Instituições esfrangalhadas!

O impeachment de Dilma, a cassação do registro do PT, ou desmoralização e até prisão de Lula acabariam com o sistema político e a nossa frágil democracia.

Francisco Fonseca* - Carta Maior - 14/02/2016

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Em recente artigo publicado neste Portal, intitulado “O Brasil é um país democrático?”, questionei o papel das instituições democráticas – dos três poderes – quanto à crise política que estamos vivenciando desde o ano passado: critérios distintos e seletivos de averiguação de suspeitas e denúncias de corrupção; delações premiadas com todo tipo de pressão insconstitucional; vazamentos seletivos à imprensa; mídia sem responsabilidade e sem qualquer controle; instituições políticas profundamente politizadas e, mais ainda, partidarizadas; poder absurdo conferido a um juiz de primeira instância (Sérgio Moro); cultura política que descrê abertamente da democracia; golpismo ostensivo; tribunais superiores agindo de forma abertamente facciosa....a lista é longa.
 
Toda a construção democrática após o fim da ditadura militar ancorou-se no fortalecimento das instituições políticas. Instituições que significam, de acordo com a teoria política, perenidade, impessoalidade (isto é, não facciosimo), transparência, ação por meio de procedimentos universais e justos, indução de comportamentos, entre outras características cujo norte é a igualdade de conduta independentemente de qualquer atributo de quem quer que seja.
 
Pois bem, o pretenso “iluminismo peessedebista” já havia dado mostra, no Governo FHC, de que as instituições são (ou continuavam a ser) modeláveis às elites econômicas e políticas: mudança da regra do jogo por meio de “mensalões” (caso da emenda da reeleição, que alterou a regra do jogo com este em andamento, o que é  “golpe branco”, sendo que sequer há processo aberto); processo de privatização de empresas estatais marcado por profunda opacidade, cujas investigações foram devidamente arquivadas; criação de agências de regulação após o processo de privatização e sem poder efetivo, com posterior cooptação dessas agências pelo grande capital; prática da “engavetação geral”, simbolizada por Geraldo Brindeiro, mas extensiva a todas as instituições federais, com apoio vigoroso da grande mídia, como se sabe; “rolo compressor” no Congresso Nacional; aparato jurídico/policial/midiático (leia-se “Mensalão” e “Operação LavaJato” nos, e contra os, Governos Lula e Dilma) voltado à seletividade de apurações, denúncias, vazamentos e condenações, em contraste ao que ocorreu no Governo FHC e ao que ocorre em alguns estados da federação, caso notório do estado de São Paulo, cujo poder de cooptação do PSDB é sistêmico.
 
Não se está, com essa análise, aceitando o modus operandi do sistema político brasileiro, marcado essencialmente pela “privatização da vida pública” – como temos apontados em inúmeros artigos neste portal –, que o PT nada fez para alterar e, mais ainda, “jogou o jogo” com desenvoltura, tal como o PSDB sempre o fez, porém sem a habilidade e profissionalismo deste.

Em outras palavras, as instituições – que, reitere-se, existem para dar legalidade, legitimidade e condução aos indivíduos e grupos – têm atuado no Brasil de acordo com as circunstâncias e as correlações de poder, mas com viés claramente elitista. Não se comportam, portanto, como instituições de Estado, em boa medida imunes ao jogo partidário e eleitoral. Não se está, igualmente, postulando “neutralidade” no sentido ingênuo deste termo, isto é, como algo independente de contextos econômicos, políticos, sociais e internacionais – o famoso “insulamento tecno-burocrático” como um tipo ideal puro. Há um abismo entre instituições de Estado, que zelam pela legalidade, transparência e ações baseadas em procedimentos, e facciosismo institucional. No Brasil contemporâneo essa segunda acepção – mesmo com inúmeras resistências e denúncias – tem dado o tom institucional de nossa frágil democracia.
 
O jornal “O Estado de S.Paulo”, periódico elitista, golpista e reacionário de longa data, publicou em 13/12/1968, como se sabe, o famoso editorial “Instituições em Frangalhos”, horas antes da edição do famigerado AI-5. Pois bem, embora os contextos sejam radicalmente distintos, não deixa de ser interessante olhar em perspectiva a construção institucional brasileira. Num certo sentido, mais propriamente simbólico, há fios condutores entre esses dois momentos, isto é, a fragilidade institucional brasileira.
 
Afinal, quando se imaginava que as instituições políticas de Estado caminhavam para a consolidação democrática, nos sentidos acima aludidos, e que o Estado de Bem-Estar Social pudesse de ampliar e mesmo se consolidar, largos retrocessos se interpõem. É claro que há contradições e resistências em todas elas, notadamente o STF, mas o vetor tem sido o desrespeito à Constituição, ao Direito Penal e à Democracia. Afinal, o ainda possível impeachment da presidente Dilma, a também possível cassação do registro do PT, o cerco persecutório a Lula, o achincalhe fascista ao PT, aos direitos sociais e trabalhistas e à esquerda – entre tantos outros exemplos de autoritarismo – demonstram que nossas instituições estão fortemente vulneráveis ao jogo do poder e às circunstâncias políticas.
 
A ciência política e a teoria política precisam repensar a questão das instituições à luz do “esfrangalhamento” institucional brasileiro. Afinal, a ênfase do que chamei de “epifenômeno das superestruturas”, marcante na ciência política brasileira contemporânea, parece ter se esgotado, o que poderá implicar o retorno à tradição da sociologia política no sentido de articulação entre elementos infraestruturais e o sistema político.
 
Eventual impeachment da presidente Dilma, cassação do registro do PT, desmoralização e até prisão do ex-presidente Lula, e desmontagem do inacabado Estado de Bem-Estar Social brasileiro levará, de roldão, o sistema político e a (frágil) democracia brasileira. Poderosos interesses econômicos estão por trás desse processo, a começar dos apoiadores da lei das terceirizações, da criminalização de movimentos sociais, da redução da maioridade penal, da privatização da Petrobras, do “entreguismo” do pré-sal, da “agenda Renan” e da “ponte para o abismo” do PMDB, do universo fantasioso da meritocracia dos Skafs, Dórias e Cherques, entre outros.
 
Golpistas, como em 1964, que se vangloriaram da deposição de João Goulart foram tragados – caso do jornal “O Estado de S. Paulo” e tantos outros – por aquilo que ajudaram a depor. Caso ocorra algo semelhante no Brasil contemporâneo, não será diferente, com a diferença de que as consequências são muito mais imprevisíveis hoje do que o foram àquela época.
 
Como muito bem aponta Luis Nassif:
 
“Mas em que pese a respeitabilidade de muitos de seus membros [do Ministério Público Federal), não logrou impedir a ação aventureira de jovens procuradores, a partir do momento que a Lava Jato ganhou protagonismo político e que a cúpula do MPF passou a aceitar passivamente a parceria procuradores-mídia.
 
As prerrogativas dos procuradores acabaram sendo utilizadas para ingressarem de cabeça no jogo político.
 
Trata-se de questão delicada para a própria independência futura do Ministério Público. Não é possível a qualquer democracia conviver com tal nível de interferência política, de facciosismo, que vai muito além da apuração da corrupção”.


Ainda há tempo para não apenas barrar os desígnios do golpismo como para construir nova hegemonia democrática e à esquerda, mesmo que no médio prazo. Mas isso requererá a construção de um projeto político que enfrente, reformando-os, a lógica privatizante do sistema político, o facciosismo das instituições, a mídia oligárquica e oligopólica, o capital rentista, o agronegócio, o sistema tributário, o empresariado antissocial, o neoliberalismo, entre outros, e toda sorte de interesses privados que aprisionam o Estado para poucos em detrimento da grande parte dos brasileiros.
 
São muitas tarefas que não permitem tréguas!
 
 
*Prof. de ciência política da FGV/Eaesp e PUC/SP




Créditos da foto: EBC

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