Sangue inocente para mais sangue


26/11/2015, Umberto Mazzei,* O Diário (orig. esp. Alainet)
Tradução Vila Vudu

Os trágicos atentados do ISIS em Paris tiveram a atenção dos veículos da imprensa-empresa que sem dúvida merecem, mas evita-se aludir aos bombardeamentos franceses na Líbia, Iraque e Síria ou à intervenção francesa no Mali e África Central. Silêncio mediático sobre o apoio militar, diplomático e financeiro do governo francês à luta armada islamita contra o governo laico da Síria e silêncio hermético sobre os grandes negócios de armamento francês com a Arábia Saudita e Qatar, reconhecidos patrocinadores do ISIS.
No dia anterior aos atentados em Paris houve atentados com dezenas de vítimas em Beirute, que a imprensa apenas mencionou. Do pouco que disse, insinuava um ataque contra o Hezbollah por lutar contra o ISIS e demais parceiros na Síria. Antes, também o massacre em Ancara contra um protesto pró-curdo mereceu pouca cobertura e foi encarado como represália pela luta das milícias curdas contra o ISIS. Antes ainda, o ISIS atribuiu-se o abate de um avião russo, com 224 pessoas, no Sinai, tragédia acerca da qual o Charlie Hebdo – a 200 metros do Bataclan – fez piadas.

Os trágicos atentados do ISIS em Paris tiveram a atenção dos media que sem duvida merecem, mas evita-se aludir aos bombardeamentos franceses na Líbia, Iraque e Síria ou à intervenção francesa no Mali e África Central. Silêncio mediático sobre o apoio militar, diplomático e financeiro do governo francês à luta armada islamita contra o governo laico da Síria (http://es.awdnews.com/política/quand-hollande-avoue-explicitement-avoir-armé-l-etat-islamique ) e silêncio hermético sobre os grandes negócios de armamento francês com a Arábia Saudita e Qatar, reconhecidos patrocinadores do ISIS
Chama a atenção como quando se trata de ataques ISIS ou demais terroristas islâmicos ninguém culpa os chefes políticos e administrativos pelos fracassos. Nunca são destituídos e muito menos se demitem. É surrealista ver como continuam nos seus lugares os chefes dos serviços de informações e da segurança policial e militar no governo do Sr. Hollande. Será que a França não estaria diretamente empenhada em ações bélicas contra terroristas em várias frentes? Será que não é aliada e faz negócios com países envolvidos nas guerras do Médio Oriente? Os responsáveis pela segurança doméstica dos franceses deveriam estar alerta e não cumpriram o seu dever.
A mesma ineptidão parece afetar também os Estados Unidos quando se trata da sua política militar anti-jihad. A subsecretária da Defesa Christine Wormuth e o General Lloyd Austin III, chefe da campanha contra o grupo que opera sob a designação de ISIS, admitiram ante a Comissão de Serviços armados do Senado que tinham gasto US$ 500 milhões para produzir 4 soldados. Com tantos milhões qualquer país treina e equipa duas divisões. Na realidade foram treinados 100 ou 120, mas ao infiltrá-los na Síria a partir da Turquia, passaram-se com armas e equipamento para Al-Nusra do ISIS, que afinal é uma e a mesma coisa. Num país normal, desbaratar 500 milhões teria causado a renúncia do Ministro da Defesa, mas Ash Carter continua no lugar. Também deveriam despedi-lo porque durante 14 meses de ataques aéreos da US Air Force – sem autorização do governo sírio – os terroristas sempre avançaram. Destruída foi, isso sim, a infraestrutura civil da Síria, o que obrigou a emigrar, a vaga de refugiados que banha de angústia as praias europeias.
Mas os Estados Unidos são o país indispensável e excepcional, que nunca se equivoca. Carter continuará, com a Sra. Wormuth e o General Austin III. O mais provável é que continuem onde estão porque são os derradeiros 4 fieis e caríssimos guerreiros que restam por lá, ainda menos piores que os que os podem substituir na mesma folha de pagamentos.
É curioso que a ninguém do Senado tenha ocorrido objetar que treinar, equipar e pagar soldados para os infiltrar com fins bélicos num país soberano é contrário ao direito internacional e à carta das Nações Unidas (Art.º. 2, parágrafo 4; Art. 39.). Contradiz também a carta da ONU, pôr-se a ‘declarar’ por todos os lados que o presidente legítimo de um país – neste caso a Síria – deveria renunciar e ir-se embora, porque assim o diz a suposta “comunidade internacional”, leia-se OTAN.
Os Estados Unidos devem reconhecer a realidade e renunciar a mudar o governo da Síria e a continuar a fomentar guerras civis, porque a sua situação econômica não dá para tudo isso. Cometeram todo o gênero de crimes em países muçulmanos, com grande despesa e sem outro resultado senão o caos e a indústria da guerra a ganhar mais milhões de milhões do erário público.
Recentemente – numa entrevista televisionada – Dave Walker, que foi chefe do Government Accountability Office (GAO) sob os Presidentes Bill Clinton e George W. Bush, disse que quando se somam todas as obrigações sem cobertura dos Estados Unidos, a dívida nacional é três vezes maior que esses 18 milhões de milhões (trilhões) de que se fala. Segundo ele, a dívida real dos EUA ronda os $65 milhões de milhões (trilhões) [Catsimatidis em “The Cats Roundtable” de New York].
Segundo o Banco de Compensação Internacional – BCI – de Basileia, a dívida em US$ dos bancos, só pela emissão de derivativos, situa-se à volta de 760 milhões de milhões (trilhões). Com um Produto Mundial Bruto de 75 milhões de milhões em 2014, a produção mundial inteira não é suficiente para pagar 10% dessa dívida.
O desemprego nos EUA, quando se toma em conta a totalidade de desempregados – e não apenas os inscritos que procuraram emprego no último ano – está próxima de 23% da população em idade ativa. Segundo as estatísticas americanas, metade dos jovens de 25 anos está obrigada a viver com os seus pais. O número de americanos em idade de trabalhar que não trabalham é de 101 milhões, segundo dados do US Bureau of Statistics. Esses $500 milhões estariam melhor investidos em criar oportunidades de trabalho e reparar a degradada infraestrutura física e social dos EUA do que em combater ISIS & Cº.
Deixem que a Síria, Iraque, Irã e Rússia acabem com ISIS, Al Aqueda, Al Nusra e o resto dos salafistas, dado que em apenas um mês conseguiram mais do que “a coligação anti-ISIS de 40 países” em dois anos.
Será que ISIS é um agente dos Estados Unidos?
A pergunta que fica no ar é se realmente os EUA pretendem acabar com o ISIS, que é descendente direto da Al-Qaeda terrorista que usaram no Afeganistão, Bósnia, Kosovo e talvez noutros lugares.
Chama a atenção que Daesh ou ISIS ou Estado Islâmico se equipasse – sem aviso nem resistência – com o armamento e equipamento pesado totalmente norte-americano de duas divisões iraquianas estacionadas próximo de Mossul.
É curioso que o transporte de combatentes do Estado Islâmico se realize com milhares de picapes de marca Toyota, fabricadas no Japão e levadas para a Síria ou o Iraque, armadas com metralhadoras de alto calibre ou morteiros, sem que a rede de serviços de informações da OTAN desse conta de nada.
É difícil de explicar que o ISIS esteja equipado com equipamentos antitanque TOW, que são a última geração de armas norte-americanas contra blindados e que os EUA venderam à Arábia Saudita, patrocinador eminente do wahabismo, que é a religião oficial de ISIS.
É notável que, submetido a 14 meses de bombardeamentos, o ISIS tenha continuado a avançar, coordenado com equipamentos de comunicação militar modernos que não crescem nas areias do deserto. Índício suspeito é que os voos da coligação anti-ISIS foram suspensos justamente quando forças de ISIS e Al-Nusra se deslocavam para um ataque simultâneo à via pela qual chegam abastecimentos à cidade de Alepo. Cidade cuja central elétrica foi destruída uns dias antes pela aviação norte-americana.
Oficiais do exército iraquiano denunciaram o fornecimento de abastecimentos e armamento às tropas do ISIS pela aviação norte-americana. Também denunciaram ataques aéreos –equivocados – contra tropas iraquianas durante o cerco ao ISIS em Ramadi.
Putin mostrou perante o G-20, reunido na Turquia, fotos de linhas intermináveis de caminhões-tanques do ISIS levando petróleo para a Turquia. A primeira incógnita é como chegaram ali milhares de caminhões-tanque. Ante a velada ameaça de que os aviões russos acabariam com o problema, os aviões dos EUA realizaram ontem um ataque e destruíram 116 caminhões. O governo norte-americano reconheceu estar informado desse comércio rolante do ISIS, mas alegou não os ter atacado para evitar vítimas civis (sic). Mas… e os caminhões-tanques dos contrabandistas do ISIS estariam talvez pilotados por civis?!
Depois sucedeu algo inaudito: ao ver-se obrigados a atacar a coluna petroleira, lançaram uma chuva de panfletos advertindo que iriam atacar: guerra avisada não mata soldado.
Em minha opinião, o interesse primordial dos Estados Unidos na Síria não é atacar o ISIS, mas mudar o governo de Damasco e fragmentar a Síria, segundo o sanguinário modelo tribal e caótico semeado na Líbia.
Guerra quente?
Obama já anunciou o envio de tropas especiais terrestres para a Síria. Em primeiro lugar, coloca-se a questão da constitucionalidade desse envio. É ato de guerra em território sírio, sem prévia declaração de guerra nem a indispensável autorização do congresso norte-americano.
É decisão ilegítima, segundo o direito internacional e segundo a carta da ONU. Mandar tropas para a Síria sem autorização do governo sírio é ato de agressão militar.
Pode ser que o objetivo seja limitar a operação da aviação síria e russa que apoia a ofensiva terrestre do exército árabe sírio e as milícias locais contra os fanáticos islamitas. Os Estados Unidos e seus aliados sabem que Síria e Rússia não desejam uma escalada dessa luta no sentido de um confronto internacional maior do que o que já existe. A morte de soldados americanos no decurso de uma operação poderia ser utilizada pela OTAN como pretexto para intervir abertamente.
Não é a primeira vez que Washington envia soldados seus diretamente para a morte, para obter apoio popular para iniciar uma guerra. Trata-se de velho truque usado por governos de psicopatas ambiciosos. Desde El Álamo no Texas, desde o couraçado Maine em Havana. [Genebra, 17/11/2015]


* Umberto Mazzei é doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Florença. É Diretor do Instituto de Relações Econômicas Internacionais Sismondi, em Genebra.www.ireisismondi.org ; www.ventanaglobal.info

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