Venezuela: enquanto a águia caça moscas, a crise engorda

Enquanto Maduro se dedica a uma guerra de microfones, a população espera soluções para o desabastecimento, a inflação e a insegurança.


Aram Aharonian - Carta Maior - 03/02/2016
EBC
A Venezuela está submergida numa persistente crise, e o sistema político continua paralisado dando as costas a essa crise, que vai engordando sem encontrar obstáculos. Enquanto isso, o presidente Nicolás Maduro se dedica a caçar moscas, em sua contínua guerra de microfones, e a população espera soluções para o desabastecimento, a inflação, a insegurança – uns dizem que a frase é de Sêneca, outros de Platão, mas quem a popularizou foi Hugo Chávez: “águias não caçam moscas”.
 
Alguns sustentam a tese de que existe uma certa forma de coexistência política no país, mas a realidade é que as facções que disputam a direção da sociedade, tanto governo quanto oposição, parecem carecer de capacidade  – ou interesse – para chegar a um acordo. Ainda mais quando a autoproclamada Mesa de Unidade Democrática (MUD), que agrupa a heterogênea oposição se mantém presa à sua promessa de derrubar o presidente Maduro até a metade deste ano.

 
Os setores acadêmicos da direita insistem que, pouco a pouco, se está construindo um consenso de que o cenário mais provável e favorável para começar a superar a crise e abrir uma transição democrática passa pela renúncia de Maduro. Posição consoante, por exemplo, com a do secretário-geral da MUD, Chúo Torrealba, que afirmou que o primeiro passo é que o mandatário dê um passo para trás e permita a construção de “uma saída pacífica, constitucional, eleitoral, democrática e concertada a esta crise que temos. Permitir que a Venezuela tenha um novo governo que inspire confiança ao mundo e que tenha poder de convocação interna”.
 
Já o governo continua paralisado, errático, inoperante (apesar dos esforços de um vice-presidente executivo –Aristóbulo Istúriz – com capacidade de diálogo), diluído em reuniões que convocam outras reuniões, e anúncios de próximos anúncios que nunca chegam, entregues aos cantos de sereia da via capitalista e soluções neoliberais. Um governo enredado nas lembranças recentes do caminho ao socialismo traçado por Hugo Chávez. Não só se mostra errático como parece vazio de ideologia em seu enfrentamento com a MUD e a maioria opositora na Assembleia Nacional.

 
Nessa conjuntura, se potencializa a lógica bélica da política construída em torno do modelo amigo-inimigo, fundamentada na dicotomia entre verdade ou equívoco absolutos. A dinâmica de poderes em eterno confronto, sustentada na concepção bélica da política, afeta a convivência, a abordagem da crise multidimensional que afeta não só o país de uma forma geral, como as possíveis soluções pacíficas, que deveriam ser conversadas num clima de dissenso democrático, segundo a socióloga Maryclen Stelling.
 
A questão é estabelecer os termos de uma coexistência a qual ninguém está acostumado, e como organizá-la nas circunstâncias atuais, nas quais não cabem as idealizações de aproximações consensuais. Se trata de uma convivência viável e realista, dentro do confronto permanente dos últimos anos, que se definirá quando se saiba qual dos setores ficará com a hegemonia. Não há espaços para governos de consenso amplo e menos ainda para uma agenda única.
 
A coexistência parece impossível enquanto a crise econômica persiste, e ainda mais se, paralelamente, a reticência governamental em realizar mudanças na macroeconomia, atua no cenário, enquanto a oposição publicita a decisão de investir contra Maduro como uma tarefa irrenunciável, anunciada como a grande missão dos primeiros seis meses do ano, uma iniciativa que dificilmente poderá ser concretizada pelos meios legais.
 
Aristóbulo Istúriz apontou que a guerra econômica se baseia no ataque à moeda – liderado pelo site Dolar Today –, que a distribuição de alimentos corre por conta de fatores privados, e que ambas, juntas com a queda abrupta do preço do petróleo, originada por fatores geopolíticos, buscam soterrar a economia das nações que advogam por sua soberania.
 
“Temos que dar um salto de um modelo econômico rentista a um modelo econômico produtivo. Temos problemas porque não possuímos divisas como outrora, e agora devemos recorrer à importação, e temos que nos unir, sozinhos não podemos, necessitamos de todos os setores”, indicou o vice-presidente. Entretanto, ele reconheceu que o governo nacional “não tem sido capaz” de acabar com problemas como as filas, o desabastecimento e a inflação.
 
Julio Escalona, histórico dirigente socialista venezuelano, analisa que a renda principal das atividades ligadas ao petróleo ainda termina nas mãos do capital transnacional, e esse incremento de renda provoca importações que destroem a produção interna, desvalorizam a moeda local (o bolívar), dolarizam a economia venezuelana, afetam a balança comercial, geram fuga de capitais, endividamento, inflação e outras consequências danosas. Um fetiche que causa o efeito de multiplicar os depósitos bancários no exterior, fortalecendo a dominação do capital, na medida em que somos mais dependentes do petróleo e dos empresários que negociam para seguir se apropriando dos dólares.
 
Embora o diálogo com o setor produtivo esteja caminhando, não há avanços numa mesa de diálogo político, quando a oposição não dá sinais de avançar nas propostas, ávida que está por uma saída de Maduro por vias inquestionavelmente legais (a ideia de um golpe continua dando voltas nas cabeças de não poucos, embora teriam que, para isso, contar com o apoio das Forças Armadas), salvaguardando a imagem da democracia burguesa: por meio de uma renúncia ou por um referendo revogatório, o que não parece ser tão fácil.


Da hegemonia à “crise humanitária”


Antonio Gramsci falava sobre as diferenças entre domínio – coercitivo – e hegemonia, de caráter cultural, ideológico, ético e espiritual. Mas enquanto o egoísmo for motor da sociedade e o povo mantenha o culto ao Estado, às formas de coerção estatal sejam dominantes, a hegemonia continuará sendo da burguesia, segundo o cientista político Leopoldo Puchi.
 
A crise avança e não encontra obstáculos. As soluções adquirem características de emergência, e dentro da democracia burguesa a máquina está totalmente travada.
 
Uma situação nada normal passa a ser considerada normal, a linguagem bélica passa a se naturalizar. A nova maioria na Assembleia Nacional desenha uma estratégia fundamentada no conflito permanente de poderes e o Parlamento se consolida, não mais como um espaço de diálogo, mas como o âmbito do embate, onde vence quem tem mais força para enfrentar o choque.
 
Essa mesma Assembleia rejeitou o decreto de emergência econômica do governo e aprovou declarar o país em “crise humanitária”. É a mesma coisa? Não, absolutamente. Não se trata de um problema semântico. Há um ano atrás, o general estadunidense John Kelly, chefe do Comando Sul, declarava que estava rezando diariamente “pelo povo venezuelano”, e garantia que os Estados Unidos só deveria intervir se fosse declarada uma “emergência humanitária”. Pelo menos, Kelly já não está no Comando Sul, mas outros o estavam ajudando em seu argumento para fundamentar a ingerência externa.
 
A ofensiva da oposição continua, liderada pelos meios de comunicação. O editorial do diário El Nacional, sob o título “¡Good Bye, Nicolás!”, é um típico chamado golpista. O anticastrista Fausto Masó, no mesmo diário, assegura que “o governo é ajudado pela inércia e pela falta de decisão dos seus adversários, que não são capazes de passar da unidade eleitoral do recente mês de dezembro a uma decisiva ação política. Isso chegará mais cedo ou mais tarde, e então entraremos numa nova etapa, se abrirão novas portas”.
 
Para quem e para que se abrirão essas portas?
 
Tradução: Victor Farinelli



Créditos da foto: EBC

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