Amanhã há de ser outro dia
Há quem veja agora apenas uma onda conservadora avassaladora e o silêncio. Mas há rebeldia por toda parte.
por André Roberto de A. Machado - na Carta Maior
por André Roberto de A. Machado - na Carta Maior
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Hoje você é quem manda / Falou, tá falado /Não tem discussão
(...) Apesar de você / Amanhã há de ser /Outro dia
Eu pergunto a você / Onde vai se esconder /Da enorme euforia
Como vai proibir / Quando o galo insistir /Em cantar
Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar
Chico Buarque, Apesar de você
Logo depois da votação do impeachment de Dilma Roussef na Câmara dos Deputados, cheguei em casa e peguei o único Hemingway da prateleira. Não sou um grande conhecedor de Hemingway, nem mesmo um profundo admirador da sua literatura. Mas foi um ato imediato, impensado. Larguei inacabado o romance do português Lobo Antunes que tinha me acompanhado na viagem, uma história engenhosa de um homem velho entre o delírio e a vida em seus dias finais, e agarrei uma narrativa solar. Mas não era a literatura que eu buscava.
Depois de algum tempo, entendi que eu buscava mesmo era a companhia de Hemingway, como a de um amigo mais velho que talvez me explicasse o que estava acontecendo. A verdade é que nos últimos dias tenho pensado muito na vida de Hemingway que, na verdade, é muito parecida com a maior parte da história dos homens de todos os tempos: um indivíduo que saltou de uma guerra para outra, de um desastre para outro até desembocar em um suicídio, ironicamente repetindo a atitude do pai. Exceção mesmo só foi o sucesso literário e o fato de que, no meio tempo entre tudo isso, até teve a chance de viver em uma Paris que faz inveja a todos nós.
Talvez se possa dizer que Hemingway era exímio em estar ao lado do perigo: afinal, alistou-se na Primeira Guerra e foi voluntário na Guerra Civil Espanhola contra os franquistas. Mas a verdade é que só viveu intensamente os problemas do seu século. Ele não podia, simplesmente, pedir que o mundo não fosse o caos de sempre para que ele pudesse construir uma obra literária, assim como compreendeu, especialmente na Espanha, que é preciso descobrir o lado certo da luta.
Como Hemingway, a verdade é que hoje eu me pego a pensar nas várias pessoas que admiro e devo reconhecer que suas vidas foram cheias de percalços, na maior parte das vezes saltitando entre guerras, prisões e regimes autoritários. Não é por acaso que o gênio Galileu foi o tema de uma das peças mais emblemáticas de Brecht: afinal, não foram poucas as vezes que a ignorância e a força silenciaram um avanço da humanidade. Se não faltaram humilhações e dissabores pessoais, também é verdade que as ideias de Galileu venceram, a exemplo do que aconteceu várias outras vezes. Os gregos, que tanto admiramos, condenaram Sócrates à morte, mas antes lhe ofereceram a chance de renunciar ao que pensava, o que ele não aceitou. Chaplin e boa parte dos mais relevantes artistas radicados nos Estados Unidos durante o século XX foram caçados pelo marcartismo, numa irônica repetição das Bruxas de Salém. Alain Turing, o gênio da matemática e da computação, lutou contra os nazistas em nome da liberdade, mas não teve ele mesmo liberdade: foi perseguido e castrado quimicamente na moderna Inglaterra, poucas décadas atrás, por ser homossexual. Graciliano, talvez o autor mais importante da minha formação literária inicial, foi preso e padeceu todo o tipo de arbitrariedade. Guimarães Rosa teve o desprazer de estar na Alemanha nazista, onde chegou a ser detido depois de ajudar centenas de judeus a imigrar. Alguns dos historiadores franceses mais marcantes do século 20 foram também soldados ou prisioneiros. Mesmo o homem que me ensinou a ser historiador, esteve ele mesmo em campos de concentração na Segunda Guerra, desenraizou-se da sua própria terra para cair no Novo Mundo que algumas décadas depois lhe reservaria uma ditadura militar e uma prisão. Ele não teve como pensar a vida à base de metas e planejamento. Ao contrário disso, em um mundo sem backup e nuvens, mais de uma vez teve que picar textos prontos para evitar que caíssem nas mãos da repressão, várias vezes voltando à estaca zero da sua produção, como se fosse Sísifo.
Tenho pensado muito em tudo isso porque acredito que para nenhum outro grupo o Golpe de Estado que está acontecendo é pior do que para a geração que, como eu, está chegando hoje aos 40 anos. Não tenho dúvidas de que é algo terrível para aqueles que viveram a repressão da última ditatura e conheço relatos muito tristes de pessoas que começam a ter reminiscências desse tempo. No entanto, para aqueles que estão próximos dos 40 e não tiveram pais ou pessoas próximas diretamente atingidos pela repressão, encarar o avanço assustador do conservadorismo, aqui coroado com um golpe parlamentar muito semelhante a de outras partes da América Latina, é difícil de assimilar por falta de repertório.
Afinal, nós somos a exceção da história da humanidade: excetuando os anos finais da Ditadura começada em 1964, quando éramos muito novos para compreender o que estava acontecendo, a nossa vida foi toda percorrida em um regime democrático. Cambaleante, sim. Excludente, sem dúvida. Mas no qual as regras do sistema representativo foram, de modo geral, respeitadas, apesar de um Proconsult aqui ou da deposição de Jackson Lago do governo do Maranhão em pleno governo Lula. De toda forma, não aconteceu nada parecido como esta tentativa de inversão de um resultado eleitoral, quando o programa de governo derrotado está prestes a ser implementado por via de uma espécie de “indiretas já”. Ao contrário disso, os resultados eleitorais, ao menos no plano nacional, foram não só respeitados, como é inegável uma melhoria do país e avanços à esquerda em quase todas as áreas, mesmo que sempre insuficientes para o nosso gosto. Da mesma forma, nunca vivenciamos pessoalmente uma guerra, a não ser nas redes sociais. Não choramos a dizimação do país por uma peste ou desastre natural de enormes proporções.
Mais uma vez, somos a exceção da história da humanidade. Vivemos todos nós uma espécie de ilusão de que as nossas histórias pessoais poderiam ser planejadas, sem um sacolejar da história que talvez levasse as nossas expectativas pessoais para o segundo plano. Mas parece que agora as coisas mudaram e talvez tenhamos que cada vez mais pensar naqueles que admiramos e passaram por adversidades como as que estão nos obrigando a viver agora.
De relatos de amigos a resumos que li sobre a recente entrevista do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, para a imprensa alternativa em São Paulo, o que mais me chamou a atenção foi a incompreensão dele ao nosso sentimento de “fim da história”. Apoiado em tantas lutas, Mujica só lembrava a todos nós que nenhuma vitória ou derrota é definitiva. Por isso, venho insistindo aos meus companheiros de geração: vamos lutar até o fim, mas, se o golpe prevalecer, vamos ter que encarar as consequências que virão de frente, como fizeram os que vieram antes de nós. Essa será a nossa vida.
Um tempo de reavaliação
Passados treze anos de administração federal do Partido dos Trabalhadores, a experiência mais próxima de um projeto de esquerda que já tivemos, o governo está próximo de cair sob os clamores de um discurso político dos mais rasteiros. A miséria política brasileira não é um discurso só de ódio ao PT, mas à política em geral.
A ideia de que todos os políticos de hoje são iguais remete a um provérbio muito popular do Império do Brasil que dizia que não havia nada mais parecido com um Saquarema (conservador) do que um Luzia (liberal) no poder. Certamente, não se trata de uma doença dos brasileiros em não identificar as distinções entre os projetos políticos que os partidos representam. Este é apenas o sintoma de algo mais profundo.
A respeito da aparente indistinção entre Conservadores e Liberais no Império do Brasil, certamente uma das análises mais inteligentes é do historiador Ilmar Mattos, no clássico O Tempo Saquarema. Ilmar retoma o provérbio – de que não nada mais parecido com um Saquarema do que um Luzia no poder – para mostrar que isso era concretamente falso, mas que a percepção que a população tinha desta indistinção era perfeitamente compreensível.
Desse modo, concretamente, os Liberais e Conservadores defendiam projetos políticos bem distintos. Entre outras coisas, os Liberais defendiam a proeminência do Parlamento, como a maior expressão do sistema representativo. Já os Conservadores – e sobretudo, a sua parcela Saquarema – não abriam mão de que o monarca fosse o topo da pirâmide de uma sociedade muito mais hierarquizada do que a almejada pelos Liberais. Ao contrário dos Luzias, os Conservadores aceitavam subordinar a liberdade da sociedade ao imperativo da ordem. Como lembra Mattos, uma das referências desses conservadores era Hobbes, o autor de O Leviatã.
Até este ponto, a análise não é novidadeira. São conhecidas as diferenças entre liberais e conservadores no Império. A inovação de Ilmar é demonstrar porque eles eram percebidos pela população como iguais. Para Mattos, desde o final da década de 1830, os Saquaremas – uma facção dos Conservadores instalados na região cafeeira perto da Corte – conseguiram moldar os instrumentos do Estado à feição dos seus ideias. Em outras palavras, tornaram hegemônico o projeto político Saquarema, de forma que suas ideias também fossem compartilhadas por todos os braços institucionais – de tribunais a professores. Nessa perspectiva, defende Mattos, os Liberais podiam estar à frente dos ministérios, serem maioria no Parlamento, mas jamais conseguiam implementar o projeto que defendiam. Poderiam ser feitas algumas mudanças, mas a alma do Estado, o seu sentido continuava a ser Saquarema. O exemplo magistral dessa subordinação política e intelectual dos Liberais aos Saquaremas está no chamado golpe da maioridade: sem forças para recuperar a direção do Estado, os Liberais foram justamente apelar a um menino para que assumisse a Coroa, sob o argumento que só o monarca poderia trazer a paz ao Império após a sequência de conflitos da Regência. Um beija-mão que cobrou seu preço por quase 50 anos.
Durante anos, muito antes da situação atual, penso nas similitudes entre o que ocorreu com os Liberais no século 19 e os limites da administração petista nesta última década. Guardadas as devidas proporções, penso que o enquadramento é muito similar: o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder central, fez reformas e políticas importantes, mas jamais chegou perto de mudar a lógica da dinâmica política e econômica que foi moldada no início da Nova República até aqui.
Isso não quer dizer que não exista diferenças entre o PT (e a esquerda) e o espectro mais à direita da política brasileira. Bastou uma semana do governo Temer para deixar isso bem claro: um ministério sem mulheres e negros, anúncios de renúncia do SUS como um direito universal, cobranças de mensalidades em universidades públicas, fechamento de embaixadas na África, entre outras barbaridades. No entanto, é preciso reconhecer que, no campo econômico, todas as políticas de inclusão social estiveram subordinadas aos limites impostos por uma economia de matriz liberal. Isso, em tempo algum, foi de fato enfrentado. Nem os juros astronômicos da Selic (com exceção dos dois primeiros anos do governo Dilma), tampouco a legitimidade da dívida pública, cujo o pagamento é a maior transferência de renda do Brasil. Aceitar esse jogo foi reafirmar a subordinação da sociedade à garantia dos direitos de propriedade privada e do rentismo acima de qualquer coisa. Isso foi decisivo para uma reforma agrária quase inexistente, aceitar o papel do Brasil como um fornecedor de comodites e não estabelecer um plano claro de desenvolvimento nacional. Não por acaso, alguns críticos ironizavam que o plano econômico do PT era uma continuidade do que fora feito no governo FHC.
A Educação, um pecado capital
No plano social, a educação teve avanços, mas não se impediu que a lógica de mercado continuasse a limitar a grande virada necessária. Não se trata apenas de incluir mais e mais pessoas na escola, do ensino fundamental ao superior, ainda que isso também seja importante. Contudo, a escola não pode ser o lugar onde se reafirmam as diferenças sociais pretéritas. Nesse sentido, não se inverteu o quadro em que as escolas públicas de ensino fundamental e médio são progressivamente sucateadas e escolas privadas aparecem como a solução dos que podem pagar. Neste aspecto, apesar dos inegáveis avanços, o Partido dos Trabalhadores jamais teve um plano articulado para a educação a ponto de assumir todos os riscos que implicariam a revolução de transformar a escola pública, de fato, em um lugar em que toda a república se encontra, sem privilégios. Nesse aspecto, diga-se de passagem, é triste que um dos aspectos mais frágeis da administração municipal de Fernando Haddad seja justamente a educação, claramente uma área que não tem um projeto articulado, audacioso, ou inovador como o reservado a outras pastas, como a mobilidade por exemplo. É uma pena, pois Haddad foi um bom Ministro da Educação, ainda que dentro dos limites descritos acima, e é, certamente, um dos quadros políticos mais promissores do Brasil. Mas aceitou, diga-se de passagem, entregar justamente a educação ao PMDB.
Não dar à educação o lugar central de uma revolução social no Brasil pode ter sido o maior de todos os erros da administração petista. Ao permitir que a escola pública brasileira de ensino básico continuasse a ser o pilar de um “apartheid”, que cada vez mais separa na infância pobres e negros de brancos e filhos de classe média, o PT pariu a geração de paneleiros que vemos por aí, todos muito ciosos da sua meritocracia aprendida dentro dos muros de condomínios e de escolas repletas de câmeras e seguranças. Repetimos, assim, o mesmo papel excludente que a educação tinha no Brasil no século XIX: antes de tudo, era o processo de formação da elite dirigente. Chegar a deputado ou ministro tinha como ponto de partida, entrar nas escolas de Direito de São Paulo ou Recife, transformadas em mecanismos de reprodução e reafirmação eterna dos mesmos grupos dirigentes, inclusive amalgamados e uniformizados pela educação escolar.
Em razão disso, não é surpreendente que o governo de Dilma Roussef tenha sido alvo de oposição e, algumas vezes de perseguição sistemática de alguns órgãos ou grupos da elite do funcionalismo público federal. O PT, assim como os Luzias no século XIX, foi governo, mas jamais teve o aparelho de Estado na mão, nunca conseguiu fazer com que a máquina comprasse um discurso mais inclusivo. Mantidas as situações atuais, teremos juízes com boa formação, mas insensíveis às razões sociais. Médicos mais preocupados com suas questões coorporativas do que com o fato de existir um contingente enorme de brasileiros sem acesso à saúde. Nessa direção, parece claro que a elite do funcionalismo público federal foi absolutamente insensível à inegável melhoria nas condições de trabalho nos últimos anos – inclusive salarial – porque, entre outras coisas, negava-se a compactuar com um projeto mais inclusivo. O lugar de classe falou mais alto e, numa sociedade claramente cindida, não é de estranhar que boa parte desses estratos se identifique com o projeto defendido pelo PSDB, mesmo que ele seja privatista e favorável a um Estado mínimo. Provavelmente, trata-se de um caso da chamada “síndrome de Estocolmo”.
O PT não enfrentou a questão da Educação nesta dimensão, entre outras coisas, porque seria a mais radical revolução brasileira. E custaria muito, muito dinheiro. Fazer uma educação de fato inclusiva, significa ter profissionais altamente qualificados, crianças em escola de tempo integral e reconhecer que os alunos com origens diferentes devem ter atenção diferente. Uma escola que opta por um sistema sem reprovação, que deve ser o horizonte a buscarmos, precisa de sistemas de reforço e acompanhamento para alunos que têm mais dificuldades ou recebem menos estímulos em casa. Nada mais injusto do que supor que o ritmo de alfabetização de uma criança cercada por livros e por pais leitores seria o mesmo de outra sem estes estímulos. Mas a escola pode e deve equalizar essas diferenças pretéritas se permitir caminhos diferentes de aprendizado, inclusive reforçando aqueles que têm mais dificuldades. Caso contrário, as desigualdades só tendem a aumentar.
Enquanto isso não acontecer, nossas universidades continuarão sendo réplicas dos cursos superiores do Brasil no século 19: o encontro de uma mesma classe social, muito bem treinada, capaz de sair-se bem em qualquer teste seletivo, mas absolutamente incapaz de entender o país. As cotas, que devem ser acompanhadas de sistemas de apoio aos ingressantes (algo que os governos não fazem e, com isso, ajudam a aumentar a evasão), hoje tornam-se urgentes e necessárias. De modo geral, discute-se a importância e o impacto do curso superior para a vida desses meninos e meninas. Isso é claro, mas penso que hoje as nossas Universidades precisam ainda mais deles do que esses meninos e meninas de nós.
É lógico, no entanto, que reconheço os avanços dos últimos anos, ainda que muitas vezes eles estejam mais amparados em outras políticas sociais do que propriamente em modificar a escola. Lembro, por exemplo, da primeira viagem que fiz ao interior do Amazonas, há dez anos. Lá os moradores estavam no auge uma polêmica: desde sempre as crianças, ao atingirem um corpo mínimo para o trabalho, antes dos dez anos, partiam para ajudar os pais na roça, deixando a escola. O Bolsa Família impôs a pais e mães um dilema: o pequeno valor da bolsa era equivalente ao que se conseguiria com o trabalho infantil, mas aceitá-la e não obrigar as crianças trabalharem não os fariam adultos vagabundos? Esse raciocínio que nos parece absurdo era um dilema sincero daqueles homens. Só pouco a pouco aquelas crianças foram libertadas do trabalho. Talvez por coisas desse tipo não vejamos mais na TV ou em capas de revista as famosas fotos de crianças trabalhando em carvoarias, algo extremamente comum na década de 1990. Mas, claro, essa é uma mudança difícil de sensibilizar o grosso da população das nossas áreas urbanas.
O significado do PMDB
No plano político, por sua vez, o Partido dos Trabalhadores se submeteu a outra cláusula pétrea da Nova República: esteja quem estiver na cadeira de presidente, quem manda é o PMDB. Às vezes, coincidentemente, o presidente até é do PMDB.
O PMDB é mais do que um partido. É um projeto político que não necessariamente é tocado por ele, mas por agremiações que fazem a sua vez, de tempos em tempos. Na era FHC, por exemplo, o então PFL foi o PMDB da vez. Kassab e o seu PSD tentou, no início do segundo governo Dilma, ser o PMDB a partir de uma série de deserções que então se contava que eram estimuladas pelo Palácio do Planalto.
Mas, reconheça-se, ninguém consegue ser melhor o PMDB que o próprio. Chamado, assim como seus congêneres, de partido-ônibus, federação de caciques etc, o PMDB é, na verdade, a expressão mais genuína dos poderes locais do Brasil. É nele que resistem personagens que retiram de seus Estados ou municípios a sua força, muitas vezes sem alcançar projeção nacional.
Ao aceitar o chamado presidencialismo de coalisão, o Partido dos Trabalhadores também teve que se submeter a esse casamento forçado. E, diga-se de passagem, acabou ressuscitando personagens que pareciam proscritos. Talvez o maior exemplo de todos seja José Sarney que em algum momento foi o fiador da estabilidade de boa parte do Governo Lula no Congresso. Críticos ao PT sempre recordaram-se dessa imagem constrangedora, mas esqueceram-se que todo o presidente nos últimos trinta anos teve um oligarca pra chamar de seu, quando não era ele mesmo o residente do Palácio do Planalto. Fernando Henrique jamais poderá se desvencilhar da atuação de Antonio Carlos Magalhães, por exemplo.
Chega-se aqui a uma síntese bem brasileira: os poderes locais se reinventam perpetuamente e encontram maneiras de chegar ao poder central através do parlamento. Em Brasília, dentro do jogo político atual, é impossível governar sem alianças com esses poderes locais, quase unanimemente conservadores em relação aos costumes, frequentemente dependentes de benesses do Estado, mas portadores de um discurso liberalizante. Dessa forma, o PMDB e seus congêneres são a expressão mais genuína do conservadorismo brasileiro, mas ao mesmo tempo conseguem se conectar com o que há de mais moderno no mundo econômico e do rentismo, no qual aceitam ser seus porta vozes em troca de uma posição de sócio minoritário.
Enquadrar a situação política nessa perspectiva retoma uma polêmica de pelo menos dois séculos: para alcançar a construção de uma nação moderna, o caminho é a descentralização dos poderes localmente? É em torno dessa disputa que se dá boa parte das encrencas na Argentina do século 19. Esse é o debate fundante dos Estados Unidos e elemento importante da sua própria identidade. No Brasil, costuma-se entender que o processo triunfante no século 19 foi o da centralização dos poderes sob a mão do Imperador e patrocínio dos Conservadores. Mas há um inegável quinhão de prerrogativas e poderes que permaneceram sob órbita dos elementos dominantes nas províncias, ainda que pareça ser inadequado ver o Brasil como uma federação no século 19, tal como propôs recentemente Miriam Dolhnikoff em “O Pacto Imperial”.
Mas a questão que importa aqui é lembrar que, no Brasil do século 19, os auto intitulados liberais foram muito bem sucedidos no seu projeto de cravar na nossa ideia histórica que o projeto mais progressista do Império, o que garantia maiores liberdades, era o que propunha a maior descentralização política. Foram bem sucedidos, inclusive em tornar quase inquestionável a associação entre ser liberal e ser favorável à descentralização política e administrativa. Talvez Sérgio Buarque seja um dos pouquíssimos autores que questionaram essa associação, lembrando que os revolucionários franceses investiram em um poder centralizado como a única forma de varrer os domínios locais que pudessem impedir que as instituições republicanas fossem uniformes em toda a nação.
No Brasil, como dito antes, a centralização política dos Saquaremas garantiu a autoridade máxima à Coroa no Rio de Janeiro, mas não impediu que as províncias tivessem os seus “reizinhos”, sempre ciosos em garantir as suas prerrogativas de mando e poder. Ao falar sobre a situação dos indígenas no Império do Brasil, Manuela Carneiro ilumina esta questão: diz que toda a vez que os indígenas tiveram suas condições de vida reguladas por leis provinciais, sua sorte foi muito pior do que quando era regida por leis pensadas na Corte. Afinal, era no interior das províncias que os embates mais sangrentos entre proprietários e indígenas se dava, sendo os primeiros também os formuladores das leis locais.
Há uma possibilidade dessa dispersão de poderes entre as localidades produzir, de fato, mais liberdade, mais democracia e controle dos cidadãos? Em geral, usa-se o exemplo estadunidense para afirmar que sim. Afinal, é de fato impressionante a grande autonomia dos estados, contrastando com uma forte unidade política e um nível de desenvolvimento mínimo comum a todos os “sócios” da federação. No entanto, é preciso lembrar que, se dependesse dos poderes locais, a escravidão não teria ocorrido em vários dos estados do sul dos EUA, ao menos no momento em que ocorreu. A grande tragédia americana, a Guerra de Secessão, é o exemplo mais radical de uma intervenção do poder central sobre as localidades.
No Brasil, nesses últimos anos, o poder central não fez frente aos potentados locais, com raras exceções. E, do lado contrário, muitas das antigas famílias dominantes nos Estados se renovaram ao lado do poder central. Temos aí a grande incógnita brasileira: será possível, por exemplo, chegar a uma educação de qualidade, entregando a administração das redes a governadores e prefeitos que se negam a pagar o mísero piso nacional dos professores?
Amanhã vai ser outro dia
Logo após a votação do impedimento de Dilma Roussef, muitos se perguntaram: é possível resistir? Como resistir? Vladmir Saflate poucos dias antes, na Folha de São Paulo, indicou uma direção: a desobediência civil. Vários outros escreveram nos dias seguintes sobre o direito histórico de resistir a governos considerados ilegítimos. Isso acontecerá nestes termos? Não sei. A desobediência civil parece um ato simples, mas não é por acaso que é rara na história e, via de regra, mortal para os regimes políticos. Na falta de um Gandhi ou de um Luther King, fica a pergunta do que traduzirá para os demais esse sentimento difuso de que está tudo fora dos seus lugares.
Além disso, não se trata apenas do mandato de Dilma Roussef. É preciso resistir a uma onda conservadora, dessas que se espalham pelo Brasil afora. Na contramão do mundo, não bastavam as antigas pautas como leis homofóbicas, contra o aborto e o uso de drogas que já são legais em boa parte dos países tão admiradas por nossas mentes colonizadas. Agora saltam aqui e ali, leis estaduais ou medidas judiciais que questionam a liberdade docente para definir suas pautas em sala de aula ou até mesmo o pedido de proibir-se reuniões “políticas” nas universidades. Com variações, isso é o que se chamou de “escola sem partido”, uma resposta à suposta doutrinação de esquerda em livros didáticos e em salas de aula. É curioso que os mesmos que defendem com unhas e dentes a liberdade de imprensa, não conseguiram perceber que essa vem da mesma fonte da liberdade de cátedra. A “escola sem partido” é na verdade a “escola sem política”, uma proposição tão fantasiosa quanto a isenção jornalística. Toda educação é política, o que não significa e nem pode significar a submissão dos professores à agenda de uma agremiação política eventualmente no poder. Contudo, para um criacionista, o evolucionismo, uma evidência científica, é uma ideia de esquerda corrompendo as mentes infantis.
Nenhuma vitória ou derrota é absoluta, mais uma vez lembro Pepe Mujica. Há quem veja agora apenas uma onda conservadora avassaladora e o silêncio. Mas há rebeldia por toda parte. Como entender o levante dos secundarista em todo o Brasil? Assembleias Legislativas sendo tomadas, meninos e meninas se deslocando de uma escola para outra, acumulando contatos e formando redes. Quem os entende? Ignoram os partidos, pregam uma horizontalidade que para os mais velhos parece utopia, quando não uma bobagem. Mas terem nascido do problema fundante do Brasil – a educação – torna seus movimentos dignos de acompanhamento. Além disso, uma presença feminina tão marcante na organização dos movimentos, demonstra que há algo de novo na praça. Elas não querem ser “belas, recatadas e do lar”, por mais que lhes ensinem isso.
Mas a resistência, acredito, também virá de tudo o que plantamos ao longo dos últimos anos, cada um a seu jeito. Trabalho em um campus universitário novo, com menos de dez anos. Logo ao chegar, menos de seis anos atrás, tive uma paixão à primeira vista: um projeto diferente, novo, que incluía alunos muito diferentes daqueles que tinham sido meus companheiros de curso anos atrás. Além disso, colegas que como eu estavam começando na carreira, cheios de sonhos e expectativas. Sofremos um bocado desde então. Como vários campi erguidos durante o REUNI, padecemos com a falta de um prédio definitivo e improvisações mil, a ponto de merecer o escárnio de manchetes e destaques em todo o tipo de imprensa conservadora. Brigamos muito com o governo, com a universidade e entre nós. Mas há um mês o prédio novo foi inaugurado. Há ainda muitos problemas, uma obra incompleta no mesmo terreno e toda a sorte de improvisações que são previsíveis (apesar de lamentáveis e irritantes) nesse contexto. De toda forma, é visível o impacto que o prédio traz para a comunidade, como se fosse testemunha de que nós estivemos ali. Como se fosse a garantia que, a despeito de golpes e contragolpes, agora ficou mais difícil desmontar esse projeto. Coincidentemente, com a inauguração do prédio do campus, estou assistindo a formatura da primeira turma que acompanhei desde o início. Com todas as suas incertezas e dificuldades, tenho certeza de que o Brasil é um país melhor com esses meninos e meninas historiadores. Essa é a resistência que eu mais acredito.
A esses meninos e meninas, eu dedico este texto.
André Roberto de A. Machado é historiador e professor da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
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