'Estamos presenciando uma adulteração feroz da democracia na Argentina, diz jornalista
ENTREVISTA
Para Victor Hugo Morales, demitido da rádio onde trabalhou por 30 anos após posse de Macri, presidente traz de volta ao poder 'modelo que trabalha à revelia do povo'
por Bruno Cirillo publicado 30/01/2016 11:33, última modificação 30/01/2016 11:37
ARQUIVO PESSOAL/VICTOR HUGO MORALES
Opera Mundi – O jornalista e radialista Victor Hugo Morales foi demitido numa segunda-feira, 11 de janeiro, um mês após Mauricio Macri assumir a presidência da Argentina. Voz crítica do atual governo, que considera “o rosto do grupo Clarín”, Morales foi dispensado pela Rádio Continental, a terceira mais ouvida do país, pouco antes do início do seu programa matinal. Ele teve alguns minutos para se despedir da audiência que liderava, após 30 anos de trabalho. No dia seguinte, milhares de pessoas protestaram contra sua demissão, na Praça de Maio, no centro de Buenos Aires.
O locutor recebeu Opera Mundi em seu apartamento na avenida do Libertador, zona nobre da capital, localizado a duas quadras de onde vive Macri. Por coincidência, naquele dia (21 de janeiro), o vizinho presidencial estava em Davos, na Suíça, buscando potenciais investidores e uma aproximação com o premiê britânico, David Cameron, durante o Fórum Econômico Mundial. “Mais uma vez, a Argentina está do lado do Fundo Monetário Internacional”, lamentou Morales. “O país está recuperando a proteção do FMI e sua credibilidade com a bancada internacional, em uma nova relação com o poder financeiro. Ao mesmo tempo, aqui, há uma falta de respeito brutal com os valores da república e da democracia.”
Para criar um ambiente propício a investimentos estrangeiros, Macri está se valendo de velhas receitas neoliberais: redução das taxas para a exportação de produtos agropecuários; fim da restrição à compra de moeda estrangeira (o que já derrubou o peso argentino ante o dólar); abertura para as importações, que eram restritas até então; e a retirada dos limites para grandes operações de crédito e para a entrada de capital especulativo no país.
No entanto, a população está presenciando o que Morales considera “um panorama político bastante pobre”, com a demissão em massa de funcionários públicos; a prisão arbitrária da líder política Milagro Sala; repressões violentas a protestos (o que não acontecia no governo anterior); a nomeação de dois magistrados para a Corte Suprema de Justiça, sem o aval do Legislativo; e o cerceamento da Lei dos Meios com a assinatura de cinco decretos presidenciais – no total, foram 260 canetadas do presidente somente no primeiro mês de sua gestão.
O que sucede, segundo o jornalista, “é um claro entorpecimento das funções do Estado, com 12 ou 14 empresas importantes designando suas funções, a partir de lobbies”. Sua principal crítica na área econômica vai contra a abertura comercial. Segundo ele, a ex-presidente Cristina Kirchner conseguiu manter estável o nível de emprego ao fortalecer do mercado interno, restringindo as importações – de fato, nas ruas de Buenos Aires, o desemprego não parece ser uma preocupação maior do que a inflação, que se mantém em 30% ao ano. “Abrir as portas para as importações vai ser completamente devastador para a economia argentina”, acredita Morales.
“Para os macristas, há uma recuperação da forma de desenvolvimento que eles conhecem, em que o impulsor é o FMI. Tudo o que está acontecendo com a Europa, na Espanha por exemplo, tem a ver com o FMI; o que já viveu a economia da América Latina (entre as décadas de 1980 e 1990) tem a ver com o FMI. É a reaparição de um modelo que trabalha à revelia do povo”, observa Morales, considerado “peronista” por uma colega da rádio onde trabalhava – o peronismo é uma corrente política da esquerda dos anos 1940 e 1950 à qual parte significativa da população argentina é fiel até hoje. “É a chegada da direita ao poder por via democrática, algo que nunca havia ocorrido na Argentina. A direita sempre teve que apelar para as ditaduras. Estamos presenciando uma adulteração feroz da democracia”, afirma.
Los rebenques
Sentado numa sala repleta de obras de arte e ao lado de uma pilha de jornais, Morales acusa o grupo Clarín, corporação das comunicações apontada por ele como a grande articuladora do governo atual, de ter se financiado em conivência com a ditadura militar argentina, que durou entre 1976 e 1983. Segundo ele, no período, a companhia dominou a produção de papel e se apropriou dos principais jornais do país, “derrubando por completo outras possibilidades de imprensa”. A inimizade de Morales com o conglomerado de mídia se acirrou em 1992, quando o Clarín passou a comprar e vender futebol.
“El rebenque. Sabes o que é el rebenque?”, questionou o jornalista, sem ser entendido. “El látigo, aquilo que os vaqueiros utilizam para golpear o cavalo”, reforçou, explicando com um gesto – referia-se a chicotes. “O Clarín se lançou com um chicote sobre o futebol: compravam o direito de transmissão barato e vendiam caro. Desse modo, compravam também os canais, e acabaram possuindo quase 300 canais.” Especializado na cobertura esportiva, sendo um conhecido narrador de jogos na Argentina, Morales trabalha como os grandes jornalistas dessa área: parte do gramado para esmiuçar o campo político e econômico do país. “Tenho uma velha confrontação com o Clarín porque, como jornalista esportivo, denunciava sua atuação no futebol.”
“Eu poderia fazer uma coleção de ataques diretos que o Clarín fez contra mim, para me triturar. Embora eu critique o kirchnerismo, eles conseguem fazer parecer que eu sou um kirchnerista boçal. Sua finalidade é me desautorizar”, diz. O periódico deu destaque a uma de suas declarações – do discurso que Morales fez na Praça de Maio após ser demitido da Rádio Continental – no título de uma matéria: “Devolvam-me o programa e esquecemos tudo”. Para o jornalista, a imprensa argentina, sob o oligopólio do Clarín, tende a favorecer Macri e ocultar notícias negativas a respeito do governo, como o número de servidores demitidos nas últimas semanas (mais de 25 mil, segundo estimativas), que não rendeu notícias nos dois maiores veículos (El Claríne La Nación). “Não existe nada mais mafioso e corrupto na Argentina do que o grupo Clarín”, acusa.
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