PML: Uma experiência vitoriosa na TV Brasil

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PML
por Paulo Moreira Leite - 30/05/2016

Em meu último dia de trabalho na TV Brasil, uma senhora que trabalha num instituto de aposentadoria nas vizinhanças da EBC, em Brasília, puxou conversa quando dividíamos um elevador. Disse que era admiradora regular do Espaço Público, programa que passei a apresentar em abril de 2014. Sem saber do futuro que aguardava a mim e a dezenas de colaboradores e funcionários da emissora, me desejou boa sorte e muito sucesso no programa.

Horas depois, em casa, fui informado, por email, que meu contrato fora suspenso por quatro meses por decisão do novo presidente, nomeado por um decreto questionável de Michel Temer e de Eliseu Padilha. Conforme advogados me explicaram, apenas suspender um contrato que se pretende romper definitivamente é mais conveniente para amortecer qualquer tipo de reação política e mesmo na Justiça. Também colabora para que o assunto logo seja abandonado pelos jornais, preocupação compreensível quando se toma medidas antipáticas do ponto de vista do cidadão comum.

Dois dias depois, tomando café da manhã numa padaria de luxo em Brasília, uma funcionária pública aposentada veio até a mesa para dizer que fazia questão de me cumprimentar -- mandou parabéns aos demais membros da equipe, a começar por Florestan Fernandes Junior -- pela qualidade do trabalho e pela coragem de dizer coisas "que as outras emissoras não dizem." No mesmo dia, ao fazer compras, o funcionário de uma peixaria, espectador regular do programa, que frequentemente fazia comentários sobre o Espaço Público, voltou a fazer elogios.

Quem teve paciência para chegar a até este ponto do relato precisa saber que depoimentos semelhantes não costumam ser ouvidos apenas em Brasília. Quando me encontrava na Feira do Artesanato, em Porto Alegre, fui parado e cumprimentado diversas vezes. Em visita ao Forte de Natal, no Rio Grande do Norte, encontrei um casal de turistas vindos de São Paulo que, além dos cumprimentos, pediu para tirar uma foto a meu lado. Minha mulher, a escultora Ana Carolina Oliviero, presente a maioria dessas ocasiões, calcula que nos últimos meses eu recebia pelo menos um cumprimento por dia, na rua, de pessoa desconhecida, aonde quer que estivéssemos. Nada que se compare à idolatria que acompanha apresentadores de programa de grande audiência. Nem é o caso de comparar, certo?

Lembro desses rostos e dessas palavras toda vez que, em dias recentes, leio em jornais da grande mídia, um dos instrumentos do golpe que deu posse provisória a Michel Temer, observações sobre a baixa audiência da TV Brasil. Não há razão para questionar um fato: em oito anos de existência, só muito raramente, em dias muito especiais, a TV Brasil conseguiu deixar o último lugar na lista de audiência.

Depois de ter sido executivo de publicações como VEJA, da editora Abril, e Época, das Organizações Globo, posição que me permitiu conhecer e debater decisões estratégicas de grupos que tinham uma posição dominante em vários mercados, aprendi que não se deve discutir com números. Mas, jornalista há mais de 40 anos, aprendi que a matemática não conta toda a história de um jornal, de uma revista ou de uma emissora de TV.

Os depoimentos que até hoje recebo na rua, e que também podem ser lidos nas redes sociais, mostram uma realidade impossível de negar. Para um número significativo de brasileiros, que, como a grande maioria entre os 204 milhões, dão duro na vida, pagam impostos e lutam para pagar as contas no fim do mês, a TV Brasil fazia um trabalho correto e necessário. Para essas pessoas, nós nos tornamos parte da democracia, sistema onde a pluralidade de ideias e a liberdade de opinião é causa inscrita na Constituição.

A mensagem desses espectadores é fácil de ser entendida. Convencidos de que noções de isenção e imparcialidade foram reduzidas a conceitos puramente hipócritas num ambiente onde a divergência de ideias e o conflito de opiniões vivem em situação de claustrofobia, estes homens e mulheres se sentem agredidos e até insultados pelo regime de monopólio não apenas econômico, mas cultural e político, imposto pelos grandes aparatos de comunicação. Não suportam o jornalismo da Globo nem do SBT nem da Record, da mesma forma que muitos outros espectadores, talvez a maioria, não seria capaz de contentar-se num país televisionado pela TV Brasil 1, 2, 3, 4 e assim por diante.

Os cumprimentos honestos dos espectadores -- que obviamente chegam a vários profissionais da TV Brasil, -- informam que fomos vitoriosos no esforço de abrir uma brecha democrática num universo fechado e controlado. Do ponto de vista dessas pessoas, a nossa forma de contar as notícias e interpretar os fatos ajudava a compreender o mundo e participar de um debate sobre os rumos do país. Por mais que muitas pessoas tenham dificuldade de aceitar a visão de que vivemos numa sociedade que deve compreende, aceitar e até valorizar o outro e a  diferença, nosso trabalho ajudava na construção de uma verdadeira cidadania, altura do século XXI.

Nesse aspecto, cabe fazer um ajuste nos debates de conteúdo dos programas. A crítica permanente é que se fazia  um jornalismo "chapa branca", expressão usada aqui como sinônimo de um trabalho suspeito, indigno de credibilidade. A recepção positiva do jornalismo da TV Brasil na casa de muitas famílias mostra que nem todos pensavam dessa forma nem achavam condenável assistir a uma programação alinhada com um ponto de vista positivo a respeito das mudanças realizadas no país pelos governos Lula e Dilma, que criaram e sustentaram a TV Brasil em seus oito anos de existência. Pelo contrário. Para essas pessoas, esse era um traço positivo, a ser valorizado e ressaltado. Rejeitavam as outras emissoras por não serem capazes de valorizar governos que, em sua opinião, fizeram mais e melhor pelo país.

A experiência demonstra que a história recomenda cautela e prudência nestas avaliações. O termo "chapa branca" destina-se a desqualificar toda avaliação positiva de iniciativas dos poderes públicos, em nome de uma hipótese absurda. Considerar toda e qualquer atividade ligada ao Estado como uma ação suspeita, enquanto empresas comerciais seriam um ninho de liberdade e respeito à democracia. 

Para sublinhar o caráter limitado dessa visão, basta recordar que, seguindo este raciocínio, a imprensa inteira deveria limitar-se a publicar notícias e opiniões que agradam aos empresários e grandes acionistas de empresas privadas, únicas instituições em condições de criar, sustentar e explorar o jornal, a empresa-TV e assim por diante. Num país que rejeita contribuições privadas de campanhas eleitorais, estamos falando de preservar, em escala de massa, apenas publicações sustentadas pela FIESP, Febraban e semelhantes. Vamos combinar que esse tempo já passou, certo?

Há outro debate, mais decisivo, até. A política é como nuvem, ensinam os sábios: um dia está de um jeito, no outro, de outro. Mesmo assim, pode-se notar, em tempos recentes, uma constante.

Em grandes momentos da história, as publicações chamadas "chapa branca" se colocaram na defesa da liberdade, da democracia e da Constituição, enquanto aquelas de "mercado" se engajaram ao lado de movimentos golpistas, ocupados em destruir um regime de garantias fundamentais. Num país de sucessivas tentativas de assalto a soberania popular, o jornalismo "chapa branca" defendeu Getúlio Vargas em 1954, Goulart em 1961 e em 1964, quando um presidente constitucional foi derrotado, empossando-se a toda pressa um parlamentar inexpressivo para que fosse feita a transição que abriu o Planalto ao primeiro de cinco presidentes-generais, sem contar uma Junta Militar com três integrantes.

Não é difícil entender o que está em jogo, concorda?   

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