Quando o sol se põe no império inglês
Na madrugada, quando começavam as apurações do referendo que acabaria por aprovar a saída do Reino Unido da União Européia, algo me chamou a atenção.
As únicas áreas onde o “permanecer” ganhava com grande folga do “sair” eram justamente aquelas que sempre tiveram resistências em se sentir parte de um “Reino Unido”, que unido nunca foi totalmente.
Escoceses e irlandeses do Norte votaram em bloco pelo “remain” na União Europeia.
Os distritos londrinos, onde a imigração é mais intensa e sensível, também. Um gráfico do The Guardian mostra que o “ficar” foi amplamente majoritário nas circunscrições onde era maior o número de eleitores não-nascidos no Reino Unido, como você vê ao lado.
A batalha foi, decidida, então, na antes chamada “classe trabalhadora”, conceito que o neoliberalismo, muitas vezes com a cumplicidade da esquerda, ansiosa por um conceito de “classe média” que a encantava pela aceitação que produzia no jogo político.
Decidida e perdida.
A “austeridade”, desde 2008, foi transformando ilusão em pesadelo.
O mundo deu um passo atrás esta madrugada. A Europa, vários, desde o sonho de Victor Hugo dos “Estados Unidos da Europa”. O Reino Unido…bem, este parece começar a dar adeus ao “unido” que nunca foi.
Reproduzo o magnífico texto de Rosana Pinheiro-Machado, escrito sob a tristeza e a decepção desta madrugada:
Essa madrugada, para muitos no Reino Unido, foi um pesadelo. Bandeiras espalhadas pelas casas e gritos de alegria de vizinhos a cada voto para sair. Não sou europeia, mas a cada grito eu confirmava que Londres é uma ilha. Nestes últimos anos, tive a oportunidade de viver o que os ingleses chamam com orgulho de ser a Inglaterra: o interior, especialmente ao norte. A cada grito me senti expulsa. A cada grito eu entendia que este não é o meu lugar. Era o grito engasgado de muitas famílias inglesas que conheci fora da outra ilha – chamada Oxford.
Eu passei a madrugada acompanhando todos os debates em cada canto deste país. Nem vou citar aqui a questão da xenofobia – que é o tema mais discutido e mais óbvio da questão. A xenofobia é apenas um dos sintomas de uma grave crise que começou com o fim da classe trabalhadora (e sua capacidade de articulação) na Inglaterra desde os tempos de Thatcher.
Quem vive no Reino Unido, é de esquerda e acredita na democracia teve que se deparar com questões muito intrigantes nos últimos tempos. Eu vi os maiores democratas que conheço comentando que “como dar uma decisão tão importante para o povo ignorante?”. Este é o ponto central para todos aqueles que acreditam na democracia direta. Então não se pode dar ao povo a decisão porque o povo é ignorante? Quando que pode se dar ao povo então a capacidade de decidir? Quando houver debates intelectuais? Quando isso vai acontecer? Quando vai existir esse dia em que votaremos racionalmente e não com emoção? Quando teremos debatido o suficiente para escolher o rumo de um país? Eu tive que aguentar a noite vendo políticos do Labour dizendo que o povo era ignorante. Que paradoxo.
Foram semanas de movimentação. Brigas entre amigos e familiares – nada que nós brasileiros não estejamos acostumados. Foi uma decisão emocional – como sempre é – baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.
Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. O maior problema é a vida fodida da classe trabalhadora que perde seu estado de bem estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou. Tudo acabou.
Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe (sem levar muito a sério o conceito aqui, okay?) da classe trabalhadora, especialmente do norte do país que empobreceu. O desmonte da identidade de classe começou com Thatcher, que agiu no âmago da troca de subjetividades e do orgulho de classe. Como diz Jones, tampouco penso que amar ser trabalhador de uma mina de ferro seja o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora. “O problema são os pobres” – gritava uma trabalhadora da Universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.
Os trabalhadores mostravam rejeição a toda forma política “Nós queremos chutar para fora todos os políticos” –mas, no fim das contas, chutou-se contra si mesmo, pois quem vai pagar a conta da recessão certamente é a classe trabalhadora.
Todas as comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade – o que é uma loucura tremenda, mas que temos que ouvir e entender.
Temos, como no Brasil (pedindo desculpa por esta comparação rasa e anacrônica) uma massa perdida e revoltada e uma esquerda – o labor – incapaz de reorganizar a classe trabalhadora. Uma massa – como diria Thompson – cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem. É o que aconteceu aqui esta madrugada. As pessoas votavam – cegamente – pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.
Como sempre são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. Não tenho esperanças numa eleição de Corbyn. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro.
Uma tristeza.
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