Porque foi Aloysio Nunes a Washington um dia após a votação do impeachment?

A viagem para Washington do senador do PSDB, figura principal da oposição envolvida em corrupção, um dia após a Câmara ter votado pela destituição de Dilma, levantará, no mínimo, dúvidas sobre a postura dos Estados Unidos em relação à remoção da presidente. Por Glenn Greenwald, Andrew Fishman e David Miranda, no The Intercept.

Foto de Aloysio Nunes, Flickr.

ESQUERDA.NET - 20/04/2016

A Câmara dos Deputados do Brasil votou a favor da admissibilidade do impeachment da presidente do país, Dilma Rousseff, encaminhando o processo de afastamento para o Senado. Num ato simbólico, o membro da casa que deu o voto favorável nº 342, mínimo para admitir o processo, foi o deputado Bruno Araújo, mencionado num documento que demonstra que teria recebido fundos ilegais de uma das principais empreiteiras envolvidas no atual escândalo de corrupção do país. Além disso, Araújo pertence ao partido de centro-direita PSDB, cujos candidatos perderam quatro eleições seguidas contra o PT, de esquerda moderada, partido de Rousseff, sendo a última delas há apenas 18 meses atrás, quando 54 milhões de brasileiros votaram pela reeleição de Dilma como presidente.

Esses dois factos sobre Araújo sublinham a natureza surreal e sem precedentes do processo que ocorreu este domingo em Brasília, capital do quinto maior país do mundo. Políticos e partidos que passaram duas décadas a tentar — e a fracassar — derrotar o PT em eleições democráticas encaminharam triunfalmente a derrubada efetiva da votação de 2014, removendo Dilma de formas que são, como o relatório do The New York Times de hoje deixa claro, na melhor das hipóteses, extremamente duvidosas. Até mesmo a revista The Economist, que há tempos tem desprezado o PT e os seus programas de combate à pobreza e recomendou a renúncia de Dilma,argumentou que “na falta da prova de um crime, o impeachment é injustificado” e “parece apenas um pretexto para expulsar um presidente impopular".
Os processos de domingo, conduzidos em nome do combate à corrupção, foram presididos por um dos políticos mais descaradamente corruptos do mundo democrático, o presidente da Câmara Eduardo Cunha
Os processos de domingo, conduzidos em nome do combate à corrupção, foram presididos por um dos políticos mais descaradamente corruptos do mundo democrático, o presidente da Câmara Eduardo Cunha (em cima, ao centro) que teve milhões de dólares sem origem legal recentemente descobertos em contas secretas na Suíça, e que mentiu sob juramento ao negar, para os investigadores no Congresso, que tinha contas no estrangeiro. O The Globe and Mail noticiou ontem que, dos 513 membros da Câmara, “318 estão sob investigação ou acusados” enquanto o alvo deles, a presidente Dilma, “não tem nenhuma alegação de improbidade financeira”.
Um por um, legisladores manchados pela corrupção foram ao microfone para responder a Cunha, votando “sim” pelo impeachment enquanto afirmavam estarem horrorizados com a corrupção. Nas suas declarações de voto, citaram uma variedade de motivos bizarros, desde “os fundamentos do cristianismo” e “não sermos vermelhos como a Venezuela e Coreia do Norte” até “a nação evangélica” e “a paz de Jerusalém”. Jonathan Watts, correspondente do The Guardianapanhou alguns pontos da farsa:
Sim, votou Paulo Maluf, que está na lista vermelha da Interpol por conspiração. Sim, votou Nilton Capixaba, que é acusado de lavagem de dinheiro. “Pelo amor de Deus, sim!” declarou Silas Câmara, que está sob investigação por forjar documentos e por desvio de dinheiro público.
É muito provável que o Senado vá concordar com as acusações, o que resultará na suspensão de 180 dias de Dilma como presidente e a instalação do governo pró-negócios do vice-presidente, Michel Temer, do PMDB. O vice-presidente está, como The New York Times informa, “sob alegações de estar envolvido num esquema de compra ilegal de etanol”. Temer recentemente revelou que um dos principais candidatos para liderar a sua equipa económica seria o presidente do Goldman Sachs no Brasil, Paulo Leme.
Se, depois do julgamento, dois terços do Senado votarem pela condenação, Dilma será removida do governo permanentemente. Muitos suspeitam que o principal motivo para o impeachment de Dilma é promover entre o público uma sensação de que a corrupção teria sido combatida, tudo projetado para aproveitar o controlo recém adquirido de Temer e impedir maiores investigações sobre as dezenas de políticos realmente corruptos que integram os principais partidos.
Os Estados Unidos têm permanecido notavelmente silenciosos sobre esse tumulto no segundo maior país do hemisfério, e a sua postura mal foi debatida na grande imprensa. Não é difícil ver o porquê. Os EUA passaram anos a negar veementemente qualquer papel no golpe militar de 1964 que removeu o governo de esquerda então eleito, um golpe que resultou em 20 anos de uma ditadura brutal de direita pró-EUA. Porém, documentos secretos e registos surgiram, comprovando que os EUA auxiliaram ativamente no planeamento do golpe, e o relatório da Comissão da Verdade de 2014 no país trouxe informações de que os EUA e o Reino Unido apoiaram agressivamente a ditadura e até mesmo “treinaram interrogadores em técnicas de tortura.”
O golpe e a ditadura militar apoiadas pelos EUA ainda pairam sobre a controvérsia atual. A presidente Rousseff e os seus apoiantes chamam explicitamente de golpe a tentativa de removê-la. Um deputado pró-impeachment de grande projeção e provável candidato à presidência, o direitista Jair Bolsonaro (que teve o seu perfil traçado porThe Intercept no ano passado), elogiou ontem explicitamente a ditadura militar e homenageou o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe de tortura da ditadura (notavelmente responsável pela tortura de Dilma). Filho de Bolsonaro, Eduardo, também na casa, afirmou que estava a dedicar seu voto pelo impeachment “aos militares de ’64”: aqueles que executaram o golpe e impuseram o poder militar.
A invocação incessante de Deus e da família pelos que propuseram o impeachment, ontem, lembrava o lema do golpe de 1964: “Marcha da Família com Deus pela Liberdade.”
A invocação incessante de Deus e da família pelos que propuseram o impeachment, ontem, lembrava o lema do golpe de 1964: “Marcha da Família com Deus pela Liberdade.” Assim como os veículos de comunicação controlados por oligarquias apoiaram o golpe de 1964,como uma medida necessária contra a corrupção da esquerda, eles estiveram unificados no apoio e na incitação do atual movimento de impeachment contra o PT, seguindo a mesma lógica.
Durante anos, o relacionamento de Dilma com os EUA foi instável, e significativamente afetado pelas declarações de denúncia da presidente à espionagem da NSA, que atingiu a indústria brasileira, a população e a presidente pessoalmente, assim como as estreitas relações comerciais do Brasil com a China. O seu antecessor, Lula da Silva, também deixou de lado muitos oficiais norte-americanos quando, entre outras ações, juntou-se à Turquia para negociar um acordo independente com o Irã sobre seu o programa nuclear, enquanto Washington tentava reunir pressão internacional contra Teerão. Autoridades em Washington têm deixado cada vez mais claro que não vêem mais o Brasil como seguro para o capital.
Os EUA certamente têm um longo — e recente — histórico de criar instabilidade e golpes contra os governos de esquerda Latino-Americanos democraticamente eleitos que o país desaprova. Além do golpe de 1964 no Brasil, os EUA foram no mínimo coniventes com a tentativa de depor o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em 2002; tiveram papel central na destituição do presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide em 2004; e a então Secretária de Estado, Hillary Clinton, prestou apoio vital para legitimar o golpe 2009 nas Honduras, apenas para citar alguns exemplos.
Muitos na esquerda brasileira acreditam que os EUA estão a planear ativamente a instabilidade atual no país com o propósito de se livrar de um partido de esquerda que se apoiou fortemente no comércio com a China, e colocar no seu lugar um governo mais favorável aos EUA que nunca poderia ganhar uma eleição por conta própria.
Embora não tenha surgido nenhuma evidência que comprove essa teoria, uma viagem aos EUA, pouco divulgada, de um dos principais líderes da oposição brasileira deve provavelmente alimentar essas preocupações. Esta segunda-feira — o dia seguinte à votação do impeachment — o Sen. Aloysio Nunes do PSDB estará em Washington para participar em três dias de reuniões com várias autoridades norte americanas, além de lobistas e pessoas influentes próximas a Clinton e outras lideranças políticas.
O Senador Nunes vai reunir com o presidente e um membro do Comité de Relações Internacionais do Senado, Bob Corker (republicano, do estado do Tennessee) e Ben Cardin (democrata, do estado de Maryland), e com o Subsecretário de Estado e ex-Embaixador no Brasil, Thomas Shannon, além de comparecer a um almoço promovido pela empresa lobista de Washington, Albright Stonebridge Group, comandada pela ex-Secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright e pelo ex-Secretário de Comércio de Bush e ex-diretor-executivo da empresa Kellogg, Carlos Gutierrez.
A Embaixada Brasileira em Washington e o gabinete do Sen. Nunes disseram ao The Intercept que não tinham maiores informações a respeito do almoço de terça-feira. Por email, o Albright Stonebridge Group afirmou que o evento não tem importância mediática, que é voltado “à comunidade política e de negócios de Washington”, e que não revelariam uma lista de presentes ou assuntos discutidos.
Nunes é uma figura da oposição extremamente importante — e reveladora — para viajar aos EUA para esses encontros de alto escalão. Ele concorreu à vice-presidência em 2014 pelo PSDB que perdeu para Dilma e agora passa a ser, claramente, uma das figuras-chave de oposição que lideram a luta do impeachment contra Dilma no Senado.
Como presidente da Comissão de Relações e Defesa Nacional do Senado, Nunes defendeu repetidas vezes que o Brasil se aproxime de uma aliança com os EUA e o Reino Unido. E — quase não é necessário dizer — Nunesfoi fortemente apontado em denúncias de corrupção; em setembro, um juiz ordenou uma investigação criminal após um informador, um executivo de uma empresa de construção, declarar a investigadores ter oferecido R$ 500.000 para financiar a sua campanha — R$ 300.000 enviados legalmente e mais R$ 200.000 em luvas ilícitas não contabilizadas e não declaradas — para ganhar contratos com a Petrobras. E essa não é a primeira acusação do tipo contra ele.
A viagem de Nunes a Washington foi divulgada por ordem do próprio Temer, que está a agir como se já governasse o Brasil. Temer está furioso com o que ele considera uma mudança radical e altamente desfavorável na narrativa internacional, que tem retratado o impeachment como uma tentativa ilegal e anti-democrática da oposição, liderada por ele, para ganhar o poder de forma ilegítima.
O pretenso presidente enviou Nunes para Washington, segundo a Folha, para lançar uma “contra ofensiva de relações públicas” e combater o aumento do sentimento anti-impeachment ao redor do mundo, o qual Temer afirma estar “a desmoralizar as instituições brasileiras”. Demonstrando preocupação sobre a crescente percepção da tentativa da oposição brasileira de remover Dilma, Nunes disse, em Washington, “vamos explicar que o Brasil não é uma república de bananas”. Um representante de Temer afirmou que essa percepção “contamina a imagem do Brasil no exterior”.
“É uma viagem de relações públicas”, afirma Maurício Santoro, professor de ciências políticas da UFRJ, em entrevista ao The Intercept. “O desafio mais importante que Aloysio enfrenta não é o governo americano, mas a opinião pública dos EUA. É aí que a oposição está a perder a batalha”.
Não há dúvida de que a opinião internacional se voltou contra o movimento dos partidos de oposição favoráveis ao impeachment no Brasil. Onde, apenas há um mês atrás, os veículos de comunicação dos media internacionais descreviam os protestos contra o governo nas ruas de forma gloriosa, os mesmos veículos agora destacam diariamente o facto de que os motivos legais para o impeachment são, no melhor dos casos, duvidosos, e que os líderes do impeachment estão bem mais envolvidos com a corrupção do que Dilma.
Temer, em particular, estava abertamente preocupado e furioso com a denúncia do impeachment pela Organização de Estados Americanos, apoiada pelo Estados Unidos, cujo secretário-geral, Luis Almagro, disse que estava “preocupado com [a] credibilidade de alguns daqueles que julgarão e decidirão o processo” contra Dilma. “Não há nenhum fundamento para avançar num processo de impeachment [contra Dilma], definitivamente não”.
O chefe da União das Nações Sul-Americanas, Ernesto Samper, da mesma forma, disse que o impeachment é “um motivo de séria preocupação para a segurança jurídica do Brasil e da região”.
A viagem para Washington dessa figura principal da oposição, envolvida em corrupção, um dia após a Câmara ter votado pelo impeachment de Dilma, levantará, no mínimo, dúvidas sobre a postura dos Estados Unidos em relação à remoção da presidente. Certamente, irá alimentar preocupações na esquerda brasileira sobre o papel dos Estados Unidos na instabilidade no seu país. E isso revela muito sobre as dinâmicas não debatidas que comandam o impeachment, incluindo o desejo de aproximar o Brasil dos EUA e torná-lo mais flexível diante dos interesses das empresas internacionais e de medidas de austeridade, em detrimento da agenda política que eleitores brasileiros abraçaram durante quatro eleições seguidas.
ATUALIZAÇÃO: Antes desta publicação, o gabinete do Sen. Nunes informou ao The Intercept que não tinha mais informações sobre a viagem dele à Washington, além do que estava escrito no comunicado de imprensa, que data de 15 de abril. Subsequente à publicação, o gabinete do Senador indicou-nos informação publicada no Painel do Leitor (Folha de S. Paulo, 17.04.2016) onde Nunes afirma — ao contrário da reportagem do jornal — que a ligação do vice-presidente Temer não foi o motivo para sua viagem a Washington.
Traduzido por: Beatriz Felix, Patricia Machado e Erick Dau
Artigo publicado originalmente no The Intercept a 18 de abril de 2016 e reproduzido pelo Outras Mídias.
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