Nassif: Xadrez do desmanche nacional
SEX, 03/06/2016 - 00:17
ATUALIZADO EM 03/06/2016 - 00:41
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Se algum historiador ou cientista político quiser um estudo de caso porque países seguidamente perdem as janelas de oportunidade abertas pela história, debruce-se sobre o Brasil.
Durante um breve período de tempo o país conquistou avanços inéditos. Avançou nas formas de participação popular nas políticas públicas, definiu uma nova estratégia diplomática, inovou em políticas sociais, industriais, na diplomacia comercial.
No período Dilma foram abandonadas várias dessas iniciativas. Faltava à presidente dimensão política para entender o alcance tanto da diplomacia quanto das formas de participação.
Deixou de lado, mas não desmontou as políticas recebidas. Esta é a diferença central em relação ao interino Michel Temer.
Mesmo sendo interino, o governo Temer está promovendo o maior desmanche de políticas públicas da história. É uma nuvem de gafanhotos avançando sobre qualquer grama à vista, em uma demonstração tão ostensiva de despreparo e prepotência que lembra as mais atrasadas republiquetas latino-americanas.
A montagem de políticas públicas é trabalho de ourivesaria. Envolve segmentos sociais e econômicos, definição de práticas, consolidação de valores, de conceitos, abertura de canais de participação. Foi graças a esse trabalho pertinaz que o país manteve a continuidade nas políticas de saúde, com a apropriação da pasta por sanitaristas a partir da Constituinte; que avançou na educação, na diplomacia, graças à continuidade de sucessivos governos.
De repente, entra um novo governo que se aboleta no poder e não dispõe de quadros minimamente preparados sequer para entender os pontos centrais de cada área.
Nem o Ministério do governo Sarney conseguiu acumular tal dose de ignorância bruta. Ministros da Educação sem um pingo de conhecimento sobre a área; chanceler totalmente jejuno em questões diplomáticas; Ministro da Casa Civil empenhado em destruir qualquer organização que tenha o cheiro do governo anterior.
Desmanche na Educação
O Fórum Nacional de Educação (FNE) foi um enorme avanço em políticas públicas. Junta representantes de todos os setores, de sindicatos de professores a ONGs do setor privado. Logrou uma mobilização ampla na Conferência Nacional de Educação de 2010, mais de 800 mil pessoas definindo um conjunto de metas em todas as áreas da educação.
Mal chegou ao cargo, o novo Ministro da Educação Mendonça Filho mandou demitir todos os funcionários da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e oito da Secretaria Executiva.
Nem se preocupou em saber para quê servia a Secretaria, qual a relevância do FNE. De uma penada, desmontou uma estrutura central para os avanços da educação brasileira.
Fez mais. Hoje em dia há um trabalho grandioso de educação inclusiva, que colocou na rede pública cerca de 800 mil alunos com alguma forma de deficiência. Mendonça acaba de demitir todo o departamento que cuidava disso e anunciar a volta das crianças para o redil das APAEs (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais), cuja Federação se transformou em um enorme sorvedouro de dinheiro público e cuja pedagogia (com exceção de poucas APAEs, como a de São Paulo) foi condenada nos principais fóruns pedagógicos internacionais.
Desmanche na diplomacia
Levou anos para que a diplomacia brasileira assumisse um protagonismo maior no cenário global. Foram décadas de trabalho profícuo, de montagem de alianças no cipoal sutil e sofisticado da diplomacia internacional, onde entram as ligações com os países vizinhos, as relações com os Estados Unidos, as estratégias para consolidar o papel do Brasil no mundo, nas instituições multilaterais, e a maneira a aproveitar da melhor forma possível esses avanços diplomáticos.
Nos últimos anos, o país logrou colocar um representante na OMC (Organização Mundial do Comércio), outro na UNCTAD, na crise de 2008 liderou blocos relevantes, o G20, os países exportadores agrícolas, os BRICs. Enfim, ganhou uma dimensão e um protagonismo que não se via desde a Operação Panamericana, no governo JK.
Aí José Serra assume a chancelaria. Criticava-se muito em Dilma o voluntarismo, a maneira de interferir e travar temas sobre os quais não tinha nenhum conhecimento mais aprofundado. Perto de Serra, Dilma é um poço de racionalidade e flexibilidade.
Para se mostrar decidido, Serra toma qualquer decisão que passe à sua frente, mesmo sem ter a menor ideia sobre as consequências. Faltam-lhe conhecimentos básicos sobre diplomacia e, menos ainda, sobre estratégias diplomáticas.
Passou a tocar diplomacia de ouvido, repetindo bordões sobre acordos bilaterais, sem entender que a própria posição do país nos organismos multilaterais fortaleceria sua posição nas negociações bilaterais.
Bastou o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, chamar sua atenção para a possibilidade de atuar nas duas frentes, para Serra pegar a borduna e bater na mesa, como um punk de periferia. Na mini reunião ministerial da OMC, acusou a instituição de enfrentar o imobilismo, falhar em derrubar os subsídios e barreiras sanitárias e fitossanitárias. E sinalizou que o Brasil poderia “tomar outros caminhos”.
Serra regurgitava impropérios contra a OMC e os jornais divulgavam o fato da China ter-se transformado no maior comprador de carne bovina brasileira. Motivo, o extenso trabalho de derrubada das barreiras fitossanitárias empreendido pelo governo Dilma, através da Ministra da Agricultura Kátia Abreu. E não apenas na China, mas em todo o mundo.
Enquanto Serra submetia os demais ministros presentes ao encontro a um esforço ingente para disfarçar o choque com tal demonstração de ignorância, nos bastidores seus assessores diziam para os jornalistas não levar a sério a bazófia: não haveria hipótese de desligamento da OMC. Vai discutir subsídio agrícola onde? Na Mooca? No Ceasa?
Não apenas isso. Não conseguiu entender a importância da África para o país, o espaço que se abre para o agronegócio e para as construtoras brasileiras.
Desmanche na EBC
A maneira como o Ministro-Chefe da Casa Civil Eliseu Padilha investiu contra a EBC é a demonstração cabal de que a lei... ora a lei.
Graças ao Ministro Dias Toffoli, a lei foi restabelecida. E é surpreendente a maneira como foi recebido o voto de Toffoli. Em qualquer circunstância, seria mais do que óbvio, visto que o interino recorreu a uma Medida Provisória para intervir em uma fundação cuja autonomia é garantida por lei.
Mas os tempos são tão bicudos, é tão precário o conceito de segurança jurídica, que a decisão de Toffoli configurou-se um ato de coragem e a primeira prova da independência do Supremo em relação ao governo interino.
No final do dia, corriam os boatos que, em represália, Padilha faria Temer encaminhar um projeto de lei propondo a extinção da EBC.
A segurança jurídica
A desenvoltura com que o governo interino se lançou na missão de destruir tudo o que lembrasse o governo de fato é a demonstração mais cabal da insegurança jurídica do país e da anomia absoluta do Supremo.
O novo normal jurídico criou um arremedo de civilização, um retrocesso como não se imaginaria alguns anos atrás.
1. Tira-se uma presidente do órgão por questões orçamentárias, atropelando tudo o que é previsto na Constituição.
2. Um interino assume e desmonta toda uma estrutura pública sem ao menos se ter a certeza de que permanecerá além dos 180 dias do interinato.
3. Procuradores e delegados transformam os inquéritos em julgamentos políticos, selecionando as vítimas e vazando informações antes mesmo que a defesa dos acusados seja comunicada.
4. Um Ministro do Supremo – Gilmar Mendes – manifesta diuturnamente suas preferências políticas, decide de acordo com suas convicções políticas, sem ao menos manter a congruência de seus próprios votos, e nada ocorre. Não é declarado suspeito.
Não tem como evitar um profundo sentimento de vergonha quando se observa a que foram reduzidas as instituições brasileiras.
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