Henrique Beirangê: O merendão se aproxima do primeiro escalão de Alckmin
Mais integrantes de gabinetes próximos ao do governador de São Paulo são citados no esquema de desvios da alimentação escolar
por Henrique Beirangê — na Carta Capital - publicado 12/02/2016 15h33
Marcelo Camargo/ABr e Marcello Casal Jr/Abr
Voorwald e Jardim (à direita) se unvem a Aparecido e Nogueira. O escândalo se aproxima de Alckmin
Em 2009, lei aprovada pelo governo federal estabelecia que 30% dos recursos encaminhados aos estados e aos municípios para merenda escolar deveriam ser adquiridos diretamente da agricultura familiar, priorizando os assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas.
O objetivo claro do artigo 14 da Lei nº 11.947/09 era fazer com que os quase 3,6 bilhões de reais repassados anualmente, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, oferecessem merenda saudável aos alunos da rede pública e ao mesmo tempo investissem no pequeno agricultor.
Para facilitar a aquisição dos produtos, determinou-se não ser necessária a licitação e que as compras se fizessem conforme uma modalidade conhecida como chamamento público. O estado ou a prefeitura encarregada de realizar o contrato poderia analisar os preços de diversas cooperativas de agricultores e adquirir pelo menor. No mundo ideal, a legislação aceleraria o processo e ampliaria os negócios entre a administração pública e as cooperativas familiares.
No submundo da política em São Paulo, outro é o sistema. Lobistas, políticos, secretários de estado e até quem deveria zelar pelos interesses dos agricultores, os dirigentes de cooperativas, tornaram-no uma seara de corrupção e desvios de dinheiro.
Com uso de documentos falsos, fraudes em licitações, informações privilegiadas, a quadrilha fez o que bem entendeu com ajuda dos últimos escalões do governo paulista.
Detalhe: os pequenos agricultores não ganhavam com o esquema. Os representantes da cooperativa Coaf, sediada em Bebedouro, no interior de São Paulo, compravam o suco de laranja no mercado aberto e superfaturavam nos contratos com a administração pública.
CartaCapital teve acesso a novos documentos da investigação e a todas as interceptações telefônicas para averiguar que a teia de relações dos investigados com políticos ligados ao governo do estado e à cúpula do PMDB é maior do que se poderia imaginar.
As escutas mostram inclusive que a investigação teria vazado de dentro da área de inteligência da Polícia Civil e da Segurança Pública do governo, alertando os envolvidos da existência dos grampos.
Os nomes de secretários de Alckmin citados nas investigações aumentaram desde que a Operação Alba Branca foi deflagrada no fim do ano passado. Até aquele momento, já haviam sido citados Edson Aparecido, chefe da Casa Civil, e Duarte Nogueira, secretário de Logística e Transportes. Agora, verifica-se que a lista de investigados inclui também o ex-secretário de Educação Herman Voorwald e o atual secretário de Agricultura, Arnaldo Jardim.
Nas interceptações, os merendeiros afirmam que um membro do PMDB, de nome “Michel”, teria relações próximas com um integrante da executiva estadual do partido e poderia ajudar a abrir novas portas para a cooperativa em outras localidades.
De acordo com o depoimento dos investigados, para que a entidade levasse os contratos em São Paulo e nas prefeituras era necessário um comissionamento de 10% a 20% para agentes públicos.
Entre os beneficiados estariam também o tucano Fernando Capez, presidente da Assembleia Legislativa, Baleia Rossi (PMDB) e Nelson Marquezelli (PTB), ambos deputados federais, e Luiz Carlos Gondim (SD), deputado estadual. Todos já negaram as acusações.
Para entender o funcionamento dessa rede de relações, é preciso citar um personagem-chave. Quem fazia a intermediação dos contratos com o estado e com a camarilha política era Marcel Ferreira Júlio, filho do ex-deputado Leonel Júlio, cassado em 1976 por envolvimento no “escândalo das calcinhas”. O parlamentar perdeu o mandato por comprar roupas íntimas femininas com dinheiro público.
Dentro do governo estadual, o principal contato de Ferreira Júlio era “Moita”, chefe de gabinete de Edson Aparecido até um dia antes da deflagração da operação. Ficava a cargo dele a avaliação dos contratos e seu andamento na máquina paulista.
Em uma das ligações interceptadas, Ferreira Júlio conversa com “Moita” sobre a demissão do secretário de Educação, em 4 de dezembro do ano passado, durante o protesto e ocupação das escolas contra o fechamento de unidades de ensino em São Paulo.
Moita manifesta preocupação a respeito de um aditivo no contrato de fornecimento de suco de laranja às escolas. O chefe de gabinete sugere a Ferreira Júlio protocolar a documentação com rapidez porque a notícia da demissão já está na internet. Segundo Moita, seria Voorwald quem “estaria à frente”, e com sua demissão seria necessário correr com a tramitação da papelada.
“Então, ele é o cara que tava na frente com isso, eu nem sei se continua, então protocola logo”, afirma Moita. Em outra ligação entre o lobista e César Augusto Bertholino, um funcionário da cooperativa, eles também conversam sobre a saída de Voorwald.
Marcel diz que está dentro do Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do governador. “Tudo, eu tô no Palácio. O Herman caiu, secretário tá. O Geraldo mandou ele embora. Por isso ele me chamou aqui, tá indicando outro. O nosso amigo aqui tá por enquanto lá.” A investigação aponta que o “nosso amigo” seria Fernando Padula, então chefe de gabinete.
As tramoias envolvendo o roubo da merenda não eram o único objetivo da quadrilha. A Secretaria de Agricultura era de livre trânsito de Ferreira Júlio. Os investigados manifestavam interesse em passar a vender suco também para o sistema de cestas básicas distribuídas pelo estado a famílias carentes.
Em outro diálogo entre o lobista e Bertholino, Marcel fala de “estarem com o secretário de Agricultura”, Arnaldo Jardim, para colocar suco da cooperativa na cesta básica. “Dois milhões de cestas por mês, já pensou?”
As escutas mostram que Marcel tinha trânsito na pasta. Em uma das gravações diz que está chegando à secretaria para falar com “Douglas”, nome desconhecido dos investigadores. No dia 21 de dezembro de 2015, os dois falam de uma discussão dentro da secretaria. Ferreira Júlio diz que foi chamado lá e vai levar “fumo de todo lado para ficar quieto”.
A rede de relações entre tucanos e peemedebistas, sem excluir integrantes de outros partidos, também tem destaque nas investigações. O lobista e outro funcionário da cooperativa agora conversam a respeito de um integrante da executiva do PMDB de nome Alex, encarregado de “abrir novas portas” em outros municípios. Marcel diz que Alex é muito ligado a “Michel” e vai “abrir muita coisa pra nós”.
Durante um evento na Secretaria de Desenvolvimento, Ferreira Júlio fala de um encontro com “Baleia”, segundo as investigações, o deputado federal Baleia Rossi (PMDB), presidente estadual da legenda. Também estaria presente o integrante da executiva do partido, Alex.
No diálogo com Bertholino, eles afirmam que “Michel” não estava no local, mas a filha dele, “que é secretária” estaria. O vice-presidente Michel Temer é pai de Luciana Temer, secretária de Assistência Social da prefeitura de São Paulo. Investigadores esclarecem não ser possível saber se o “Michel” citado nos diálogos é o vice-presidente da República, admitem, no entanto, que novas apurações precisam ser realizadas.
A proximidade de Ferreira Júlio e de integrantes da cooperativa Coaf com autoridades de São Paulo revela que as investigações foram vazadas para os merendeiros. O inquérito revela que Cássio Chebabi, ex-presidente da cooperativa, teria sido alertado pelo deputado federal Baleia Rossi de que haveria uma investigação em andamento contra ele.
Os investigadores relatam que Chebabi foi o único não grampeado em razão do vazamento da informação. Em um dos depoimentos, um ex-funcionário da Coaf afirma ter ouvido de Chebabi que Baleia Rossi levou propina de contratos em Ribeirão Preto e Campinas.
A aproximação dos merendeiros dentro dos órgãos de investigação ia além. Em um dos grampos, Ferreira Júlio diz que eles têm “relações na Polícia” enquanto, segundo Bertholino, o lobista tem contatos na Segurança.
“Ele consegue levantá tudo. Da onde é, o que é da inteligência. É o do secretário de como é que fala? Do estado né, da segurança, da inteligência.” Um funcionário da Coaf responde: “Ah não, então beleza. Então a gente vai saber o que tá acontecendo”.
A assessoria de imprensa da Vice-Presidência informou que “Michel Temer não permite a utilização de seu nome para fins ilícitos. O único ‘Alex’ conhecido pelo vice é integrante da Executiva do PMDB da capital, com quem tem apenas relação política formal, sem nenhuma proximidade ou intimidade”.
Uma nota do deputado Baleia Rossi sustenta: “Repudio com veemência o conteúdo dos depoimentos que citaram meu nome, inclusive são pessoas com quem não tenho qualquer relação. As afirmações contidas são inteiramente falsas, absurdas e sem qualquer fundamento. Tão fantasiosas que até o denunciante afirma que não houve entrega de nenhum recurso”.
A Secretaria de Agricultura disse que Arnaldo Jardim “não tem relação com o lobista Ferreira Júlio e que não foi identificado nenhum funcionário da pasta que tenha responsabilidade neste setor ou proximidade com o gabinete de nome Douglas”. O PSDB de São Paulo e a Secretaria de Educação informaram que não tinham os contatos do ex-secretário Herman Voorwald.
Com relação ao andamento dos inquéritos, como os políticos têm prerrogativa de foro, a investigação foi desmembrada para a Procuradoria-Geral de Justiça e da República. Resta saber até onde os órgãos estão interessados em devassar o labirinto do Merendão paulista.
*Reportagem publicada originalmente na edição 888 de CartaCapital, com o título "O merendão azeda"
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