Você sabe quem decidirá o que é 'terrorismo' no Brasil?
Pelo projeto aprovado, quem decidirá será o mesmo PM que bate em professor e o promotor que classifica Simone de Beauvoir como uma 'baranga francesa'.
Najla Passos - Carta Maior - 12/11/2015
O professor relatou que, na época, a preocupação principal do GAFI era combater a lavagem de dinheiro do tráfico internacional, mas, depois do 11 de Setembro, o órgão passou a exercer pressão para que os países aprovassem as ditas leis antiterroristas nos moldes da norte-americana para que este suposto terrorismo fosse combatido em conjunto por todas as nações. A partir de 2006, prescreveu recomendações específicas para que as nações se adequassem ao modelo, sob pena até mesmo de serem expulsas do grupo. Entretanto, até hoje, apenas 36 países aderiram.
Nassar enfrenta a principal justificativa do órgão para a implementação dessa política: a de que “as democracias ocidentais estejam sob forte ataque de forças terroristas”. De acordo com ele, dados oficiais dos Estados Unidos e da Europa mostram 85% das 18,5 mil vítimas de atos terroristas ocorridos em 2014 estão concentradas em apenas cinco países, nenhum dele ocidental: Síria, Iraque, Paquistão, Nigéria e Afeganistão. Do total de mortos no ano passado, apenas 50 foram em solo norte-americano e oito na Europa.
Ele demonstra também que o número de países que classificaram crimes cometidos em seus territórios como atos terroristas aumentou exponencialmente. “No inicio da década passada, eram dez, doze, treze países por ano. Hoje, são mais de 60”, explica ele, para demonstrar como o enquadramento da prática pela ótica norte-americana se alastrou pelo mundo e, agora, chega ao Brasil, até então celebrado pela sociedade civil internacional como uma das potências a resistir ao modelo.
Conceito inviabilizado
Apesar do aumento na classificação de crimes de terrorismo pelos países, o professor alerta que não há consenso nem mesmo sobre a definição do que é a prática, problema jamais solucionado sequer pela ONU. Segundo Nasser, os conceitos mais usuais hoje colocam os estados como vítimas, o que impede que eles também possam ser criminalizados por cometê-la. “Se a gente olhar pra o nazismo e, depois, para o período da guerra fria, a palavra ‘terror’ não era alocada apenas na ação de grupos não estatais. Hoje, é o contrário”, esclarece.
Para ele, a dificuldade de conceituação do termo fica explicita no projeto aprovado pelo Senado brasileiro que, se passar a vigorar, delegará às autoridades policiais e judiciais o poder de definir, caso a caso, o que é e o que não é terrorismo. E, o que é ainda mais grave: ele acusa o projeto de extrapolar o intento de tipificar o terrorismo, interferindo em questões soberanas do Brasil.
“Se a gente olhar este projeto antiterrorismo, ele adquiriu uma autonomia tal que pouco se importa em responder ao terrorismo”, acusa ele, lembrando que o projeto transita da tipificação às finanças, passando pela política propriamente dita, porque regula até mesmo como deve ser a atuação da sociedade civil, além de restringir direitos individuais. “Mais do que um projeto de reação ao terrorismo, faz parte da grande estratégia norte-americana”, alertou.
Lei Antiterrorismo X Lei da Anistia
Ex-procurador-geral de São Paulo, Marcio Sotelo Felippe ironizou a preocupação do governo brasileiro em aprovar a lei antiterrorismo, com a desculpa de fazê-lo para atender a compromissos internacionais. Ele lembrou que, em 2010, o Brasil foi condenado a rever sua Lei da Anistia que permite que torturadores e assassinos da ditadura permaneçam impunes, e jamais tomou qualquer medida para solucionar o problema. “O Brasil não cumpre compromissos internacionais pelo dever moral de respeitar o que acordou, mas sim quando outros interesses falam mais alto”, criticou.
Para o ex-procurador, o inusitado interesse do governo e da direita brasileiros de aprovar o projeto se justifica não apenas pelas imposições dos organismos internacionais, mas se situa no quadro da ofensiva conservadora que se espalha no mundo. “A causa disso tem a ver com esses fatores que o Nasser colocou, da luta contra o terrorismo internacional, o 11 de setembro, etc. Mas há também um outro aspecto que é, no plano internacional, um movimento de direita antipopular e de repressão à movimentos políticos de reivindicações populares e democráticas”, sustenta.
Fellipe lembra que uma conduta, para ser tipificada como crime, tem que estar rigorosamente descrita na lei penal. E quando isso não ocorre, depara-se com os chamados ‘tipos penais abertos’, muito utilizados pelos estados autoritários, porque permitem interpretações diversas. Como exemplo, ele extraiu do texto aprovado pelo Senado brasileiro expressões de difícil conceituação prática, como “terror generalizado”, “extremismo político” e “perturbação da ordem pública”.
“Digamos que alguém jogue um rojão na porta do metrô e 40 pessoas saiam correndo de medo. Isso é terror generalizado? É possível sustentar isso? É. E quando alguém joga a bomba atômica em Hiroshima, é terror generalizado? Também é. São coisas completamente diferentes, mas que no quadro lógico da linguagem que se usa na redação das leis, permite que se trate como terrorismo a bomba atômica de Hiroshima e um rojão na porta do metrô”, exemplifica.
Para o procurador, a insegurança que este tipo de lei gera para a sociedade, em especial para os movimentos sociais, é que quem vai decidir o que é e o que não é terrorismo é a autoridade policial, o delegado, o promotor. “Quem vai decidir o que são essas coisas? Agentes policiais. A PM, o delegado, o promotor, Quem vai decidir isso é o promotor que acha que a Simone de Beauvoir é uma ‘baranga francesa’, porque ela não raspa as axilas”, ironiza ele, lembrando que, neste quadro de crescimento de posturas direitistas de viés autoritário, que muitas vezes ultrapassam o limite dos fascismo, é cada vez mais comum se encontrar autoridades policiais e judiciais com visão social míope.
Estado democrático X estado de exceção?
Professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano, sustenta que, em todo o século XX, os governos autoritários ocorreram fora do marco da democracia, caso do nazismo e das ditaduras latino-americanas. Entretanto, ele alega que hoje isso mudou e os estados autoritários coexistem dentro dos próprios estados democráticos, sendo que as leis antiterrorismos são a ferramenta mais utilizadas para implementá-los.
“A forma como as ditaduras do mundo ocidental se realizaram no século 20 foi sempre a partir dessa narrativa de se combater o inimigo, sempre por períodos provisórios. A ditadura brasileira foi instaurada para durar 4, 5 anos. Ou seja, era sempre a narrativa da exceção, o tempo da emergência, para se estabelecer a segurança como valor social essencial para a sobrevivência das pessoas. No século 21, isso transmuta. O estado soberano absolutista passa a existir dentro da democracia. E não mais fora dela, como foi até o século 20. Os exemplos são as leis antiterroristas, a lei da mordaça espanhola”, explicou.
O professor alerta que, se as leis antiterrorismo já são uma ameaça à democracia nos países centrais, na América Latina elas adquirem um componente ainda mais violento, de forte caráter classista. Isso porque, no primeiro mundo, o inimigo apontado como terrorista é o estrangeiro, o muçulmano, o islâmico. Já na América Latina, esse inimigo é o “bandido”, entendido não como o cidadão que cometeu um erro, mas como uma categoria em si. E como o bandido é normalmente o pobre, aceita-se a coexistência de dois estados diferentes para que toda a pobreza possa ser domada pelo Estado.
“Na América Latina, temos efetivamente uma duplicidade. Temos dois estados. Um estado democrático que gere os territórios ocupados pelos seguimentos incluídos da população, marcadamente de euro-descendência, e um estado de exceção permanente, de natureza militar, que gere os territórios ocupados pela pobreza”, denuncia.
O professor lembra que nestes territórios ocupados pela pobreza os direitos individuais já estão permanentemente suspensos, a despeito da aprovação ou não de leis antiterroristas. De acordo com ele, isso ocorre porque, ao contrário do que ocorre nos países centrais, onde o agente de exceção é o ato legislativo, na América Latina o principal agente de exceção é o próprio judiciário. “Aqui foi criada uma cultura jurídica com forte influência do positivismo analítico, que outorga ao juiz quase um poder absoluto, que o permite até mesmo contrariar a lei. E é esse judiciário que vai aplicar essa lei que o Senado aprovou”, alerta.
A Lei Antiterrorismo aprovada pelo Senado foi o tema da terceira rodada de debates dos “Seminários para o Avanço Social”, promovido pelo Fórum 21, na Assembleia Legislativa de São Paulo, nesta quarta (11). Polêmico por permitir a criminalização dos movimentos sociais e suprimir direitos individuais, o projeto de lei foi aprovado por conta de uma aliança inusitada, firmada entre o governo federal, proponente da matéria, e às forças conservadoras, representada pelo senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), relator da matéria.
Professor de Política Internacional da PUC-SP, Reginaldo Nasser ressaltou que tão inusitada quanto a aliança, foi o fato do projeto ter sido gestado não pelo Ministério da Justiça, mas sim pelo da Fazenda, o órgão que controla a política econômica do país. Segundo ele, isso se deve ao fato de que as leis antiterroristas se tornaram uma exigência do GAFI, um órgão criado pelo G-7 em 1990 para combater a lavagem de dinheiro internacional.
Professor de Política Internacional da PUC-SP, Reginaldo Nasser ressaltou que tão inusitada quanto a aliança, foi o fato do projeto ter sido gestado não pelo Ministério da Justiça, mas sim pelo da Fazenda, o órgão que controla a política econômica do país. Segundo ele, isso se deve ao fato de que as leis antiterroristas se tornaram uma exigência do GAFI, um órgão criado pelo G-7 em 1990 para combater a lavagem de dinheiro internacional.
O professor relatou que, na época, a preocupação principal do GAFI era combater a lavagem de dinheiro do tráfico internacional, mas, depois do 11 de Setembro, o órgão passou a exercer pressão para que os países aprovassem as ditas leis antiterroristas nos moldes da norte-americana para que este suposto terrorismo fosse combatido em conjunto por todas as nações. A partir de 2006, prescreveu recomendações específicas para que as nações se adequassem ao modelo, sob pena até mesmo de serem expulsas do grupo. Entretanto, até hoje, apenas 36 países aderiram.
Nassar enfrenta a principal justificativa do órgão para a implementação dessa política: a de que “as democracias ocidentais estejam sob forte ataque de forças terroristas”. De acordo com ele, dados oficiais dos Estados Unidos e da Europa mostram 85% das 18,5 mil vítimas de atos terroristas ocorridos em 2014 estão concentradas em apenas cinco países, nenhum dele ocidental: Síria, Iraque, Paquistão, Nigéria e Afeganistão. Do total de mortos no ano passado, apenas 50 foram em solo norte-americano e oito na Europa.
Ele demonstra também que o número de países que classificaram crimes cometidos em seus territórios como atos terroristas aumentou exponencialmente. “No inicio da década passada, eram dez, doze, treze países por ano. Hoje, são mais de 60”, explica ele, para demonstrar como o enquadramento da prática pela ótica norte-americana se alastrou pelo mundo e, agora, chega ao Brasil, até então celebrado pela sociedade civil internacional como uma das potências a resistir ao modelo.
Conceito inviabilizado
Apesar do aumento na classificação de crimes de terrorismo pelos países, o professor alerta que não há consenso nem mesmo sobre a definição do que é a prática, problema jamais solucionado sequer pela ONU. Segundo Nasser, os conceitos mais usuais hoje colocam os estados como vítimas, o que impede que eles também possam ser criminalizados por cometê-la. “Se a gente olhar pra o nazismo e, depois, para o período da guerra fria, a palavra ‘terror’ não era alocada apenas na ação de grupos não estatais. Hoje, é o contrário”, esclarece.
Para ele, a dificuldade de conceituação do termo fica explicita no projeto aprovado pelo Senado brasileiro que, se passar a vigorar, delegará às autoridades policiais e judiciais o poder de definir, caso a caso, o que é e o que não é terrorismo. E, o que é ainda mais grave: ele acusa o projeto de extrapolar o intento de tipificar o terrorismo, interferindo em questões soberanas do Brasil.
“Se a gente olhar este projeto antiterrorismo, ele adquiriu uma autonomia tal que pouco se importa em responder ao terrorismo”, acusa ele, lembrando que o projeto transita da tipificação às finanças, passando pela política propriamente dita, porque regula até mesmo como deve ser a atuação da sociedade civil, além de restringir direitos individuais. “Mais do que um projeto de reação ao terrorismo, faz parte da grande estratégia norte-americana”, alertou.
Lei Antiterrorismo X Lei da Anistia
Ex-procurador-geral de São Paulo, Marcio Sotelo Felippe ironizou a preocupação do governo brasileiro em aprovar a lei antiterrorismo, com a desculpa de fazê-lo para atender a compromissos internacionais. Ele lembrou que, em 2010, o Brasil foi condenado a rever sua Lei da Anistia que permite que torturadores e assassinos da ditadura permaneçam impunes, e jamais tomou qualquer medida para solucionar o problema. “O Brasil não cumpre compromissos internacionais pelo dever moral de respeitar o que acordou, mas sim quando outros interesses falam mais alto”, criticou.
Para o ex-procurador, o inusitado interesse do governo e da direita brasileiros de aprovar o projeto se justifica não apenas pelas imposições dos organismos internacionais, mas se situa no quadro da ofensiva conservadora que se espalha no mundo. “A causa disso tem a ver com esses fatores que o Nasser colocou, da luta contra o terrorismo internacional, o 11 de setembro, etc. Mas há também um outro aspecto que é, no plano internacional, um movimento de direita antipopular e de repressão à movimentos políticos de reivindicações populares e democráticas”, sustenta.
Fellipe lembra que uma conduta, para ser tipificada como crime, tem que estar rigorosamente descrita na lei penal. E quando isso não ocorre, depara-se com os chamados ‘tipos penais abertos’, muito utilizados pelos estados autoritários, porque permitem interpretações diversas. Como exemplo, ele extraiu do texto aprovado pelo Senado brasileiro expressões de difícil conceituação prática, como “terror generalizado”, “extremismo político” e “perturbação da ordem pública”.
“Digamos que alguém jogue um rojão na porta do metrô e 40 pessoas saiam correndo de medo. Isso é terror generalizado? É possível sustentar isso? É. E quando alguém joga a bomba atômica em Hiroshima, é terror generalizado? Também é. São coisas completamente diferentes, mas que no quadro lógico da linguagem que se usa na redação das leis, permite que se trate como terrorismo a bomba atômica de Hiroshima e um rojão na porta do metrô”, exemplifica.
Para o procurador, a insegurança que este tipo de lei gera para a sociedade, em especial para os movimentos sociais, é que quem vai decidir o que é e o que não é terrorismo é a autoridade policial, o delegado, o promotor. “Quem vai decidir o que são essas coisas? Agentes policiais. A PM, o delegado, o promotor, Quem vai decidir isso é o promotor que acha que a Simone de Beauvoir é uma ‘baranga francesa’, porque ela não raspa as axilas”, ironiza ele, lembrando que, neste quadro de crescimento de posturas direitistas de viés autoritário, que muitas vezes ultrapassam o limite dos fascismo, é cada vez mais comum se encontrar autoridades policiais e judiciais com visão social míope.
Estado democrático X estado de exceção?
Professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano, sustenta que, em todo o século XX, os governos autoritários ocorreram fora do marco da democracia, caso do nazismo e das ditaduras latino-americanas. Entretanto, ele alega que hoje isso mudou e os estados autoritários coexistem dentro dos próprios estados democráticos, sendo que as leis antiterrorismos são a ferramenta mais utilizadas para implementá-los.
“A forma como as ditaduras do mundo ocidental se realizaram no século 20 foi sempre a partir dessa narrativa de se combater o inimigo, sempre por períodos provisórios. A ditadura brasileira foi instaurada para durar 4, 5 anos. Ou seja, era sempre a narrativa da exceção, o tempo da emergência, para se estabelecer a segurança como valor social essencial para a sobrevivência das pessoas. No século 21, isso transmuta. O estado soberano absolutista passa a existir dentro da democracia. E não mais fora dela, como foi até o século 20. Os exemplos são as leis antiterroristas, a lei da mordaça espanhola”, explicou.
O professor alerta que, se as leis antiterrorismo já são uma ameaça à democracia nos países centrais, na América Latina elas adquirem um componente ainda mais violento, de forte caráter classista. Isso porque, no primeiro mundo, o inimigo apontado como terrorista é o estrangeiro, o muçulmano, o islâmico. Já na América Latina, esse inimigo é o “bandido”, entendido não como o cidadão que cometeu um erro, mas como uma categoria em si. E como o bandido é normalmente o pobre, aceita-se a coexistência de dois estados diferentes para que toda a pobreza possa ser domada pelo Estado.
“Na América Latina, temos efetivamente uma duplicidade. Temos dois estados. Um estado democrático que gere os territórios ocupados pelos seguimentos incluídos da população, marcadamente de euro-descendência, e um estado de exceção permanente, de natureza militar, que gere os territórios ocupados pela pobreza”, denuncia.
O professor lembra que nestes territórios ocupados pela pobreza os direitos individuais já estão permanentemente suspensos, a despeito da aprovação ou não de leis antiterroristas. De acordo com ele, isso ocorre porque, ao contrário do que ocorre nos países centrais, onde o agente de exceção é o ato legislativo, na América Latina o principal agente de exceção é o próprio judiciário. “Aqui foi criada uma cultura jurídica com forte influência do positivismo analítico, que outorga ao juiz quase um poder absoluto, que o permite até mesmo contrariar a lei. E é esse judiciário que vai aplicar essa lei que o Senado aprovou”, alerta.
Créditos da foto: Mídia Ninja
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