Miséria da fome. Miséria do ódio.
Quando José Saramago falou, no teatro da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), início da década de noventa, que o número de crianças mexicanas desaparecidas chegava a 35 mil, criei instantaneamente, a partir desse número assustador, um filme que nunca mais saiu de cartaz da minha cachola.
Algumas crianças eram encontradas. Porém mortas.
O médico e escritor Moacyr Scliar, cicerone e mediador do português (que ganharia o Prêmio Nobel de Literatura anos depois), teve sua expressão facial transformada, em segundos, de perturbado para terrificado.
Os transplantes de órgãos, nos Estados Unidos, feitos em clínicas clandestinas, eram operados por profissionais: médicos e enfermeiros.
Os transplantes de órgãos, nos Estados Unidos, feitos em clínicas clandestinas, eram operados por profissionais: médicos e enfermeiros.
Saramago falava que o capitalismo não tem limites para a desumanidade. Disse, diante de uma plateia incrédula, que o dinheiro compra a vida e paga pela morte.
O que as crianças mexicanas tinham em comum, além de seus corpos terem sido encontrados com a falta de alguns órgãos – que foram retirados – era a miséria.
Parece cruel demais? Atroz, desumano, bárbaro? Então nem leia o próximo parágrafo.
Anos depois, absolutamente por acaso, encontrei uma pessoa que confirmou essa história absurda contada por Saramago. Acho que minha cara ficou como a do Scliar.
Por que crianças mexicanas? Uma pergunta estúpida que merecia uma resposta óbvia.
Pela proximidade de um país com o outro, pela existência de uma separação definida por limites geográficos e através de muros muito altos de concreto armado?
Também, mas não só por isso.
A miséria também produz um considerável estoque de órgãos de reposição em outras regiões do planeta. Como na África.
No entanto, muitos pais, que podiam pagar pelo serviço, não queriam nos seus filhos doentes que os órgãos fossem de crianças negras.
Não sei como vou ficar depois de terminar esse texto e nem imagino como o leitor vai ficar. Talvez eu sente pra chorar. Talvez grite até perder a voz por completo.
Esse viés cruel da pobreza nunca é lembrado quando se fala em justiça social. A miséria alheia é um problema só da boca pra fora. Não rende um cartaz sequer na Avenida Paulista.
Mas já foi tema de um especial na TV Globo naquela mesma década em que José Saramago este no Brasil.
Aquele documentário que volta e meia passa na nossa timeline. Aquele documentário que mostra a miséria do nordeste. Aquele em que mulheres magras e crianças esqueléticas aparecem tomando sopa de pedra. O mesmo documentário que fez o repórter chorar de tristeza.
Era uma miséria que não tinha fim e todos queriam o fim dela. Segundo as vozes da sociedade, aqui era uma desumanidade.
Como um país como o Brasil poderia entrar nos anos dois mil com aquela vergonha?
Como o Brasil poderia se olhar no espelho?
Um país com vergonha de si mesmo.
O Brasil não foi capaz de lidar com a penúria durante 502 anos.
Precisou de um homem e de uma mulher para, em quatorze anos, fazerem o que ninguém nunca conseguiu fazer.
Criar uma forma, um jeito, uma maneira que fosse possível oferecer algum dinheiro para que crianças miseráveis pudessem comer, pelos menos, arroz e feijão.
Criar uma forma, um jeito, uma maneira que fosse possível oferecer algum dinheiro para que crianças miseráveis pudessem comer, pelos menos, arroz e feijão.
Esses dois, que hoje são chamados de ladrão e de vaca, acabaram com a miséria extrema no Brasil. Mas isso já não vem mais ao caso.
Bom dia!
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