Pepe Escobar: Não. Os ataques do terror em Paris não mudam "tudo"


Pepe Escobar Пепе Эскобар 
Traduzido por  Coletivo de tradutores Vila Vudu

A narrativa dominante insiste que "Paris mudou tudo". Não. Não é bem assim.
Comecemos pelo front diplomático. Em vez do autoproclamado Grupo Internacional de Apoio à Síria – de 19 atores políticos – que se reúne regularmente em Viena para implementar um processo de paz na Síria, agora a prioridade é a guerra; uma guerra remixed ao terror, agora não contra alguma al-Qaeda, mas contra um ISIS/ISIL/Daesh.

Até o Conselho de Segurança da ONU (CS-ONU) já emitiu declaração de facto de guerra ao Daesh. Está convocando os membros da ONU a "tomar todas as medidas necessárias" para derrotar o Daesh. A linguagem foi adequadamente vaga, para garantir que a resolução fosse aprovada. Contudo, depois da Líbia, não há quem não saiba que o demônio – principalmente em resoluções vagas do CS-ONU – mora nos detalhes.



Viena fixou uma data-alvo arbitrária, 1/1/2016, para o início das negociações entre Damasco e a oposição síria "respeitável", sobre uma transição política – com eleições e uma nova Constituição dentro dos próximos 18 meses.

Os cinco membros permanentes do CS-ONU também concordaram em apoiar um cessar-fogo no território sírio não controlado pelo Daesh. Como se o Daesh, para começar, respeitasse algum cessar fogo.

Mas daí em diante a coisa fica ainda mais surrealista. A Jordânia – governada pelo reizinho de‘Playstation’ rei Abdullah – ficou encarregada de listar os dez principais terroristas ativos na Síria.

O governo Obama, finalmente, desistiu e concedeu que a Frente al-Nusra, também chamada al-Qaeda na Síria, que seriam "rebeldes moderados" para Washington, é grupo tão terrorista quanto o Daesh.

O mais recente comunicado de Viena é vaguíssimo: o artigo 6º estipula que "Daesh, e outros grupos terroristas, como decidido no Conselho de Segurança da ONU, e mais, com o acordo de todos os participantes, devem ser derrotados." 

Em resumo, o que há é uma listas dos terroristas "dez mais", na Síria. E só. Nem uma palavra sobre os terroristas do grupo Ahrar al-Sham que são ativamente apoiados por Arábia Saudita e Qatar, aliados dos EUA, autorizados por EUA e Grã-Bretanha. Nem sobre a colcha de retalhos conhecida como "Exército da Conquista" [Jaish al-Fatah] financiado e armado pela Arábia Saudita. Muitos grupos terroristas associados à Ahrar al-Sham – braço da Fraternidade Muçulmana – têm "pactos de não agressão" com o Daesh.

Quanto à Frente al-Nusra, faz o que quer dos chamados "rebeldes moderados" do Exército Sírio Livre em praticamente todas as grandes batalhas em Aleppo, Latakia, Hama e Idlib. No front perenemente poroso da aliança "rebelde", o grupo Jaish al-Fatah congrega de facto a Frente al-Nusra e o grupo Ahrar al-Sham e lhes garante acesso liberado às armas norte-americanas entregues ao Exército Sírio Livre – especialmente aos mísseis TOW antitanques. Desnecessário dizer que EUA, Arábia Saudita e Qatar são responsáveis por armar o Exército Sírio Livre.

Mês passado, a Arábia Saudita mandou 500 mísseis TOW antitanques diretamente para a Frente al-Nusra. Significa, pelos termos definidos em Viena, que Riad está armando terroristas.

Dúvidas que haja sobre o grupo Ahrar al-Sham podem ser esclarecidas pelos curdos sírios. O Partido Democrático Unido Sírio Curdo disse com todas as letras que Ahrar al-Sham e Daesh são uma e a mesma coisa; que, em campo, todos esses grupos misturam-se completamente num mesmo exército. No teatro de Aleppo, tremendamente complexo, por exemplo, Daesh e al-Nusra são totalmente intercambiáveis.

Crer que aquela infeliz Jordânia – colônia não disfarçada do Conselho de Cooperação do Golfo – seria capaz de deslindar todos esses movimentos e teria alguma autoridade para construir um "quem-é-quem" do terror é ideia que parece tirada do manifesto surrealista. Por que a Jordânia? Simples: porque sauditas e qataris convenceram os norte-americanos de que faz sentido.

E há também o wahhabismo, a matriz ideológica de todos os ramos e variantes de jihadismo, a ensinar ao ocidente quem é e quem não é "terrorista". Não pode dar certo.

Escolha sua coalizão
O presidente Obama continua a insistir que "Assad tem de sair". Não só é repetição patética, à altura em que estão hoje as coisas; é também torpedear qualquer "processo de paz" viável que esteja sendo construído em Viena. Quer dizer: de volta aos fatos em campo e à nova – sempre surrealista – variável: uma coalizão militar França-Rússia tenta intrometer-se no conto de duas coalizões.

Mas o que se tem, mesmo, é, de um lado, a coalizão OTAN-CCG, que tenho chamado de "Coalizão dos Oportunistas Finórios" (COF); e de outro lado, completamente diferente, a coalizão "4+1" – Rússia, Síria, Irã 'mais' o Hezbollah.

A questão de zilhão de dólares é se haverá aliança multinacional liderada pela Rússia contra o Daesh. O mais provável é que não. Porque Obama dirá a François Hollande, com todas as letras, nessa 3ª-feira que não, de jeito nenhum, nem pensar! Assim sendo, o cenário mais provável é a perpetuação desse estranho conto das duas coalizões. Washington continuará a mentir que está no comando, e Moscou continuará a fazer o trabalho sério.

E pensar que, diferente da Grã-Bretanha, a França parece ter afinal compreendido o que a Rússia está fazendo: intervenção perfeitamente legal, a pedido de Damasco, para salvar um estado ainda existente e funcional na Síria, e esmagar todas e quaisquer denominações de salafismo-jihadismo, que são todas iguais, como já sabe a inteligência russa, porque todos esses grupos professam a mesma ideologia. E são ameaça, não só para a Rússia – a famosa síndrome de "Aleppo está só a 900 km de Grozny" – mas para toda a Europa, como os ataque em Paris já comprovaram.

Bem-vindos à Peshawar do Oriente Médio
O presidente Putin mostrou com palavras e imagens  no G-20 em Antalya como o Daesh é financiado por fontes externas, inclusive nações membros do G-20. Ninguém precisa de pós-graduação para saber quais são as tais "nações do G-20".

Na Síria, não bastarão só os ataques aéreos. Nem bastará a arapongagem à moda Agência de Segurança Nacional dos EUA. Para lutar ali é indispensável ter organizada e operante alguma operação relativamente sofisticadas de inteligência de solo. O nodo central é a fronteira turco-síria, especialmente o trecho entre Gaziantep na Turquia e Jarabulus na Síria, atualmente controlado pelo Daesh.

É ali o ponto privilegiado pelo qual vão e vêm, à vontade, os doidos do ISIS/ISIL/Daesh. Abdelhamid Abaaoud – o dito "cérebro" dos ataques de Paris, que foi morto – cruzou por aquele ponto pelo menos quatro vezes esse ano. E há até um nome a perseguir: Abu Muhammad Al-Shimali, o "chefe de fronteira" do Daesh, encarregado do contrabando de jihadis que vêm da União Europeia e do Cáucaso. É simplesmente absurdo que ninguém – de Viena ao Conselho de Segurança da ONU – não pressione Ankara sobre tudo isso.

Kadri Gursel, escrevendo para o diário turco Milliyet em setembro de 2013, já explicou perfeitamente muita coisa: a fronteira turca, de Hatay até Gaziantep, é praticamente a Peshawar do Oriente Médio. Falava da habilidade histórica da al-Qaeda, desde os anos 1980s, para viajar ida e volta entre Afeganistão e Paquistão, mantendo Peshawar como ponto de referência.

Pode-se dizer que Gursel 'matou a charada': de um lado, a Turquia que se 'paquistaniza'; de outro, a Síria que sofre processo de 'libanização' (com polarização étnica e sectária); em vários pontos, é a'somalização' (estados empurrados para o fracasso, até o colapso); e por toda a parte, a'afeganização' (mais e mais poder, sempre, aos jihadistas).

‘afeganização’ é autoevidente em toda a região que vai de Idlib até Aleppo. É circunscrita pela região Rojava curda no nordeste da Síria. Mas avança ao longo do vale do Eufrates, por Deir ez-Zor, diretamente até o deserto do oeste do Iraque.

Os jihadistas jamais conseguirão 'afeganizar' essa região próxima da fronteira turca, se não tiverem, no mínimo, apoio logístico de fontes turcas corrompidas. Por exemplo: a base de retaguarda da Frente al-Nusra, quando combatiam contra os cursos sírios, era Ceylanpinar, cidade turca.

A Síria nunca será pacificada, se esse cinturão de terroristas não for reconquistado. Só há dois candidatos capazes de cumprir essa tarefa: os sírios curdos e o Exército Árabe Sírio.

O ministro de Relações Exteriores da Turquia, Ahmet Davutoglu, insiste que "a Turquia não tem relações" com a Frente al-Nusra, que inchou e conta agora com 8 mil combatentes, 25% dos quais são estrangeiros recrutados pela empresa Jihad Inc. Mesmo assim, para Ancara, são apenas"radicais" – não "terroristas", apesar de serem, para todos os efeitos práticos, a al-Qaeda na Síria. Portanto, também para todos os efeitos práticos, segundo Viena e a ONU, o que a Turquia faz é, sim, apoiar terroristas.

O mesmo, até pior, aplica-se à Arábia Saudita. A prioridade, para aquela Riad paranoica de tanto medo, é a guerra contra o Iêmen. Não o Daesh. O Pentágono, direta ou indiretamente, concorda. Considere-se a venda recente de 19 mil bombas a Riad por lindos $1,29 bilhão. Não há businesscomo o business de guerra.

A Força Aérea Real Saudita fez absolutamente nada contra o Daesh durante meses. Os vassalos do CCG, Emirados Árabes Unidos, pararam em março passado, de bombardear posições do Daesh. A Jordânia compiladora de lista de terroristas parou de bombardear o Daesh em agosto passado. Bem poucos sabem disso, por não houve 'comunicado' nem anúncio público oficial.

E, claro, a "Voz do Patrão" [deles] não pressionou. Os Emirados Árabes Unidos e a Jordânia foram, isso sim, inflados e elogiados no ocidente, porque tentam promover uma espécie de versão 'rede social' de um Islã mais bem comportado e cordato.

Fale aí com a Agência de Inteligência da Defesa (AID)
[ing. Defense Intelligence Agency (DIA)]
No front da guerra de informação, Paris também não mudou coisa alguma. Para a mídia do governo do Qatar (Al Jazeera) e para a mídia do governo saudita (Al Arabiya), para nem falar de veículos menos dominados pelos petrodólares do Golfo, é evento perfeitamente normal quando xiitas, alawitas, cristãos e até sunitas que vivem em "áreas da Síria dominadas pelo regime" convertem-se em "dano colateral".

Tudo que é preciso saber – num único documento – sobre a guerra por procuração na Síria está reunido no relatório secreto da inteligência dos EUA, de agosto de 2012, que, na essência festeja a possibilidade já próxima de se criar um "principado salafista" no leste da Síria e um Estado Islâmico na Síria e no Iraque controlado pela al-Qaeda.

Em 2012, a Defense Intelligence Agency (DIA) identificou a al-Qaeda no Iraque, antes de se converter por metástase em Daesh, e um um bando de salafistas, como "as principais forças que faziam avançar a insurgência na Síria."

E a Agência de Inteligência da Defesa admitia então, claramente, que

"Países ocidentais, estados do Golfo Persa e a Turquia" estavam diretamente envolvidos. Quanto à "possibilidade de estabelecer um principado salafista declarado ou não declarado", a Inteligência da Defesa dos EUA realmente explicou o óbvio: "é exatamente o que desejam as potências que apoiam a oposição, para isolar o regime sírio, que é considerado a profundidade estratégica da expansão xiita (Iraque e Irã)."

Então, aí vai mais uma rápida recapitulação: 2003, Choque e Pavor; nasce a al-Qaeda no Iraque; Camp Bucca; a metástase que gera o Daesh; a Líbia é "libertada" pela OTAN para ser um paraíso jihadista.

Sem EUA, franco-britânicos, sauditas, qataris e turcos a financiarem e a armarem um minigaláxia de grupos salafistas-jihadistas que converteram a Síria no novo Afeganistão, todos usados como procuradores/serviçais contra Damasco, contra o Hezbollah e principalmente contra o Irã, não haveria jihad nas ruas de Paris.

Pronto. E agora? Paris mudou alguma coisa?




Muito obrigado a Tlaxcala
Fonte: https://www.rt.com/op-edge/323108-paris-terror-europe-syria/
Data de publicação do artigo original: 23/11/2015
URL deste artigo: http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=16682 

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