Robert Fisk: Um físico britânico desafiou o Talibã para educar jovens no Paquistão

'No colégio, temos jovens muçulmanos e cristãos que se dão bem. Quando se tem educação. é possível fazer com que esses jovens vejam que todos somos um só'

Robert Fisk * - na Carta Maior - 23/12/2015
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Imaginem o diretor inglês de um famoso colégio da fronteira, no noroeste do país, um centro construído por britânicos e financiado por cristãos. Injetem alguns quantos pesadelos – bombas dos talibãs, ataques suicidas, matanças diárias de civis e crianças, sangrentos ataques estadunidenses com drones nos arredores – e terão um quadro do que esse mestre teve que superar para continua com o seu trabalho, apesar de tudo, tentando instruir os muçulmanos e cristãos da sua classe nos fundamentos da história, da física e da economia. O nome que me vem à mente é o de David Lagourie Gosling.

 
Gosling foi um catedrático em Cambridge e físico nuclear, passou quatro anos na direção do Colégio Edwardes, em Peshawar, capital do que hoje é Khyber Pakhtunkhwa – talvez a cidade mais perigosa ao leste de Raqqa. O colégio foi fundado pela Sociedade Missionária Cristã, em 1900. Gosling recebeu uma ameaça de morte escrita, mas decididamente pouco eloquente, de um certo “Capitão Halifah”, que anunciava: “o diretor do Colégio Edwardes não é muçulmano. Deus diz que não se deve ter amizades com não muçulmanos. Muçulmanos, despertem! Sacudam os cimentos do chão dos que não creem e se levantem em nome do Islã”.
 
O “Capitão Halifah” acusou o diretor de fechar o colégio antes que os estudantes muçulmanos tivessem tempo de fazer suas orações. Era mentira. Contudo, se Gosling não obedecia, ameaçavam enviar um atacante suicida para a porta do colégio.
 
O mestre não cedeu, nem mesmo quando as janelas do colégio foram destroçadas por ataques suicidas nas proximidades, um dos quais foi realizado por uma jovem que só foi identificada quando a polícia encontrou sua cabeça.
 
Mais de um ano se passou desde que o emir do Talibã paquistanês, Fazle Hayat (mais conhecido como Fazlullah), atribuiu ao seu grupo a responsabilidade pelo massacre na escola do exército, em Peshawar, na qual um bando de homens armados entraram subitamente e abateram 143 estudantes e professores. Gosling já havia saído do Paquistão, mas, ao condenar essa atrocidade, ele se lembra de como Fazlullah também havia feito um chamado em nome da igualdade social, mais empregos e um sistema de justiça mais eficiente que o burocrático direito civil paquistanês.
 
Como Gosling conseguiu conviver com esses banhos de sangue quase cotidianos e continuar dedicado a administrar uma escola cuja razão de ser é a paz entre muçulmanos e cristãos? Eu lhe fiz esta pergunta depois de um ano de massacres nos arredores da sua escola, e muitos mais em todo o mundo muçulmano – muito mais que em nossa preciosa Europa, evidentemente. “Pelo legado histórico”, respondeu. “Até os líderes das igrejas locais são legados do Raj. No colégio, temos jovens muçulmanos e cristãos que se dão bem. É o poder da educação. Quando se tem educação em sua totalidade, é possível fazer com que esses jovens vejam o que deveria ser óbvio: todos somos um só”.
 
Gosling encontro o velho Mohamed, pai de Fazlullah, adepto do sufismo, numa visita à prisão, acompanhado por alguns dos seus estudantes, e descreve esse extraordinário encontro em seu novo livro, Frontier of Fear (Fronteira de Medo). Mas, como seu livro não explica porque jovens europeus com estudo resolveram se unir ao Estado Islâmico, me pareceu necessário submeter o pobre David Gosling a essa pergunta.
 
“Ah, talvez sejam inteligentes, mas estão furiosos”, replicou. “Este é um povo enfurecido, impulsionado por uma ideologia que é incompatível com a educação. Essas energias não possuem uma via capaz de canalizá-las de forma positiva, que é o que a educação permite fazer. Na educação cara a cara, você tem que se envolver com as pessoas”.
 
Gosling falou da hipocrisia, de como o mundo virtualmente guardou silêncio quando 2 mil palestinos foram massacrados em Gaza, mas se indignou quando “um punhado” de pessoas foram assassinadas numa praia da Tunísia.
 
Não estou certo de que seja justo. Entretanto, é difícil contradizer a moléstia de Gosling pelos ataques estadunidenses com drones e suas baixas civis, e os mísseis que foram disparados 20 minutos depois dos primeiros ataques com foguetes, para matar os membros da equipe de resgate. Em 2006, um ataque estadunidense com drones em Bajaur matou 85 estudantes paquistaneses, e despertou a fúria da população nessa província vizinha. Logo depois, foi cancelada uma visita programada do príncipe Charles e da duquesa de Cornwall ao Colégio Edwardes.
 
Os alvos dos ataques com drones são proporcionados por informantes, que talvez persigam vinganças pessoais contra as vítimas, ou sejam obrigados a trabalhar para os estadunidenses. Gosling recebeu um e-mail estremecedor de um ex-estudante do seu colégio, originário da região de Waziristán, que pedia conselhos depois de encontrar dos estadunidenses que lhe ofereciam muito dinheiro para ser modelo masculino. Gosling lhe aconselhou a recusar. Logo, chegou outra mensagem. “Não são de uma agência de modelos. Queriam me contratar para conseguir informação (espionar), de mim e de muitos outros em Waziristán…”. O resto da mensagem dava a entender que agora os dois estadunidenses o estavam ameaçando por se negar a cooperar. Gosling condena o que ele chama de “robotização da guerra”, opinião semelhante à do arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, que a considera “gravemente contraproducente”.
 
Porém, para que não se pense que o “inimigo solto” é pura inocência, trago aqui uma citação de um informe secreto sobre atacantes suicidas (enviado a Gosling em 2009), feito por um oficial da inteligência paquistanesa. “Depois do começo do conflito”, descreve ele, “algumas pessoas associadas ao suicida se meteram entre os que estavam reunidos, para enganá-los, para que o debate que surge ao redor não seja a favor dos que não gostam dos terroristas. Depois, tentam retirar a cabeça do suicida do lugar exato do incidente, e também qualquer outra pista que possa identificá-lo, fingindo estar aterrorizados pela tragédia. Então, desaparecem no meio da multidão”. Eu diria que Gosling tem sorte de estar vivo.


* Jornalista e escritor britânico, correspondente em Beirute, premiado várias vezes por seus trabalhos sobre o Oriente Médio. É um dos poucos jornalistas ocidentais que fala fluentemente o idioma árabe.
 
Tradução: Victor Farinelli



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