Reação em cadeia
Venezuela
Golpe no Brasil parece ter sido a gota d’água para o endurecimento de Maduro, agora a um passo do autoritarismo
por Antonio Luiz M. C. Costa —na Carta Capital - publicado 27/05/2016
Marcelo Garcia/AFP
Maduro apela às bases e aos militares para não cair
Não por coincidência, Nicolás Madurodecretou na sexta-feira 13, dia seguinte à confirmação do golpe parlamentar no Brasil, oestado de exceção na Venezuela por 60 dias, além da prorrogação pelo mesmo período do estado de emergência econômica vigente desde 14 de janeiro.
As medidas o autorizam a intervir em indústrias improdutivas para “entregá-las ao povo”, a começar, possivelmente, pela popular Cervejaria Polar, parada desde 30 de abril por alegada falta de divisas para a importação de malte.
Também dão poderes às Forças Armadas para manter a ordem e distribuir e vender produtos básicos em cooperação com os recém-criados Comitês Locais de Abastecimento e Distribuição, e conferiu poderes de vigilância aos Conselhos Comunais.
Ao citar a “ameaça externa” como justificativa, deve ter pensado menos em Washington ou nas articulações de Álvaro Uribe com a direita venezuelana do que na perda do vizinho do Sul como referência de normalidade e potencial mediador contra movimentos desestabilizadores, como aconteceu na Bolívia ante o movimento golpista de 2008 e chegou a se dar mesmo antes do governo Lula, após o fracassado golpe de 2002 na Venezuela.
José Serra assumiu como ministro das Relações Exteriores disparando contra os vizinhos por criticarem o afastamento de Dilma Rousseff e mereceu a ironia do ex-presidente da Colômbia pelo Partido Liberal Ernesto Samper, hoje dirigente da organização sul-americana.
“Fizeram o impeachment da presidente do Brasil, agora querem o impeachment do secretário-geral da Unasul”. O novo chanceler brasileiro deixou claro que sua prioridade não é diálogo, mas jogar para a torcida conservadora e seus sócios no Hemisfério Norte com vistas a seu projeto eleitoral, com aparente carta branca de um governo medíocre e provinciano.
Dito isso, o passo de Maduro é perigoso e pode realimentar a radicalização. No domingo, seu vice, Aristóbulo Istúriz, afirmou que não haveria referendo revocatório por “erros da oposição”. O presidente pareceu confirmá-lo, na terça-feira 17, ao afirmar em coletiva que o referendo é “inviável” e insinuar a existência de fraudes na petição a ser auditada pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) até 2 de junho.
Em outras passagens alegou ser o referendo uma opção e não uma obrigação, mencionou “regras do jogo” a cumprir e disse que a Assembleia “perdeu vigência política” e seu desaparecimento é “questão de tempo”. Afirmou ainda que, se a oposição tivesse levado o referendo a sério, teria feito a solicitação em janeiro e não em abril.
Nesse último ponto, tem razão. Seja por rejeitar a Constituição bolivariana, seja para testar a disposição dos militares de apoiar um golpe, a oposição passou meses na tentativa de minar o governo e antecipar o fim de seu mandato por vias claramente inconstitucionais, barradas pelo Supremo Tribunal, em vez de apostar no mecanismo legal à sua disposição.
Após os opositores terem decidido acatar as regras do jogo é, porém, o governo que parece ameaçar ignorá-las ao afirmar com tanta certeza que o CNE inviabilizará o referendo. Mesmo se houver muitas fraudes, é improvável não haver o mínimo legal de 195 mil assinaturas verdadeiras na lista apresentada de 1,8 milhão.
Bloquear os mecanismos constitucionais seria imprudente, pois legitimaria antecipadamente o recurso a caminhos inconstitucionais. Ainda não é o caso, mas existe, no mínimo, a intenção de retardar o processo ao máximo, provavelmente com o objetivo de estendê-lo até 2017, para evitar nova eleição e deixar no poder o vice chavista.
A Assembleia da Venezuela, como seria de se esperar, rejeitou o decreto de Maduro, como fizera desde o início com o estado de emergência econômica. Provavelmente, será de novo desautorizada pelo Supremo. Mais importante é saber quantos venezuelanos e de quais setores sairão às ruas por um lado e por outro.
As Forças Armadas parecem decididas a respaldar o presidente, mas podem se sentir forçadas a mudar de posição se a desobediência civil pregada pelo ex-candidato da oposição Henrique Capriles tomar impulso e tornar-se uma explosão social.
Se esta ainda não aconteceu, é porque a direita venezuelana tem tão má reputação que uma parcela muito substancial dos mais afetados pela escassez, inflação e cortes de energia ainda prefere o chavismo a seus adversários e receia que, se tentar trocar a revolução por pratos mais cheios, ficará sem ambos.
As manifestações convocadas pela oposição contra o estado de emergência começaram na segunda-feira 16, mas não se mostraram tão grandes nem sofreram repressão especialmente severa do governo.
No incidente mais digno de nota, na quarta-feira 18, algumas dezenas de manifestantes de uma passeata de mil venezuelanos liderada por Capriles tentaram romper uma barreira policial para chegar às portas do CNE e foram reprimidas com gás lacrimogêneo. O presidente do órgão foi à barreira receber a carta de protesto. Houve 27 detenções em todo o país.
Viajaram a Caracas para mediar o conflito o ex-chefe do governo espanhol José Luis Zapatero, o ex-presidente dominicano Leonel Fernández e o ex-presidente panamenho Martín Torrijos.
Todos são de centro-esquerda e integram a Comissão da Verdade criada para esclarecer os acontecimentos das manifestações de 2014 que levaram à prisão dos dirigentes oposicionistas Leopoldo López e Antonio Ledezma e assim mediar entre o governo que os considera culpados de incitação à violência e a Assembleia disposta a anistiá-los.
Presumivelmente, gozam de certa confiança de ambos os lados. Mas faltam-lhes tanto o contrapeso de um Brasil comprometido com a democracia quanto o respaldo de seus próprios países, todos hoje governados pela direita. A questão venezuelana nunca foi de debate racional.
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