A hora chegou: é hoje e é na rua

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Quando a história destes dias for contada, o registro da memória progressista não pode ser a omissão.


Muito do que acontecerá no Brasil nos próximos dias, meses e anos refletirá a abrangência das mobilizações que devem tomar as ruas do país nesta 5ª feira, 31 de março de 2016.
 
O destino da nação e a destinação do seu desenvolvimento dependem de cada metro quadrado ocupado nas ruas, praças e avenidas nas próximas horas.
 
Quando a história destes dias for contada, o registro da memória  progressista não pode ser a omissão.
 
‘Vivia-se um interregno da história’, dirão os cronistas sobre estes dias de março de 2016. “O país podia pender para qualquer lado’.


 
Qual prevaleceu?
 
O dia de responder é hoje; a hora é agora e o lugar é a rua.
 
Exatamente 52 anos depois que interesses conservadores locais e estrangeiros, capitaneados igualmente pela mesma mídia, a mesma Fiesp, a mesma OAB derrubaram o governo reformista e democrático do então presidente João Goulart, abre-se o espaço para um repto popular e progressista.
 
Só os muito distraídos podem ignorar a semelhança entre a cepa dos interesses e argumentos embalados na urdidura  de um impeachment ilegal, e o assalto a um poder que a urna não havia concedido à reação em 1964.
 
À suavização inicial –os militares prometiam eleições em um ano-- seguiram-se duas décadas de repressão asfixiante.
 
O resto é sabido, mas não integralmente.
 
Ainda há desaparecidos, corpos destroçados e atrocidades ‘esquecidas’ nos porões onde florescia o matrimônio entre aparatos de triturar ossos e entidades empresariais cúmplices –as mesmas que retiram do armário seu paramento cívico para de novo ameaçar a democracia.
 
O fato de que um símbolo da podridão política, como Eduardo Cunha, dirija o processo de impeachment de uma mulher honrada como a Presidenta Dilma, deveria ser suficiente para devolver a palavra ética a um abrigo a salvo da ofensiva em curso.
 
Se a mídia insiste em direcionar a lama ubíqua da corrupção para justificar o injustificável, deve-se mais ao fato de o conservadorismo não poder explicitar suas reais intenções, do que a qualquer compromisso com o zelo da coisa pública.
 
O véu do noticiário sonega aos brasileiros a gravidade do que está em jogo para enfatizar a tese do “desgoverno” e da inexorabilidade do arrocho prescrito pela gororoba neoliberal.


Sem esse truque, o poder de convencimento conservador  perderia em muito da eficácia alcançada nos dias que correm.
 
Intrigava que o governo endossasse o filtro em vez de rompê-lo como a encruzilhada brasileira exigia.
 
Ainda que tarde, a inércia se quebrou.
 
Luta a batalha do dia anterior quem ainda não se apercebeu da mutação registrada nas últimas horas.
 
A cerimônia desta 4ª feira, no Planalto, em que a Presidenta Dilma anunciou a contratação de mais dois milhões de unidades do Minha Casa-3, até 2018, esboça o caminho de uma conversão temida pelas fileiras do golpe.
 
Nela, a escumalha que desembarcou na 3ª feira, é vantajosamente substituída pela presença programática, política e física --direta- dos movimentos populares na concepção e  gestão governamental.
 
A reação estupefata da mídia com o tom engajado das cerimonias no Planalto, onde a rede Globo e os golpistas são ‘celebrados’ por plateias cada vez mais aguerridas, mostra que há alternativas ao definhamento.
 
O governo renasce cada vez que cola o seu destino ao dos movimentos sociais, assim como desfalece sempre que dispensa exclusividade à busca de uma base parlamentar necessária, mas insuficiente.
 
Essa não é uma avaliação pictórica de cerimonias palacianas.
 
Trata-se de uma referência para a ação política imediata e desassombrada.
 
Aquela capaz de mudar a correlação e forças e de fazê-lo tão rapidamente quanto requer a audácia golpista.
 
Se há a compreensão por parte do governo de que o desembarque da 3ª feira zera o jogo e abre espaço a uma repactuação estratégica, é preciso traduzi-lo em maior presença efetiva dos movimentos sociais na composição do novo ministério.
 
Não é de ornamento popular que se fala.
 
Estamos falando do poder e da capacidade de exerce-lo em um cenário de ofensiva conservadora.
 
O sucesso desse salto depende da capacidade conjunta de governo, movimentos sociais, base parlamentar, centrais e forças democráticas em geral –inclusive as empresariais—  de erguerem linhas de passagem para um novo ciclo.
 
Aquele ancorado em grandes pactos de salário, preços, juros, investimento, que devolvam à nação um horizonte econômico e à sociedade, a esperança no futuro.
 
Ter a visão integral do jogo é decisivo para arregimentar a correlação de forças necessária à retomada do desenvolvimento, em meio à estagnação global.
 
Excesso de capacidade produtiva, desprovida da demanda correspondente, explica a persistência da mais longa convalescência de uma crise mundial, desde 1929.
 
Não por acaso, depois de adicionarem lodo ao pântano sistêmico, desde  2008  – operação que os artífices  da ‘Ponte para o Futuro’ pretendem replicar no Brasil-- governantes de diferentes latitudes começam a descobrir o poder regenerador do salário mínimo.
 
A informação oportuna nos dias que correm é do insuspeito Financial Times, desta 4ª feira.
 
A depreciação salarial, o aumento da desigualdade e a corrosão dos direitos sociais figuravam nos dias de fastígio da farra financeira global como uma ‘externalidade’ inevitável, decorrente do ‘saudável aumento da concorrência internacional’.
 
A crise de 2008 deu uma espécie de aviso prévio a essa presunção, que agora faz água por todos os lados.
 
A Alemanha introduziu em 2015 seu primeiro salário mínimo, informa o Financial Times. O governo conservador inglês decidiu agora ir além, conta o jornal, ao acelerar a recuperação da base da pirâmide salarial, medida igualmente adotada no Japão e por um número crescente de cidades nos EUA.
 
No Brasil, não.
 
Aqui, o conservadorismo enxerga no ganho real de 70% do salário mínimo, desde 2003, uma das causas do ‘desmanche’ da economia, para a qual advoga um lacto purga de arrocho e privatizações –o que anulará o pouco que ainda resta de poder do Estado para implementar soluções nacionais a desafios que foram globalizados.
 
A incapacidade de ação do Estado figura na raiz do descrédito que democracia e a política enfrentam hoje no Brasil.
 
Pesquisa recente do Data Popular (Valor 29/03)  constatou que '95% dos brasileiros acham que o país vive uma crise de perspectiva; e 89% são incapazes de apontar um nome em condições de tirar a nação do impasse.
 
É mais difícil que isso, porém.
 
Não basta um nome.
 
É preciso que ele expresse uma coalizão de forças capaz de sustentar a verdadeira ponte para o futuro.
 
Um ministério dotado de forte incidência junto aos movimentos populares, com capacidade de negociação para repactuar conflitos e escolhas do desenvolvimento, pode preencher esse requisito.
 
Se quiser derrotar o golpe e a recessão, o governo Dilma terá que explorar essa liberdade que a crise colocou na sua mesa.
 
Reinventar-se para devolver à democracia o poder de dizer não ao mercado e aos seus açougueiros.
 
É disso que se trata.
 
A hora de dar a resposta chegou.
 
E um pedaço dela terá que ser proferida na rua.
 
Hoje e agora.

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