PML: Novo mistério no labirinto de Delcídio
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Na coluna Painel de hoje, Natuza Nery noticia um dos segredos de polichinelo da Lava Jato: a suspeita de que o senador Delcídio Amaral (PT-MS) teria sido vítima de uma armação para ser colocado na cadeia, onde se encontra em regime de prisão provisória desde novembro passado.
Conforme a versão oficial, Delcídio Amaral foi flagrado numa conversa gravada com o ator Bernardo Cerveró, filho do ex-diretor da Petrobrás Nestor Cerveró, preso na Lava Jato, onde se oferecia para realizar três serviços:
a) ajudar Nestor Cerveró a obter um habeas corpus junto ao Supremo Tribunal Federal para que fosse retirado da prisão;
b) auxiliar na montagem de um esquema de fuga para a Espanha, a bordo de um jatinho Falcon;
c) garantir uma mesada de R$ 50 000 reais à família, a ser paga pelo banqueiro André Esteves, do BTG, preso na mesma ocasião que Delcídio.
A outra versão é que o filho de Cerveró atuou em combinação com agentes envolvidos na investigação numa operação destinada a reunir provas contra um senador, numa ação ilícita, destinada a facilitar uma redução de pena de seu pai, naquele momento desfalcado de elementos capazes de despertar o interesse do Ministério Público para fazer um acordo de delação premiada.
Quando se recorda que outro personagem apontado como cúmplice da mesma operação – o banqueiro André Esteves, que iria pagar a conta – foi libertado depois de passar 15 dias no presídio de Bangu, sem que tenha sobrado nenhuma denúncia contra ele, parece claro que há mais mistérios neste episódio do que era possível supor pelas manchetes dos primeiros dias.
Preso há mais de dois meses, Delcídio nunca teve a oportunidade de defender-se perante seus pares, em audiência no Congresso, como seria o direito natural para um político em situação semelhante.
Como muitas vezes acontece, num primeiro momento a existência de uma gravação foi encarada pelos jornalistas como uma prova definitiva contra o acusado.
Temerosos de serem apontados como coniventes com um caso de corrupção, muitos senadores não quiseram assumir uma postura de desconfiança em relação à denúncia, que chegou à Casa com o aval do Supremo Tribunal Federal.
No dia em que o Senado confirmou a prisão, o presidente do PT, Rui Falcão, divulgou nota no mesmo sentido, anunciando que o próprio partido não iria prestar “solidariedade” a Delcídio. A postura do presidente da legenda reflete a antipatia profunda de uma parcela de militantes e dirigentes do PT com o histórico político do senador, um antigo político do PSDB que, já portando carteirinha de petista, presidiu a CPI dos Correios, que funcionou como a primeira sessão de fuzilamento do partido na AP 470.
Falando sob reserva, um dirigente do partido que cumpriu pena de prisão disse ao 247 que Delcídio “chegou a fazer campanha eleitoral dizendo que havia comandado a CPI que colocou os mensaleiros na cadeia.”
A soma de tantos fatores ajudou a criar uma situação estranha, já que os senadores não deram a Delcídio o direito de defender-se.
O caso torna-se mais problemático quando se admite a possibilidade de que a principal prova contra Delcídio tenha sido um diálogo forjado por uma das partes, quem sabe instruída para obter frases comprometedoras durante uma conversa.
O primeiro ponto delicado desta hipótese é político. Em função da imunidade parlamentar, garantia fundamental prevista na Constituição, um senador não pode ser investigado sem autorização prévia do Supremo Tribunal Federal. Só a partir daí é que Delcídio poderia ter suas conversas interceptadas.
A importância de se respeitar a imunidade parlamentar é um fato estabelecido com tanta clareza pela legislação que o próprio juiz Sergio Moro, ao ouvir acusados capazes de lançar suspeitas contra parlamentares e demais autoridades com prerrogativa de foro, determinava aos interrogados que não fizessem referência a nomes e cargos, numa tentativa de evitar que o processo fosse conduzido a instancias mais altas do Judiciário.
O caso do deputado André Vargas (PT-PR) é particularmente significativo. Quando surgiram as primeiras denúncias contra ele, Moro assinou um despacho no qual assegurava não haver nenhuma demonstração de negócios ilícitos em suas relações com o doleiro-delator Alberto Yousseff.
Caso fosse afirmado o contrário, o caso poderia ter ido parar no Supremo, em função da imunidade parlamentar. E assim como aconteceu na AP 470, o STF poderia trazer o inquérito para si.
O deputado, hoje condenado e preso em Curitiba, teve uma morte anunciada. Afastou-se do PT, não disputou a reeleição em 2014 e, quando se encontrava sem mandato, foi julgado e sentenciado.
Caso se demonstre que a versão de armação contra Delcídio é verdadeira, sua defesa poderá alegar que o senador foi vítima de uma ação ilegal, apontando para uma falha processual capaz de obrigar que os atos decorrentes, inclusive sua prisão, sejam anulados, o que pode representar uma virada nada desprezível no destino de um dos troféus políticos da Lava Jato. Não custa lembrar que Delcídio não só era líder do Partido no Senado, mas também interlocutor frequente de Lula e Dilma.
Se de fato houve uma armação contra ele, será preciso refazer a interpretação corrente dos diálogos. As mesmas palavras, interrogações e afirmações podem mudar de significado, pois um dos interlocutores não conversava com Delcídio – mas com a Polícia Federal e o Ministério Público.
Na versão oficial, Delcídio aparece como o senador que oferece serviços ilegais, pelo receio de que Nestor Cerveró pudesse comprometer sua carreira e mesmo o governo com uma delação premiada. Neste universo, Bernardo Cerveró encontra-se na posição de um filho zeloso, mas vitimado por um senador sem escrúpulos, mancomunado com o advogado do pai prisioneiro para enganá-lo, com ajuda do banqueiro que depois sumiu da história por falta de provas.
Pela outra versão, o senador teria sido estimulado por Bernardo Cerveró, que é ator profissional, a responder como podia às inseguranças e aflições de familiares de um executivo com o qual manteve relações próximas – próximas demais, dizem seus adversários -, que acompanhou de perto várias operações da Petrobras colocadas sob suspeita, muitas delas, acredita-se, com sua participação.
Neste caso, em vez de sugerir ações criminosas, Delcídio estaria respondendo a sugestões e planos colocados por Bernardo Cerveró. Estaria na posição de quem imaginava conversar com o filho de um amigo mantido por dez meses atrás das grades – as duas famílias se aproximaram no tempo em que o senador era diretor da Petrobras e Cerveró seu subordinado --, com os bens bloqueados, e, ao menos em teoria, com muitas cartas na manga para mostrar em caso de necessidade.
Essa outra leitura permite uma outra interpretação da passagem mais comprometedora do diálogo -- quando Delcídio explica ao interlocutor que não terá dificuldade em conseguir um habeas corpus junto aos ministros do Supremo que poderiam ser chamados a deliberar sobre o caso. Conforme uma avaliação que jamais foi desmentida nos círculos ouvidos pelo 247 no Judiciário ou no Legislativo, este trecho foi o golpe de misericórdia contra Delcídio no STF, impedindo qualquer manifestação em contrário ao pedido de prisão formulado pelo relator Teori Zavaski, aprovado por unanimidade pela Segunda Turma de ministros que examinou o caso.
De uma forma ou de outra, os ministros mencionados sentiram-se no dever de fazer desmentidos formais, num gesto considerado compreensível diante da gravidade da denúncia.
Procurando examinar a postura de um outro ângulo, o senador João Alberto, presidente da Comissão de Ética do Senado, que irá julgar Delcídio na volta do recesso, disse ao 247 que essa decisão pode ter o efeito contrário ao que se imaginou naquele momento. "A negativa é boa para a defesa," diz João Alberto. "Mostra que o Delcídio não estava falando a verdade quando sugeriu que poderia ter influência sobre o Supremo." A tese do senador aprisionado é esta: fez promessas destinadas a acalmar Bernardo Cerveró, sabendo que jamais seriam cumpridas.
A reação do STF em defesa de seus brios deixou um outro complicador, porém, escreveu o advogado Roberto Tardelli, procurador de Justiça aposentado após 30 anos, em São Paulo, onde se destacou pela atuação no caso de Suzane von Richthofen. Num artigo publicado logo após a prisão de Delcídio, Tardelli colocou uma questão maior: “os juízes, Ministros da Suprema Corte, que decretaram a prisão, estavam impedidos de fazê-lo pela singela razão de que foram vítimas das difamações provavelmente proferidas pelo Senador. Nessa situação bizarra, a vítima julgou e mandou prender seu agressor, o que representa ofensa ao mais palmar dos princípios de direito, a imparcialidade do juiz. Imagine o amigo se o dono do carro que você amassou na rua fosse a mesma pessoa que julgasse a indenização que ele mesmo propôs; imagine se o juiz que julgasse a guarda dos filhos fosse também o pai em litígio... foi o que ocorreu: os Ministros, que se sentiram gravemente ofendidos julgaram o ofensor; resultado: cana; recuamos séculos e, obliquamente, tornamos privada a Justiça Pública.”
Tardelli diz ainda que “pior que seja o Senador, que ele seja julgado e eventualmente punido, com seus direitos assegurados, por mais odioso que ele seja, pior e mais odioso é jogar tudo para cima, relativizando garantias constitucionalmente asseguradas, é começar a destruir o que já temos de tão pouco: o Estado Democrático de Direito.”
A questão é essa. Não se discute a necessidade de apurar e investigar denúncias envolvendo a maior empresa brasileira. Não se pode, contudo, desrespeitar direitos e garantias fundamentais. Como lembra Lenio Streck, advogado, procurador aposentado, estudioso erudito do Direito brasileiro, quando isso acontece “a próxima vítima pode ser você.”
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