PML: Ataque a Lula se apoia em técnica stalinista

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por Paulo Moreira Leite - 21/03/2016

Trinta e três anos depois de publicado, o premiado romance A Insustentável Leveza do Ser, do checo Milan Kundera, contém ideias de grande utilidade para se entender o Brasil de 2016.

A leitura do romance ensina que é preciso retornar a um dos piores momentos das ditaduras stalinistas para encontrar a matriz da operação que uniu o juiz Sérgio Moro e a TV Globo no esforço de destruição da imagem pública de Luiz Inácio Lula da Silva, horas depois de o Planalto confirmar sua nomeação como ministro-chefe da Casa Civil.

Estou falando da divulgação de conversas gravadas de Lula ex-presidente, oferecidas num pacote que inclui desde diálogos monitorados sem autorização devida do STF -- como a conversa com Dilma Rousseff -- até momentos nos quais sua mulher dona Marisa conversa com o filho Fábio Luiz.

Em diversas ocasiões, Lula é exibido em diálogos que, pela forma e pelo conteúdo, só costumam ocorrer na intimidade, quando uma pessoa faz críticas, cobranças e comentários em tom abusado, grosseiro e até mais do que isso porque conta com a garantia da privacidade, direito fundamental que deveria ser o pão nosso de cada dia de todo país onde vigoram direitos democráticos. Nossa Constituição diz no artigo 5, inciso X, que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação." Embora as escutas telefônicas sejam autorizadas em lei -- é indispensável que seja assim -- a mesma regra diz que toda interceptação que não interessa "à prova" deve ser "inutilizada." Isso quer dizer que não deve ser armazenada nem, muito menos, distribuída. Dever ser destruída.

A leitura de A Insustentável Leveza do Ser mostra que a divulgação dos diálogos de Lula foi um exercício covarde e totalitário, típico de uma situação em que os direitos das pessoas deixaram de merecer o devido respeito. Não por acaso, este tratamento foi padronizado pela ditadura que assumiu o poder da Tchecoslovaquia após a derrota da Primavera de Praga, em 1968, após uma experiência de seis meses em que se procurou criar um socialismo com liberdades democráticas, ou com "face humana", como se dizia.

Na construção de uma tirania que sobreviveu por longos 22 anos, as gravações telefônicas -- divulgadas publicamente, em trechos selecionados pelo serviço secreto -- tiveram um papel essencial na consolidação de um regime de perseguição e terror. Através dos grampos -- envolvendo comentários privados, de natureza pessoal e mesmo íntima -- a ditadura stalinista fazia seu serviço sujo, que consistiu na destruição da imagem pública dos adversários, muito mais eficaz, do seu ponto de vista, do que o debate aberto e franco a partir de ideias políticas e confrontos doutrinários.

Nessa situação de força, não se queria debater, nem negociar, nem ceder. Pela força absoluta do Estado, o que se promovia era a desmoralização integral e sem remédio dos adversários do momento, impedindo antigos líderes e personalidades da sociedade civil de mover-se no espaço público, perversamente atingidos em sua credibilidade. Traduzido em português lusitano, aqui está a Quarta Parte do romance, intitulada O Corpo e a Alma. Convém prestar atenção às passagens em que Kundera se refere a Jan Prochaska (1929-1971), escritor e roteirista premiado:

"A rádio estava a dar um programa sobre a emigração checa. Era uma montagem de gravações clandestinas  de conversas privadas feitas por um espião checo que se infiltrara entre os emigrantes e depois regressara em  triunfo ao país. Eram conversas anódinas e entrecortadas, de quando em vez, por insultos contra o regime de  ocupação e por frases em que os emigrantes se qualificavam uns aos outros como cretinos e impostores. A emissão insistia sobretudo nestas últimas passagens: com efeito, era preciso provar que aquela gente  não só dizia mal da União Soviética (o que já não punha ninguém indignado) como também que não hesitava em mimosear-se com os piores insultos. O que é curioso é que dizemos palavrões de manhã à noite, mas basta ouvirmos na rádio um tipo conhecido e respeitado pontuar o seu discurso com uns estou-me bem a cagar para eles para, inconscientemente, nos sentirmos algo desapontados.     

A primeira vítima de uma coisa destas foi Prochazka!, disse Tomas, sem deixar de prestar atenção  àquilo que estava a ouvir. Jan Prochazka era um romancista checo de cerca de quarenta anos, forte como um touro, que, ainda muito  antes de 1968, começou a criticar em voz alta a situação do país. Era um dos homens mais populares da Primavera  de Praga, essa vertiginosa liberalização do comunismo que terminou com a invasão russa. Pouco depois da  invasão, todos os meios de comunicação social lhe davam o toque de rendição, mas quanto mais encurralado se  encontrava maior era a sua popularidade. Por isso, em 1970, a rádio começara a transmitir à maneira de um  folhetim as conversas privadas que, dois anos antes (portanto, na Primavera de 1968). Prochazka tivera com um  certo professor universitário. Nenhum dos dois suspeitava que havia um sistema de escuta montado em casa do  professor e que, há muito tempo já, todos os gestos que faziam eram espiados até ao mais ínfimo pormenor! Prochazka punha sempre os amigos bem-dispostos com as suas hipérboles e as suas ousadias. E, agora, essas  suas inconveniências eram regularmente transmitidas pela rádio! A polícia secreta, que montara o programa, tivera  o cuidado de dar um relevo especial a uma passagem em que o romancista fazia troça dos amigos, entre os quais  se contava, por exemplo, Alexandre Dubcek. As pessoas não perdem uma ocasião de dizer mal dos amigos, mas, coisa curiosa, ficaram mais indignadas contra o seu bem-amado Prochazka do que contra a polícia secreta, unanimemente detestada! Tomas desligou o aparelho e disse:   Todos os países do mundo têm uma polícia secreta. Mas só cá é que  ela transmite as gravações que faz pela rádio! É uma coisa inaudita! - Não tanto como isso!, disse Tereza. Aos catorze anos, eu tinha um diário. Tinha medo que alguém o lesse. Escondia-o no sótão. A minha mãe acabou por descobri-lo. Um dia, ao almoço, enquanto estávamos a comer a sopa, tirou-o da algibeira e disse: "Ora ouçam todos com muita atenção!", e pôs-se a lê-lo em voz alta,  desmanchando-se a rir a cada frase. Toda a família se desmanchou também a rir e se esqueceu de comer."

Diante das críticas que a divulgação dos grampos recebeu, em particular em função de um diálogo entre Lula e Dilma, Sérgio Moro chegou a assinar, num despacho, uma referência às gravações telefônicas de Richard Nixon no caso Watergate. Ficou no ar a sugestão de que um caso era semelhante a outro. É uma comparação indevida, ainda que possa ser útil para quem deseja embelezar os movimentos pelo impeachment de Dilma. 

Para começar, os diálogos que permitiam apontar o envolvimento de Nixon com o acobertamento de operadores do serviço secreto envolvidos no esquema de espionagem do Partido Democrata não foram gravados pelo FBI nem por qualquer outra ramificação do serviço secreto. Faziam parte do sistema de gravação e filmagem de diálogos criado pela presidência dos Estados Unidos na década de 1960, pela qual toda conversa mantida pelo presidente dos EUA em aposentos oficiais é registrada, gravada e liberada pelo prazo definido em lei para publicação de documentos históricos. Graças a esse sistema, os brasileiros puderam saber, quase quatro décadas depois, que em 1962 o presidente John Kennedy deu sinal verde para o golpe de 64 no Brasil, durante uma conversa em companhia do embaixador Lincoln Gordon. Não houve grampo nem vazamento. Apenas o cumprimento da lei e dos prazos regulamentares.

Respeitando, escrupulosamente, as prerrogativas do presidente dos Estados Unidos, nem o FBI nem a Justiça liberaram as fitas que continham as conversas que -- supunha-se corretamente -- comprometiam Richard Nixon. Quando ficou claro que ali havia um caso de interesse da Justiça, a Suprema Corte determinou, em votação unânime, que o próprio Nixon entregasse as gravações que correspondiam ao período sob investigação. Era uma forma de garantir o avanço de uma investigação sem desrespeitar os direitos do presidente. Foi aí que, em vez de entregar as fitas, Nixon decidiu renunciar.

Uma boa diferença, vamos combinar.

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