‘Planos B': ocidente só pensa em dividir os árabes
3/3/2016, Ramzy Baroud, Counterpunch
Traduzido por Vila Vudu
Quando as ruas árabes explodiram em fúria de Túnis a Sanaa, o pan-arabismo parecia, naquele momento, nada além de conceito nominal. Nem a chamada ‘Revolução do Jasmim’ usou slogans que afirmassem alguma identidade árabe, nem os jovens egípcios zangados ergueram a bandeira da unidade árabe no alto dos prédios em torno da Praça Tahrir.
Estranhamente, o arabismo da “Primavera Árabe” foi quase como um resultado de conveniência. Era politicamente conveniente para os governos ocidentais estereotipar as nações árabes, como se todas fossem duplicatas exatas umas das outras, e todos os sentimentos, identidades e expectativas nacionais, além das revoltas populares, fossem todas enraizadas num mesmo passado e correspondessem item a item com alguma precisa realidade de hoje.
Assim, muitos no ocidente esperaram que a queda de Zine El Abidine Ben Ali da Tunísia, porque aconteceu depois da abdicação de Hosni Mubarak do Egito, levaria a um ‘efeito dominó’. “Quem é o próximo?” era a pergunta pretensiosa que andava na boca de muitos, dos quais vários absolutamente nada compreendiam da região e sua complexidade.
Depois de hesitação inicial, os EUA, com seus aliados ocidentais, rapidamente passaram a influenciar o resultado em alguns países árabes. A missão dos EUA seria garantir transição suave em países cujo destino empurrara na direção de revoltas de impulso, de modo a garantir que fossem derrubados os inimigos e empossados aliados dos EUA, de modo que não viessem a sofrer fim semelhante.
O resultado foi devastação real e total. Países nos quais o ocidente e seus aliados envolveram-se – e, como seria de esperar, houve confronto entre inimigos – converteram-se em infernos, não de fervor revolucionário, mas de caos, terrorismo e guerra sem fim entre ‘militantes’. Exemplos óbvios são Líbia, Síria e Iêmen.
Em certo sentido, o ocidente – mídia-empresas e aliados – se autoatribuíram a missão de guardas com o dever não só de ‘conduzir’ o destino dos árabes, mas também de modelar as identidades deles. Com o colapso de toda a noção de nação em alguns países árabes – na Líbia, por exemplo –, os EUA estão chamando para eles a responsabilidade de delinear cenários futuros dos estados árabes esfacelados.
Em depoimento a uma comissão do Senado dos EUA reunida para discutir o cessar-fogo na Síria, o secretário de Estado John Kerry revelou que seu país está preparando um “Plano B”, para o caso de o cessar-fogo falhar. Kerry não deu detalhes, mas distribuiu pistas. Talvez já não haja tempo “para manter a Síria como estado uno, se esperarmos demais” – disse ele.
A ideia de dividir a Síria não foi lembrança casual. A possibilidade está prevista num constructo amplo e sempre em crescimento de textos ‘jornalísticos’ e ‘teóricos’ nos EUA e em outros países ocidentais. Foi articulada inicialmente por Michael O’Hanlon do Brookings Institute em artigo assinado para a Reuter em outubro passado. Propôs que os EUA encontrassem ‘objetivo comum com a Rússia’, mantendo simultaneamente em mente o ‘modelo bósnio':
“Assim também, uma futura Síria pode ser uma confederação de vários setores: um, predominantemente alauíta; outro, curdo; um terceiro, primariamente druso; um quarto, de maioria muçulmana sunita; e uma zona central de grupos misturados no principal cinturão populacional do país, de Damasco a Aleppo.”
O mais perigoso na ‘solução’ de O’Hanlon para a Síria não é a completa desatenção a qualquer identidade nacional síria. Bem francamente, e para começar, muitos intelectuais ocidentais sequer aceitam, até hoje, a ideia de que as nações árabes sejam realmente nações no sentido ocidental de nacionalidade. (Leiam o artigo de Aaron David Miller, “Tribes with Flags“). O maior perigo está no fato de que há incontáveis precedentes históricos bem plausíveis desse tipo de ação de desmantelamento de nações árabes.
“Assim também, uma futura Síria pode ser uma confederação de vários setores: um, predominantemente alauíta; outro, curdo; um terceiro, primariamente druso; um quarto, de maioria muçulmana sunita; e uma zona central de grupos misturados no principal cinturão populacional do país, de Damasco a Aleppo.”
O mais perigoso na ‘solução’ de O’Hanlon para a Síria não é a completa desatenção a qualquer identidade nacional síria. Bem francamente, e para começar, muitos intelectuais ocidentais sequer aceitam, até hoje, a ideia de que as nações árabes sejam realmente nações no sentido ocidental de nacionalidade. (Leiam o artigo de Aaron David Miller, “Tribes with Flags“). O maior perigo está no fato de que há incontáveis precedentes históricos bem plausíveis desse tipo de ação de desmantelamento de nações árabes.
Não é segredo que a formação moderna de países árabes foi, em grande medida, efeito da divisão da região árabe dentro do Império Otomano, que criou miniestados. Foi o resultado de acordos e necessidades políticas que brotaram do Acordo Sykes-Picot em 1916. Os EUA, então, estavam mais preocupados com os vizinhos sul-americanos. O resto do mundo era em grande parte tema de um Grande Jogo conduzido por britânicos e franceses.
O acordo franco-britânico, com consentimento dos russos, foi integralmente motivado pela mais crua ganância, por interesses econômicos, ânsia por fixar nova hegemonia política e pouco além disso. Assim se explica por que quase todas as fronteiras de países árabes eram perfeitas linhas retas. Não surpreende, porque foram riscadas com régua e lápis; não foram evolução histórico-geográfica traçada por fatores vários e extensa história de conflitos ou de paz.
Já lá vão quase 100 anos desde que as potências coloniais dividiram os árabes – o que não significa dizer que algum dia tenham respeitado as fronteiras que eles mesmos traçaram. Além do mais, investiram muito tempo, energia, recursos e, vez ou outra, guerras totais, para garantir que aquela divisão arbitrária prosseguisse sempre, sem jamais chegar de fato a algum fim.
O ocidente não odeia só a expressão “unidade árabe”; odeia também quem insista em divulgar o que, para o ocidente, não passa de terminologia hostil radical. O segundo presidente do Egito, Jamal Abdel Nasser, dizia que a verdadeira libertação e a autodeterminação de nações árabes estavam intrinsecamente ligadas à unidade árabe.
Assim sendo, não surpreende que a luta pela Palestina ocupada por Israel tenha ocupado o lugar central na retórica do nacionalismo árabe durante os anos 1950s e 60s. Abdel Nasser virou herói nacional aos olhos de muitos árabes, e pária aos olhos do ocidente e de Israel.
Para garantir que os árabes jamais se unam, o ocidente investiu muito em desuni-los cada vez mais. Em 2006/07, a ex-secretária de Estado dos EUA Condoleezza Rice disse claramente que os EUA deixariam de apoiar a Autoridade Palestina, se Fatah e Hamas se unissem. Antes, quando a resistência no Iraque alcançou ponto que os ocupantes norte-americanos consideraram inadmissível, os EUA investiram em dividir as fileiras iraquianas, sempre seguindo linhas sectárias. E intelectuais norte-americanos logo se puseram a falar da possibilidade de dividir o Iraque em três estados autônomos: um xiita, um sunita e um curdo.
A Líbia também foi esfacelada depois de o país ser ocupado pela OTAN, intervenção que transformou um levante regional em guerra e mar de sangue. Desde então, França, Grã-Bretanha, EUA e outros só fazem apoiar alguns grupos contra outros. Qualquer senso de nacionalidade que existisse depois do fim da colonização italiana na Líbia foi dizimado, quando os líbios tiveram de reverter às antigas regiões e tribos, para sobreviver à invasão pela OTAN.
Um muito falado “Plano B”, para dividir a Líbia em três protetorados separados – Tripolitania, Cyrenaica e Fezzan – foi rejeitado ainda recentemente pelo embaixador da Líbia em Roma. Em todos os casos, os cidadãos líbios são a parte considerada menos importante, jamais consultada quando se trata de determinar o futuro do próprio país.
Aos olhos ocidentais, o mundo árabe sempre foi lugar a conquistar, a explorar, a controlar e a domar. Essa mentalidade continua a definir o relacionamento. Sempre que a unidade entre árabes passa a ser encaminhamento a temer, muitas vezes depois que um suposto infalível “Plano A” já falhou, o ocidente reaparece com Planos B, que são, sempre, projetos para dividir e dividir.
Verdadeiramente interessante é que, apesar de não haver uma visão pan-arabista nos países árabes que passaram por revoltas populares há cinco anos, poucos eventos da história moderna conseguiram reaproximar tanto os árabes como os cantos de independência em Túnis, os gritos de vitória no Egito e os gemidos de dor no Iêmen e na Síria.
É essa identidade muito fundamente coletiva, raramente comentada, mas sempre sentida, que leva milhões de árabes a manter acesa e ativa qualquer mínima esperança que ainda reste de que seus países sobreviverão ao massacre pelo qual passam hoje e a qualquer plano que o ocidente invente para dividi-los.
Dr. Ramzy Baroud escreve sobre o Oriente Médio há mais de 20 anos. Ele é um colunista internacionalmente sindicalizado, um consultor de mídia, autor de diversos livros e fundador da PalestineChronicle.com. Seu último livro é ” Meu pai foi um lutador da liberdade: Untold Story de Gaza” (Pluto Press, Londres). Seu site é: ramzybaroud.net
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