têm razão de suspeitar dos EUA por causa do golpe (que removeu brevemente Hugo Chávez do cargo) em 2002 ... Mas eu acho que os irmãos venezuelanos estão cometendo um erro. Eles precisam dialogar com todos os setores da sociedade”.
Lula era um aliado próximo de Chávez e Nestor Kirchner na Argentina. Ainda esse ano, ele usou uma metáfora futebolística para descrever os três, como “Messi, Neymar e Suarez” da esquerda latinoamericana.
Diferentemente de seu equivalente venezuelano, no entanto, Lula preferiu a negociação ao confronto e recusou corrigir a constituição para que pudesse concorrer ao cargo eternamente. Ao invés, ele saiu ao final de seu segundo mandato e deixou Rousseff tomar seu lugar. “Eu já disse muitas vezes que a coisa mais importante em uma democracia é a mudança de poder. Eu não concorri a um terceiro mandato consecutivo. Eu não acredito em pessoas que não podem ser substituídas. É assim que nasce uma ditadura”.
Isso o faz uma pessoa mais frustrada sobre o modo como o PT está sendo retirado do poder mesmo não tendo sido derrotado em eleição desde 1998. Em 2014, ganhou mais um mandato presidencial de quatro anos. Em menos da metade do caminho desse mandato, foi removido à força.
“Eu perdi três eleições, mas eu respeitei a escolha do ganhador pelo povo”, ele disse. “Mas a direita não espera”.
Ele ainda não desistiu da ideia de que Rousseff  pode retornar. Para sobreviver na votação final em 17 de agosto, ela precisa persuadir seis senadores a mudarem de ideia. Soa como um quantidade pequena, mas Lula reconhece que exigirá um tanto de convencimento. Mesmo não dizendo diretamente, ele parece exasperado por Rousseff não ir mais para o embate.
“Dilma precisa dizer o que vai acontecer no país se ela retornar à presidência. Ela precisa dizer o que irá fazer que será novo, como ela irá construir novas relações políticas. Ela precisa dizer isso. Eu não consigo. Ela tem que fazer as pessoas acreditarem”.
Há uma especulação constante de uma fissura entre Lula e Rousseff, particularmente pela direita. Um ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, disse ao Guardian que o maior erro de Lula foi sua escolha de sucessor. Outro ex-presidente, José Sarney, foi gravado secretamente dizendo que Lula o havia dito a mesma coisa. A delação premiada de Delcídio do Amaral sugeriu que a relação entre os dois lideres do PT é competitiva. E a decisão de Lula em não participar, junto com políticos antigos do partido, de uma conferência de imprensa de despedida para Rousseff no palácio presidencial, alimentou essa discussão.
Lula, no entanto, insiste que não tem arrependimentos. “Sou orgulhoso de ter nomeado Dilma e de a ter eleito”, ele disse.
É Lula, no entanto, que gerou as maiores paixões. Votações sugerem que ele ainda é o político mais popular no Brasil, com uma taxa de apoio de 21%, pouco acima da ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, com 19%, e o candidato a presidência pró-corporações, Aécio Neves com 17%. Rousseff chega aos 10% e o presidente interino Michel Temer, de acordo com as pesquisas mais recentes, tem aprovação de 13%.
Lula – uma figura profundamente dividia – também tem a maior taxa de reprovação do que qualquer outro político, mas continua como o foco de esperanças do PT. Muitos esperam que ele concorra e ganhe de novo.
“Eu gostaria que outra pessoa concorresse. Eu saí com uma taxa de aprovação de 87%. Eu era o melhor presidente da história do Brasil. É quase uma missão impossível tentar repetir essas performance. Eu teria que competir contra eu mesmo”.
A decisão também caberá aos juízes. Lula é o alvo principal da investigação Lava Jato na companhia estatal de petróleo Petrobrás. Promotores descobriram muitas evidências de que diretores da Petrobrás e outras companhias estatais pagaram um preço excessivo à empreiteiros em troca de propina e doações de campanhas à políticos e partidos da coalizão principal. 
Os apoiadores de Lula argumentam que essa prática comum era eticamente errada mas não ilegal, adicionando que antecede ao PT e acontecia com todos os outros partidos e também acordos do setor privado. Críticos dizem que com Lula, a corrupção foi sistematizada e elevada à novos níveis. 
Há uma razão para isso. Diferente da direita, o PT não podia contar com o setor privado para financiar campanhas imensas para ganhar as eleições e comprar apoio no Congresso. O melhor que pode ser dito disso é que era corrupção por objetivos ideológicos ao invés de pessoais. O pior é que foi de encontro com as promessas do partido de limpar a política. Ao invés, o PT foi sugado para o sistema.
Lula alega que o problema é simplesmente do financiamento de campanhas e que pode ser revertido com uma reforma.
“Porque eles não investigam como todos os partidos políticos juntam fundos?” disse o ex-presidente. “O jeito como foi feito, temos a impressão de que todo o dinheiro para o PT é sujo, e todo o dinheiro para o PSDB [o partido de direita Social Democrata Brasileiro] é limpo”.
Mas, não deveria Lula – como ex líder de um país e de um partido que se beneficiou politicamente do sistema – ser responsabilizado pela corrupção endêmica que traiu o público em bilhões de reais? Essa é a acusação que foi feita pelos promotores, que alegam que Lula foi a grande mente do esquema ilegal da Petrobrás.
O ex-presidente insiste que é tudo baseado em presunções errôneas.
“Há a teoria de que o ‘chefe deve saber’ ou de que somos culpados de incompetência [por não saber]. Mas não há crime”, ele alega.
Essa não é a única ameaça dos investigadores. O caso mais avançado contra ele é que ele obstruiu a justiça e iniciou uma tentativa de comprar uma testemunha contra ele. O delator Amaral disse ao Guardian que ele testemunhou que Lula pediu que ele ajudasse um ex-diretor da Petrobrás, Nestor Cerveró, que foi preso ano passado. Isso levou primeiramente a pagamentos à família do encarcerado e depois a discussões sobre como tirá-lo do país de avião ou barco. Lula diz que Amaral está mentindo. “Ele construiu uma narrativa fantasiosa para ajudar ele mesmo”, ele disse, argumentando que o uso de detenções preventivas para assegurar delações premiadas pode produzir testemunhos distorcidos.
Muitos desses casos agora estão nas mãos do juiz Sergio Moro, um juiz de Curitiba que se tornou uma celebridade nacional graças aos seus esforços para prender pessoas ricas e poderosas que já aproveitaram demais a impunidade. Moro tem uma reputação por trabalhar rapidamente e ignorar reputações. Muitos dos membros da família de Lula e amigos temem que Moro ponha o ex-presidente em julgamento cedo.
Lula alega que lida com essa perspectiva com serenidade porque ele acredita no sistema judiciário brasileiro.
“Não tem ninguém no Brasil que esteja mais tranquilo que eu”, ele disse. “Seu eu for a julgamento, saberemos se as acusações contra mim são verdadeiras ou não”.
Aos 70 anos de idade, o fundador do PT  pode sentir que ganhou o direito de ser otimista. Ele já experienciou coisa pior. Cresceu em meio a tanta pobreza que, às vezes, não tinha o que comer quando criança. Seu irmão foi preso e torturado durante a ditadura. Perdeu três eleições presidenciais antes de sua vitória histórica em 2002. Mais recentemente, ele passou por quimioterapia por um câncer na garganta.
Mesmo com a Espada de Damocles sobre ele, Lula sente que seu lugar na história está seguro. “As maiores conquistas dos últimos 13 anos não serão perdidas por mais que eu esteja em julgamento”, ele disse. “Não planejo mudar quem eu sou. Fui o melhor presidente”. 

Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

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