Moro acredita que salvadores da Pátria devem fazer reforma política. Precisa demonstrar tanta transparência quanto cobra dos eleitos

publicado em 21 de março de 2016 às 20:37
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Moro the savior, a “revolução” das Mãos Limpas no La Stampa — que acabou no Mãos Sujas Berlusconi — e os intocáveis na Folha de S. Paulo
por Luiz Carlos Azenha - no VIOMUNDO
Internautas irresponsáveis andaram espalhando inverdades sobre o juiz Sérgio Moro nas redes sociais: que ele é filiado ao PSDB, que o pai fundou o PSDB de Maringá, que a esposa é advogada do PSDB.
Se fosse uma campanha política, poderíamos até especular que trata-se de contra-informação: mentiras conscientemente disseminadas para que a verdade, finalmente estabelecida, absolva o injuriado de qualquer outra crítica.
Na verdade, não sabemos quais são as posições políticas do juiz Sérgio Moro e as falsas acusações contra ele apenas turvam o entendimento de onde o juiz federal do Paraná pretende chegar.
Considerá-lo tucano sem provas factuais não é apenas mentiroso, é um desserviço à informação.

Num evento recente, Moro se disse apartidário, mas é significativo que tenha atendido a convite feito pelo agora candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo, João Dória Jr. Mais não é possível inferir a partir disso.
Porém, é claríssimo que Moro acredita no ativismo judicial. Isso fica claro nas palavras que ele mesmo escreveu, ao avaliar a operação Mãos Limpas, na Itália.
Moro resumiu a Mani Pulite, com seus erros e acertos, como “um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário”. Ele parece determinado a repetí-la no Brasil.
O parágrafo abaixo pode ser revelador da ambição do juiz federal do Paraná:
Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros. A ação judiciária revelou que a vida política e administrativa de Milão, e da própria Itália, estava mergulhada na corrupção, com o pagamento de propina para concessão de todo contrato público, o que levou à utilização da expressão “Tangentopoli” ou “Bribesville” (o equivalente à “cidade da propina’) para designar a situação. A operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente.
É, de fato, algo muito ambicioso: deslegitimar o sistema político seria a melhor forma de reformá-lo. Moro descreveu como foi na Itália:
A deslegitimação do sistema foi ainda agravada com o início das prisões e a divulgação de casos de corrupção. A deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada: A deslegitimação da classe política propiciou um ímpeto às investigações de corrupção e os resultados desta fortaleceram o processo de deslegitimação. Conseqüentemente, as investigações judiciais dos crimes contra a Administração Pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado. As investigações mani pulite minaram a autoridade dos chefes políticos – como Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes do DC e do PCI – e os mais influentes centros de poder, cortando sua capacidade de punir aqueles que quebravam o pacto do silêncio.
Moro, o incendiário! O revolucionário! Segue o texto:
Uma nova geração dos assim chamados “giudici ragazzini” (jovens juízes), sem qualquer senso de deferência em relação ao poder político (e, ao invés, consciente do nível de aliança entre os políticos e o crime organizado), iniciou uma série de investigações sobre a má-conduta administrativa e política . A independência judiciária, interna e externa, a progressiva deslegitimação de um sistema político corrupto e a maior legitimação da magistratura em relação aos políticos profissionais foram, portanto, as condições que tornaram possível o círculo virtuoso gerado pela operação mani pulite.
Isso mais parece texto de um anarquista dissimulado.
Abaixo todo o sistema político! Fim dos conchavos de bastidores! Extinção da modernização conservadora que rege o Brasil desde sempre, com nomes trocados: UDN-PSDB x PTB-PT, com PSD-PMDB fiel da balança! Abaixo o monopólio da Rede Globo!
No artigo, o juiz do Paraná sustenta que as delações premiadas só poderiam advir de prisão preventiva com base factual. Na Itália, descreve Moro, boatos e isolamento foram ferramentas importantes:
A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso “dilema do prisioneiro”). Além do mais, havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados. Para um prisioneiro, a confissão pode aparentar ser a decisão mais conveniente quando outros acusados em potencial já confessaram ou quando ele desconhece o que os outros fizeram e for do seu interesse precedê-los. Isolamento na prisão era necessário para prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma, acordos da espécie “eu não vou falar se você também não” não eram mais uma possibilidade.
Para disseminar as informações “sobre uma corrente de confissões” e para manter o assunto permanentemente em debate público, era preciso utilizar uma ferramenta: a mídia.
Escreve Moro, sobre como foi na Itália:
Os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva. Craxi [Betino, do Partido Socialista], especialmente, não estava acostumado a ficar na posição humilhante de responder a acusações e de ter a sua agenda política definida por outros.
É límpido, portanto, que Moro acredita no ativismo político, a ponto de interferir na agenda dos investigados e deixá-los na defensiva.
Isso é Política com P maiúsculo!
Mas, surge aqui um dado preocupante: Moro propõe o reinado da “meritocracia” sobre a soberania popular.
Expressa um idealismo ahistórico: pressupõe que o Brasil tenha a mesma tradição democrática da Itália, que seja um país do capitalismo central onde é hora de desconcentrar o capital e acabar com os monopólios, que não tenha uma Justiça tão ou mais corrupta que o Legislativo e o Executivo, que o enfraquecimento repentino de suas instituições não beneficie interesses externos, que a mídia não seja corrupta e concentrada.
O juiz do Paraná fala em “apoio da democracia” para o combate à corrupção, mas não observa que nossa democracia é marcada pela concentração de renda e desigualdade social e, portanto, que os mais ricos dispõem de instrumentos que faltam aos mais pobres em todas as esferas da convivência social.
Escreveu Moro, em sua análise francamente favorável à Mani Pulite:
Talvez a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia. É esta quem define os limites e as possibilidades da ação judicial. Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados. Se isso não ocorrer, dificilmente encontrará êxito. Por certo, a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados. Somente investigações e ações exitosas podem angariá-la. Daí também o risco de divulgação prematura de informações acerca de investigações criminais. Caso as suspeitas não se confirmem, a credibilidade do órgão judicial pode ser abalada. Além disso, a ação judicial não pode substituir a democracia no combate à corrupção. É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais próprios, atacar as causas estruturais da corrupção. Ademais, a punição judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil, se não por outros motivos, então pela carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal. Nessa perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo.
O que Moro está dizendo, aqui, é ativismo político puro.
Na falta da “carga de prova” exigida para a condenação, o juiz da Lava Jato crê que a opinião pública poderá condenar os acusados ao “ostracismo”, o que é basicamente uma ação política turbinada por réus confessos que se tornam delatores e vazamentos de indícios como se fossem provas.
Isso não pode ser discurso de juiz, mas de um político. Um provável candidato a presidente da República, como observou o jurista Fábio Comparato em evento da USP. Que usa a Justiça agora para se livrar de possíveis adversários? Será?
É preciso considerar, ainda, que a opinião pública “esclarecida” a que Moro se refere acima, no Brasil, está 1000 vezes mais sujeita à opinião de uma mídia concentrada, repleta de reinaldos e mervais, onipresentes em diversas plataformas, do que à modesta opinião de um blogueiro sujo.
Ou seja, o julgamento público com o qual ele pretende condenar líderes políticos ao ostracismo, na falta de provas, não é um evento necessariamente justo, embora Moro seja juiz com juramento de praticar a Justiça.
No vazamento dos diálogos do ex-presidente Lula, dos quais retirou oficialmente o sigilo, Moro incluiu duas conversas que, pela lei, deveria ter submetido ao Supremo Tribunal Federal, por prerrogativa de foro.
1. Da presidenta Dilma Rousseff com o ex-presidente Lula.
2. Do ministro Jacques Wagner com o presidente do PT, Rui Falcão, nenhum deles sob investigação na Lava Jato.
Aqui, Moro político atropela Moro juiz.
É possível, repito, possível, que ele tenha considerado que não se faz omelete sem quebrar os ovos.
Podemos supor que Moro pretendia levar a opinião pública “esclarecida” à conclusão de que, aqui como na Itália, o partido no poder age como uma organização criminosa e, portanto, deve ser condenado, se não nos tribunais, pelo menos ao ostracismo.
Seria uma espécie de sentença coletiva para os líderes do PT e milhões de filiados do partido, embora isso não exista no Direito.
Por que Moro trouxe para dentro da coleção de grampos a presidenta da República, um importante ministro de Estado e o presidente do PT, não fosse o objetivo de condená-los publicamente, por associação a Lula?
Jornal Nacional tratou de acrescentar às falas dos grampeados um jogral com entonação teatral que não permitiu outra interpretação: a da grande conspiração petista. Quase sem direito a contraditório.
O que nos preocupa é que os que ouvem o conjunto das gravações sem a intermediação do JN podem chegar a conclusão diametralmente oposta.
Uma explicação que ouvi: Lula e seus colegas de partido estavam simplesmente fazendo política. Acossado por um juiz que não acreditavam imparcial, por causa da condução coercitiva de quem nunca tinha se negado a depor, especulavam sobre a melhor forma de enfrentá-lo “politicamente”.
Aliás, como político Moro deu um nó em Lula. Arrastou-o humilhado para o aeroporto de Congonhas e autorizou as escutas, para em seguida registrar a indignação do detido. Como descreveu em seu artigo sobre a Mani Pulite, definiu a agenda política do ex-presidente. Um golpe de mestre digno não de um juiz, mas de um candidato.
Sem juízo de valor, fica claro que estamos tratando de um embate político: Moro age sob a proteção de suposta isenção judicial e tem o instrumento da “obstrução de Justiça”  — além de toda a mídia — para usar contra Lula, o PT, militantes do PT e qualquer apoiador do ex-presidente; Lula, por sua vez, tem o governo e parcela da opinião pública.
É por isso que Moro nos deve a mesma transparência que cobra dos políticos.
É urgente que se manifeste publicamente — para todos os que apoiamos a Operação Lava Jato, menos as arbitrariedades, os vazamentos e as indevidas conduções coercitivas — sobre para onde ele, os procuradores do MPF e os delegados da PF pretendem nos levar e ao Brasil. Qual é o plano? Como será a economia? A taxa de juros?
Provavelmente inspirados no ativismo político e judicial de Sérgio Moro, os promotores paulistas — aqueles do Marx&Hegel — alegaram como um dos motivos para a prisão preventiva de Lula o fato de que o ex-presidente teria “incitado” a opinião pública contra autoridades constituídas. Ecos da ditadura militar. Mais um passo e estariam investigando delitos de opinião, como “usar vermelho”. Não duvido que chegaremos a isso.
Não é, no entanto, o caso do juiz Moro. Ele tem uma claríssima proposta de reforma política e está agindo para implantá-la. Você até pode ser contra, mas não pode desconhecer que o projeto encontrou eco numa parcela significativa da sociedade brasileira.
Se um juiz de primeira instância pode ou deve fazer isso… ingressamos em outra discussão.
Em seu artigo sobre a Mani Pulite, Moro registra o paradoxo: depois de toda a “limpeza” na Itália, o corrupto Silvio Berlusconi se tornou primeiro-ministro. Mas nós ainda não chegamos à fase de avaliar as consequências de fazer o mesmo no Brasil.
Para cumprir seus objetivos, Moro fala fora dos autos, descarta como “irrelevantes” fatos que poderiam prejudicar a meta final (por exemplo, o grampo de Dilma e Lula ter sido feito depois de suspensas as interceptações) e acredita numa democracia em que agentes públicos não eleitos atuem em sintonia com uma opinião pública “esclarecida” para fazer valer a “soberania popular”.
Não é de estranhar, num país em que Eduardo Cunha comanda o processo de impeachment, que Moro tenha se transformado numa espécie de herói do deserto nacional.
Ele me parece um revolucionário sincero, mas corre o mesmo risco de outro voluntarista, George W. Bush, com o agravante de que Moro não foi eleito.
Bush, que se tornou evangélico para escapar do alcoolismo, consultou Deus antes de atacar os diabólicos políticos iraquianos, com suas inclinações sanguinárias e ditatoriais. Colheu 150 mil mortos, 2 milhões de refugiados, a fratura do Iraque e a ascensão do ISIS. Danos meramente colaterais para um homem que encarnava o Salvador.
No Brasil, o plano de Moro é menos ambicioso. Como se viu no 13 de março, embora com português claudicante, ele tem ao seu lado a Força — ou pelo menos a parte branca dela:
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