Janio de Freitas: Corrida de táxi

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Janio de Freitas, na Folha de S.Paulo - 07/02/2016

Só na aparência a guerra opõe a insistência do Uber e a ferocidade dos taxistas. A guerra é outra. É entre o Uber e um dos poderes políticos mais efetivos e menos vistos pelo que são. Taxista, no Brasil, não é só um condutor de carro de aluguel. É também um integrante, talvez até inconsciente disso, de uma corporação profissional a que são concedidos privilégios materiais e permissão de abusos que nenhuma outra profissão tem.


A relação da Receita Federal e das Receitas locais com os taxistas donos do carro é de fazer inveja até aos especuladores financeiros com seu pequeno imposto de renda. Em vários Estados, os taxistas desfrutam de isenções plenas na compra do carro, e, nos demais, muito reduzidas. Os financiamentos, em geral, têm juros especiais. Na substituição periódica do carro por um novo, os privilégios se repetem. E, donos ou não, todos têm o mais invejado dos direitos: recebem e não precisam prestar contas à Receita, porque podem receber em transação sem registro, como no comércio clandestino.

Por que isso? Política.



Belo Horizonte iniciou o ataque físico aos motoristas do Uber, São Paulo capital aumentou-o, nessa violência o Rio está mais modesto, outras cidades seguem a palavra de ordem para a desordem covarde. Nenhuma providência respeitável de algum governador para impedir a progressão do vale-tudo. Nem mesmo de Geraldo Alckmin quando, em São Paulo, a ameaça já é de incêndio "a qualquer carro preto". Estudantes que interromperam o trânsito engrossado pelos táxis, no entanto, apanharam da polícia de Alckmin.

Que outra categoria profissional poderia decretar na marra que não aceita concorrência, confirmar na prática violenta a sua determinação –e isso nada significar para quem deve prover a segurança geral e garantir o que não é proibido?

Por que isso? Política.

A agressividade dos taxistas não é repentina. Seria assunto para a sociologia a condição irascível comum aos taxistas em tantos países ocidentais. Em Paris, chegou a se tornar um problema que levou De Gaulle, então presidente, a impor dura campanha para domar os taxistas. Dobrou-os, até hoje. Em muitas cidades americanas, das quais Nova York, nesse tema não diferem muito, os taxistas são motivo de medo. Não sei onde o problema é mais acentuado no Brasil, mas as transgressões no trânsito atestam a elasticidade dos limites que os taxistas admitem. O que se deve, suponho, a dois fatores: são pouco multados, graças à tolerância dos guardas, também ela abusiva, e muitos taxistas são policiais com a costumeira onipotência da classe, razão também da agressividade fácil. Liberdades e proteção, portanto, de que só os taxistas desfrutam.

Táxis são um serviço muito caro no Brasil. Evidência que se agrava em razão dos benefícios, legais e ilegais, dados ao serviço. O alto preço explica parte da quantidade tão excessiva de táxis, por exemplo, no Rio, onde superaram os ônibus desregrados como fatores de agravamento do trânsito. Mas, em lugar algum, há sequer sinal de estudo e enfrentamento sério das várias faces problemáticas do serviço de táxis no Brasil. Agora necessitado de revisão também porque as empresas que sublocam carros e licenças (as "autonomias") não se enquadram nem nos pretextos de vários benefícios dados aos taxistas donos do seu carro. Não se enquadram, mas desfrutam.

Por que isso? Política.

Entre os políticos, vigora há décadas a convicção de que os taxistas são cabos eleitorais de grande eficiência, com a (também) privilegiada condição de falar a um ouvinte sem escapatória. E ainda colar propaganda dentro e nos vidros do carro. É muito pouco para tudo o que daí decorre. Mas os taxistas são considerados uma força política sem semelhante no conjunto das atividades urbanas.

Nada posso dizer do Uber, nem mesmo o do Rio, que ainda não usei. Apesar disso, minha dúvida inicial sobre a legitimidade do empreendimento foi dissipada. Pelos taxistas. A prepotência e a ferocidade de sua reação já os faria merecedores de uma boa lição. Mas, ainda por cima, tanta prepotência e tanta ferocidade, e tão imediatas, são indicativas de que um serviço concorrente pode oferecer algo melhor à sociedade. E mesmo forçar o serviço convencional a aprimorar-se, já que o poder público não lhe exige o que deve.

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