A farra brasileira dos juros, raízes históricas
Quando não há explicação racional para um fato econômico, nem comprovação por meio de estatísticas, resta o caminho da história e das instituições.
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Acabei de ouvir entrevista do Sr. Miguel José Ribeiro de Oliveira, executivo da ANEFAC [1], à CBN. Tentou ele responder à questão “porque os juros acabam de subir, no Brasil?” (entrevista concedida em 07.01.2016, por volta de 17hs).
Com bastante competência, o entrevistado demonstrou conhecimento da situação econômica internacional e doméstica. Elencou os muitos fatores que vem sendo destacados pela mídia: crise na bolsa de valores da China, dúvidas sobre o crescimento norte-americano e europeu, inflação e inadimplência dos devedores no Brasil, entre outros.
Lamentavelmente a entrevista não convence, tendo em vista os números apresentados. Como já se sabe, pela leitura dos textos do prof. Dowbor (UNICAMP) e outros, a maior taxa é aplicada aos cartões de crédito, no crédito rotativo, onde a média fica em torno de 400% ao ano. Mas, explicou o entrevistado, há casos em que esta taxa aproxima-se dos 800% anuais.
Explicar o quê ? Tanto na Economia, quanto na Contabilidade ou na teoria das Finanças, não há explicação plausível para uma taxa de juros entre 400% e 800%. Essa explicação não vem a público porque ela inexiste, é inviável, não há números, dados empíricos, que possam vir em seu apoio.
Quando não há explicação racional para um fato econômico, nem comprovação por meio de estatísticas, resta o caminho da história e das instituições. Por aí se encontram pistas da racionalidade oculta de tal medida, que trava absolutamente qualquer iniciativa empresarial de lançamento de negócios e de crescimento das atividades comerciais.
No caso da taxa de juros, o primeiro fato a recordar é que a Constituição de 1988 limitou os juros reais (descontada a inflação) a 12% ao ano. Dizia nossa Constituição Cidadã, no artigo 192, parágrafo terceiro:
-“As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”
No entanto, apesar da clareza do dispositivo constitucional, menos de uma década depois da entrada em vigor da Constituição de 1988, iniciativa de um economista que fora constituinte na década de 1980 veio propor a exclusão daquele dispositivo, abrindo o caminho institucional para a prática da usura em todos os negócios privados no Brasil. Assim, em 1997, às vésperas da reeleição do então presidente da República, Proposta de Emenda Constitucional N. 21/97 propôs a extinção dos parágrafos do artigo 192 juntamente com outras modificações relativas aos artigos 163 da CF e 52 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, “sobre a fiscalização das instituições financeiras, a estruturação e o funcionamento do sistema financeiro nacional e a participação de pessoas residentes e domiciliadas no exterior no capital das instituições financeiras nacionais. E a PEC original foi alterada (PEC 53/99) com o substitutivo do Senador Jefferson Péres com aprovação pelo Senado Federal ...”
Estava reintroduzida desta forma, bastante simples, a prática de usura no sistema financeiro nacional. Absolutamente desprovida de justificativa teórica ou empírica, o projeto 21/97 e as alterações posteriores transformaram-se na Emenda Constitucional 40/2003.
O debate permaneceu durante algum tempo. Em 2005, o mutuário de um empréstimo pessoal recorreu aos tribunais do RGS protestando contra taxa de juros de 11% ao mês (249,85% ao ano) cobrada pelo banco GE Capital sobre montante que envolvia seis prestações mensais inferiores a R$ 200,00. A juíza relatora considerou a taxa cobrada pela GE Capital abusiva e excessiva. Concluindo a disputa, a 2ª. Câmara Especial Civel do TJRS e limitou aquela taxa à média do mercado (70,55% ao ano), em setembro de 2007 [2].
Mas a decisão final coube ao STF por intermédio da Súmula 648 e de uma posterior, cujo proponente foi o juiz Gilmar Mendes. Tratou-se da Súmula Vinculante N. 7 de 11 de junho de 2008, que declarou perfeito o ato jurídico de mudança no artigo 192 da CF, tendo em vista que “sua aplicabilidade fora condicionada à edição de Lei Complementar”. Tão simples assim.
Há poucos anos, o deputado Vieira da Cunha (PDT-RS) tentou reintroduzir na Constituição o limite de 12% anuais nas taxas de juros praticadas pelo setor privado. Foi derrotado, sua proposta tendo sido arquivada em 2013.
À vista dessa reconstituição histórica, cabe manifestar surpresa, e até estranhamento, quanto ao silêncio de pessoas e entidades que se manifestam vigorosamente contra a taxa Selic de 4% ou 5% ao ano, em postura absolutamente justa e correta, mas se omitem, silenciam, mantêm total cumplicidade com a prática recorrente da usura que fere famílias e empresas brasileiras. Assim chegamos às absurdas taxas de 800% !!!
Em tempo: o projeto de Emenda Constitucional 21/97 foi apresentado pelo Senador José Serra [3]. Não fosse ele um cidadão acima de qualquer suspeita, haveria muito a ser questionado sobre as razões de tal iniciativa. Às vésperas da emenda reintroduzindo a reeleição de FHC. Entre 1997 e 2000 o Congresso foi presidido pelo Sr. Michel Temer, hoje Senador da República, sucedido pelo também Senador Aécio Neves.
______ Ceci Juruá, janeiro de 2016, Economista, doutora em políticas públicas pela UERJ, blog caleidoscópiobrasileiro no portal dos desenvolvimentistas-RJ.
[1] Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade
[2] OAB, seccional Maranhão
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