PML: Fernanda Torres no país do “eu acho”

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Por Paulo Moreira Leite - 27/02/2016

Sou um admirador incondicional de Fernanda Torres. Bato palmas para seu talento desde que ela estreou o inesquecível Marvada Carne, de André Klotzel. Continuo fazendo elogios a seu trabalho em Tapas e Beijos, seriado que me permitiu gargalhadas intensas e raras. Poderia dar outros exemplos mas não é preciso.

Escrevo para lembrar um episódio diferente. No prazo de 24 horas, a atriz-colunista-romancista Fernanda Torres esteve no centro de um debate em função de dois textos de sua autoria, no qual expressava dois pontos de vista opostos sobre o mesmo assunto. No primeiro, reunia um conjunto de afirmações reacionárias sobre a condição feminina. Recuperava preconceitos abomináveis embrulhados numa fraseologia irreverente e humilhava milhões de cidadãos -- homens e mulheres -- que travam um combate cotidiano, injusto e difícil, para garantir uma situação de igualdade entre os bípedes que formam sociedades humanas.

No segundo, atingida por uma reação histórica de indignação através da internet, Fernanda Torres escreveu um artigo onde se retrata e pede desculpas públicas pelo que disse. 

Se estivéssemos na década de 1930, seria possível enxergar no episódio um traço típico dos tribunais padronizados pela inquisição stalinista. Ali, a mesma pessoa -- em muitos casos, verdadeiros heróis nacionais -- subia a tribuna para repudiar, linha por linha, palavra por palavra, as ideias que haviam abraçado pela vida inteira.  

No Brasil de 2016, a retratação de Fernanda Torres foi expressão de outra coisa. Mostrou uma massa de brasileiros,   em particular brasileiras,  que não se cala nem admite zombarias que envolvem conquistas recentes que fazem parte de um tempo histórico conhecidos.

A origem do episódio encontra-se numa situação que todos conhecem muito bem – o caráter monopolizado da mídia grande, que abandonou uma de suas funções socialmente mais relevantes, de servir como tribuna de debates necessários, para construir uma indústria voltada para o pensamento único e a reprodução de seu próprio projeto de país. Neste processo, recruta porta-vozes do " eu acho", convocados a oferecer as migalhas possíveis a uma população ávida por conhecimento e opinião.

Estamos falando da formação de um projeto cultural excludente, calculado em detalhes e programado para impor uma derrota de envergadura às ideias que permitiram as mudanças em curso na última década e meia, conseguindo, apesar de falhas e limites, garantir o apoio da maioria da população em todas as eleições onde ela foi chamada a dizer o que pensa e que quer para o país.

Basta lembrar que no ano em que Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República pela primeira vez, o professor Luiz Felipe de Alecastro tinha uma coluna na VEJA. Enquanto isso, na Época, autores como Wanderley Guilherme dos Santos faziam contribuições regulares. (Umberto Eco também).

Trata-se, sim, de uma grande conspiração, articulada, com alvos definidos e noção de inimigo principal. Com graus variados de sutileza, passa pelo jornalismo e chega as novelas, aos programas de humor e o que mais você puder imaginar.  

Nesta situação, o confronto de ideias utiliza os mesmos critérios utilizados pelo showbiz e as campanhas de marketing, recurso que lhe permite assumir as feições de um produto natural de nossa época e esconder o artificialismo que explica sua condição e seu monopólio. O conteúdo é controlado politicamente e a busca pela audiência é sempre relevante, o que explica a preferência absoluta por celebridades. Desse ponto de vista a cultura não deve repensar a vida nem o país, no hoje e muito menos na História. Deve garantir, por todos os meios, que continue como sempre esteve.

O objetivo não é dar lugar à crítica, ao questionamento e à independência intelectual, que desde a Grécia clássica se tornaram o ganha pão do pensamento mais legítimo.  Procura-se estimular o consenso e alimentar uma visão de mundo que, aos poucos, mostra-se incapaz de esconder traços abertamente autoritários.  

Desculpe um pouco de nostalgia e até repetição. Não há lugar para reações como o célebre Eu Acuso, de Emile Zola, que denunciou a fraude judicial perpetrada contra Albert Dreyfuss, levado a ferros na ilha do Diabo sem que houvesse um fiapo de provas de sua traição à pátria, e acabou forçado a fugir da França para não ser preso também.     

Em tempos de insegurança política e incertezas ideológicas, onde fatos vividos pela maioria desmentem argumentos que a minoria social tentar impor através de seus aparelhos, vigora, aqui, a lógica do mercado, mais do que nunca transformado em poder opressor sobre a sociedade. Também vale  a estratégia da confirmação social, onde pessoas famosas – produzidas pela TV -- se tornam mais famosas porque têm acesso a meios que permitem tornar-se mais famosas, numa reprodução ao infinito da lógica da alienação onde o prestígio social não é uma conquista, mas uma mercadoria.       

(Não sejamos injustos nem ressentidos. É possível apontar, neste elenco, um punhado de autores que surpreendem pela lucidez e coragem de enfrentar os impasses de tempos muito difíceis. Você sabe de quem estou falando. Sem dúvida, merece aplauso.)

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