Obra de Hitler “Minha Luta” cai no domínio público, reedições preocupam Europa

Há 68 anos, fracassava o atentado contra Hitler
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Criado em 01/01/16  - Por Agência Lusa - na EBC


Berlim – A obra panfletária de Adolf Hitler “Mein Kampf” (Minha Luta) poderá a partir de sexta-feira ser livremente reeditada em todo o mundo, uma perspetiva que está a causar preocupação na Europa, 70 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Hoje, nos termos da legislação alemã, entram no domínio público os direitos de “A Minha Luta”, uma das mais controversas obras da história do Ocidente, o único livro escrito pelo ditador nazi, que o ditou ao seu fiel secretário, Rudolf Hess, em 1923, na prisão de Landsberg, na Baviera, enquanto cumpria uma pena de prisão de cinco anos por traição, após o golpe falhado de Munique.
Tornam-se, assim, propriedade de toda a humanidade, depois de detidos, desde 1945, pelo estado regional da Baviera, ao qual as forças de ocupação norte-americanas entregaram o controlo da principal editora nazi e que durante sete décadas recusou a republicação do manifesto antissemita, por respeito às vítimas dos nazis e para impedir qualquer incitamento ao ódio, embora a posse e a venda da obra não fossem penalizadas pela lei alemã, existindo mesmo exemplares em bibliotecas universitárias.
Em muitos países onde a obra que teoriza a ideologia nacional-socialista e o desejo de eliminação dos judeus já se encontrava disponível, o fim dos direitos de autor não alterará substancialmente a situação.
No Brasil e na Índia, por exemplo, o livro está já há muito tempo amplamente divulgado e, nos países árabes, “Mein Kampf” encontra-se facilmente, ao passo que na Turquia atingiu um novo recorde de popularidade: mais de 30.000 exemplares foram vendidos desde 2004.
Nos Estados Unidos, não é proibido, no Japão existe até uma versão “manga”, e foi igualmente publicado depois do fim do comunismo em alguns países da Europa de Leste.
Está ainda disponível na internet, nomeadamente em sites salafistas que utilizam, na maior parte dos casos, traduções piratas.
Todavia, a entrada da obra fundadora do Terceiro Reich no domínio público constitui, sobretudo na Europa, e particularmente na Alemanha, onde 12,4 milhões de exemplares foram vendidos até 1945, um momento altamente sensível.
“Com o fim dos direitos de autor, é muito grande o perigo de essa porcaria ser ainda mais disponibilizada no mercado”, disse o presidente da comunidade judaica da Alemanha, Josef Schuster, mostrando-se preocupado.
Segundo o responsável, “a obra de propaganda antissemita deveria continuar proibida”.
Iniciou-se um debate para saber se é apropriado reeditar a volumosa obra de 800 páginas, e os candidatos não estão propriamente a atropelar-se.
Tanto na Alemanha quanto em países que estiveram sob ocupação nazi, como a Áustria e a Holanda, continuará a partir de hoje proibida a publicação simples do texto integral, sob pena de acusação judicial por incitamento ao ódio racial.
Em contrapartida, serão agora possíveis na Alemanha reedições de versões comentadas e contextualizadas por historiadores, com objetivos pedagógicos, sete décadas após a derrota dos nazis.
O Instituto de História Contemporânea de Munique (IFZ) será o primeiro a optar por essa via, a 08 de janeiro, apesar do evidente desconforto das autoridades locais, que retiraram um projeto de subsídio.
Por 59 euros, esta edição crítica de 2.000 páginas em dois volumes, na qual investigadores estão a trabalhar desde 2009, colocará à disposição do público alemão a primeira reedição de sempre da obra panfletária do Führer.
A ideia é “desconstruir e contextualizar os escritos de Hitler: Como nasceram as suas teses? Quais eram os seus objetivos? E sobretudo: O que podemos nós contrapor, com os nossos conhecimentos de hoje, às inumeráveis afirmações, mentiras e declarações de intenções de Hitler?”, argumenta o instituto.
Para o jornalista Sven Felix Kellerhoff, autor de um livro sobre a história de “Mein Kampf”, a recusa das autoridades de permitir até agora a publicação desse manifesto do nacional-socialismo como Hitler o entendia contribuiu para fazer dele um mito.
A ministra da Educação alemã, Johanna Wanka, expressou o desejo de que o estudo da versão comentada de Munique seja integrado nos programas escolares “no âmbito da educação política” dos alunos – uma perspetiva que fez com que o presidente do maior sindicato de professores da Alemanha (VBE), Udo Beckmann, se insurgisse, classificando como “errada e completamente exagerada uma leitura obrigatória” do livro.
Por seu lado, Charlotte Knobloch, presidente da comunidade judaica de Munique e do norte da Baviera, advertiu que mesmo esta versão envolve alguns riscos, porque “contém o texto original”, e que “é do interesse de militantes da extrema-direita e islamitas propagarem tais ideias”.
Em França, cairá também um tabu: a editora Fayard tenciona publicar em 2016 uma versão anotada de “Mon Combat”, o título em francês, numa nova tradução.
“É um desastre”, de acordo com o presidente do Conselho Representativo das Instituições Judaicas (CRIF), Roger Cukierman, a quem preocupa que a obra possa tornar-se “um livro de cabeceira”.
Em Israel, a publicação da obra continua a ser proibida e tabu, e o fim dos direitos de autor não mudará nada.
Murray Greenfield, fundador da editora Gefen Publishing, especializada em História do Judaísmo, é categórico: “Nunca publicaria o livro, mesmo que me pagassem”.

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