Quem nasce na Síria é Levantino. Quem nasce no Levante é Sírio.

Recorte de mapa, cujo título Original em inglês é: Um mapa correto do mar Mediterrâneo, do estreito de Gibraltar ao Levante. R. W. Seale – Londres, 1746. https://www.raremaps.com

ORIENTE mídia - 03/02/2016

Resposta à postagem de Guga Chacra, publicada em seu blog em 28/01/2016 com o título “Por que a Síria precisa voltar a ser da Civilização Levantina como Líbano e Israel?”  http://internacional.estadao.com.br/blogs/gustavo-chacra/por-que-a-siria-precisa-voltar-a-ser-da-civilizacao-levantina-como-libano-e-israel/


Por Babel Hajjar

 A Síria não é apenas Levantina, mas é a própria tradução de Levante. Bilad Al Sham ou Grande Síria é uma região reconhecida com este nome desde antes do Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente, remanescente da queda do Império Romano do Ocidente), no ano 324 d.C, e incluia tudo, da Turquia à Palestina. De um ponto de vista anterior à colonização ocidental (elegantemente chamados “Sistemas de Mandato” britânico e francês), Líbano e Israel também eram Síria, e partilharam com todo o Levante os mesmos hábitos culturais: religiões, comidas, roupas, arquiteturas e mais.
Foi a geopolítica do século XX que fragmentou e redistribuiu as forças e terras no Levante, favorecendo o crescimento de nações com fidelidades ocidentais que minaram a ideia de que, por exemplo, um cidadão de Alepo pudesse fazer negócios em Damasco, passar férias em Baalbeck ou Beirute e visitar primos em Jericó ou Haifa ou Gaza. O “arabismo”, que Chacra crítica como um negócio estatal criado contra o Levante  – referindo-se aos partidos nacionalistas árabes que dominaram a política da Síria, Iraque e Egito entre as décadas de 1950 e 1960 – é uma parcela ínfima deste “sentimento levantino” de pertença que ainda hoje permeia a Grande Síria, calcado em parte em ideias pan arabistas, pan islâmicas e sua fusão com ideias socialistas.
Não concordo que a Síria de hoje tenha perdido, mesmo com a guerra estas características “civilizacionais” que Chacra admira em Beirute e Tel Aviv e que bem menos têm a ver com Riad, na Arábia Saudita. Podemos encontrar esta civilidade “levantina” ainda hoje, na riqueza multicultural e laica de Damasco, Alepo, Latáquia e tantas outras cidades sírias, que surgiu sem precisar da divisão em “capitanias” a que o poder no Líbano foi submetido – com resultados em geral ruins e de baixa tolerância entre diferentes grupos – nem do apartheid étnico-religioso que permitiu o desenvolvimento de cidades como Tel Aviv e outras, implantadas sobre o esqueleto mal ou nada enterrado da cultura Palestina –  sob vergonhosa aceitação da comunidade internacional.
O jornalista, em uma compreensão “mitológica” do termo, deveria ousar ir além – bem além – do senso comum de que se nutre. Afinal, após quase cinco anos de guerra suja contra o povo sírio, já tivemos tempo de perceber que “rebeldes” “sírios” são raros e nada moderados, e tem objetivos militares bem parecidos com os do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIL), ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIL), ou DAESh (a tradução de ISIS em árabe, onde Síria é Sham, na grafia fonética ocidental inglesa). 
Renda per Capita - Siria - 1999-2011
Ainda que haja no texto de Guga um espírito conciliador entre as coisas “da terrinha”, o “nosso” Levante que devemos cultivar, ele parece não perceber que usa “Levantino” quase como sinônimo de “ocidentalizado”. É como se ele dissesse que a Síria se atrasou em relação ao “progresso” de Beirute e Tel Aviv, por conta de seu (sic) “Estatismo”. Ignora, junto com a mídia internacional, o que ocorreu na Síria desde a posse de Bashar al Assad, a mudança da constituição, a realização de um pleito eleitoral supervisionado por cerca de 30 delegações internacionais, que o qualificaram como idôneo. Um dado do Word Factbook da CIA, com intuito de ajudar a desmistificar a “estatização” mencionada por Chacra: de 2000 a 2011 o PIB da Síria dobrou, sem FMI, sem dívida, como reeposta às aberturas econômicas e políticas realizadas por Bashar Al Assad, as mesmas aberturas que possivelmente permitiram aos jihadistas do ISIS e dos “rebeldes”  turcos, turcomenos, líbios, iraquianos, europeus e tantos outros apoiados pelos EUA e seus amigos do golfo  destruírem o país.

O Orientalismo que levou Huntington a propor uma teoria como o “choque de civilizações”, segundo ele algo de ocorrência inevitável entre o que ele considera “civilizações diferentes”, pretende ver o Levante como uma unidade cultural. Ao invés disso, e para provar uma teoria que não vê a humanidade como uma civilização única e com chances de um dia viver em paz, identifica não no Levante, mas no Islã, uma civilização com traços culturais similares que tem inveja e ódio do ocidente. A teoria do “choque” é bastante conveniente para um Ocidente que financia o radicalismo islâmico ARMADO desde ao menos a década de 1970, com os mujahideen afegãos lutando contra o governo pró URSS, e vem usando estes exércitos de lunáticos mercenários em seu favor para não cessar a dominação e divisão do Levante.
Não é de cidades ocidentalizadas que o Levante precisa e nem são elas que o caracteriza. O Levante precisa ser deixado em paz, com nações beligerantes, irresponsáveis e que se lixam para os chamados “Direitos Humanos”, como Israel, Turquia ou Arábia Saudita, sendo verdadeiramente desmascaradas, impedidas de agirem como bem entendem e sendo obrigadas a  promover reparações. E ai o Levante voltará a só ser o Levante, ao invés de viver sua existência em função do Ocidente.

Babel Hajjar
é bacharel em comunicação, jornalista e
mestrando em Mudança Social e Participação Política
pela EACH – USP

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