Argentina: Identificar o inimigo

Hoje, é preciso saber, mais do que nunca, quem é o inimigo. Não ficar só nos gritos de guerra e entender quem é o sujeito social das mudanças

Aram Aharonian - Carta Maior - 07/11/2015
Maurício Macri / Flickr
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As tentativas de decodificar as mensagens das eleições de 25 de outubro levaram a interessantes debates, mas também a equivocadas interpretações. A única verdade é a realidade e essa mostra que Daniel Scioli ganhou as eleições por vários pontos de vantagem, mas a necessidade de um segundo turno marcaram um inegável retrocesso, num processo que terminou, inesperadamente, com a estreia desse mecanismo no país.
 
Esta semana, a imprensa local vendeu a ideia de que as pesquisas mostram a candidatura de Macri alguns pontos acima da de Scioli. Porém, nesta altura do campeonato, os argentinos sabem que esta prática de fazer pesquisas à medida dos gostos e dos interesses de quem as contrata são pouco convincentes.

 
Pela primeira na Argentina moderna, um partido de direita poderá chegar ao poder sem necessidade de um golpe militar ou de eleições fraudulentas. Sempre aliada ao imperialismo – primeiro o britânico, depois o estadunidense – a direita e os setores econômicos concentrados têm hoje a possibilidade de mudar a história.
 
Quando o branco é amarelo
 
O maior problema que a esquerda vem enfrentando na Argentina é o de identificar claramente o inimigo. Inclusive hoje, parte dessa esquerda continua servindo de força desestabilizadora, em favor da restauração neoliberal. Por outro lado, também existe a confusão de quem acredita que a esquerda se resume ao trotskismo.
 
O candidato presidencial trotskista, Nicolás del Caño, pediu o voto em branco no segundo turno, uma posição classista que buscará a reorganização dos setores populares. Seu único interesse é “demonstrar” que Daniel Scioli é de direita, herdeiro do menemismo, talvez com o sonho pueril de que os setores progressistas do peronismo-kirchnerismo poderiam se unir à sua proposta…
 
Outros setores da esquerda marxista entendem que, hoje em dia, o mais importante é impedir as aspirações de um conglomerado político que encarne o projeto neoliberal duro, o regresso a épocas da ditadura e da Aliança de 1999. O objetivo é desbaratar a mais feroz aposta organizativa da direita argentina nos últimos tempos.
 
Votar por Scioli, evitar que Macri ganhe, não será mais que um elemento defensivo, que deverá estar associado com a mais ampla mobilização do campo popular. As ruas, em definitivo, serão o principal cenário da luta na Argentina nos próximos anos.
 
“Não queremos que uma direita que foi e é contra a estatização da YPF e dos fundos de previdência privada, que é contra o matrimônio igualitário, a Lei de Meios e os programas sociais. Que destrói o setor público e quer terminar com muitas conquistas trabalhistas e populares. Macri jamais!”, dizia um manifesto escrito por algumas organizações sociais sobre os 10 anos do Não à ALCA.
 
“Tampouco queremos um presidente que pretende `acabar com o incômodo dos direitos humanos´ (como Macri disse), e que se opôs à luta dos organismos e do povo argentino por Memória, Verdade e Justiça. Vamos defender as conquistas populares nas ruas em qualquer cenário”, disseram dez organizações de esquerda (Seamos Libres, Camino de los libres, Patria Grande, MPR Quebracho, Encuentro Antiimperialista, Movimiento Emancipador, Resumen Latinoamericano, Partido Comunista, OP Cienfuegos, Marcha Patriótica, OPS Los Pibes, Editorial Acercándonos, Barricada TV, Movimiento Nacional de Empresas Recuperadas, Partido de la Liberación).
 
“Macri representa o início de uma fase reacionária que aprofundará ao extremo as medidad da década de 90 e eliminará as mudanças e as limitações ao capital, as políticas de autonomia a respeito do imperialismo norte-americano e as conquistas democráticas alcançadas recentemente. Significa, a nível regional, um alinhamento com o eixo do Pacífico, abandonando as políticas latino-americanas de integração. Significa levar o país ao lugar de vagão de trás das políticas reacionárias no mundo, num trem que é conduzido pelos Estados Unidos, e que tem a Inglaterra, Israel e muitos outros na frente. Significa abandonar até a retórica da causa das Malvinas. O 22 de novembro deve ser um dia contra Macri”, afirma o movimento Encuentro Antiimperialista.
 
Explicólogos, abstenham-se
 
Vem sendo difundidas interessantes explicações políticas e sociológicas sobre o resultado, mais interessantes ainda se consideramos que os explicólogos têm consciência de que não há rejeição às políticas dos governos kirchneristas. Mas a credibilidade e o apoio recebido pela presidenta não mostrou o descontentamento daqueles que sentem que não estão mal, que estão muito melhor que no começo deste século, mas ainda assim sentem que estão estancados.
 
O cidadão sempre quer mais, quer progredir na escala social. É tendo isso em conta que se pode elaborar um discurso – com o apoio de sempre dos meios de comunicação hegemônicos – sobre a insegurança, o narcotráfico, a inflação e a pressão dos impostos, quando, na verdade, a resposta que os eleitores esperam é sobre o futuro bem-estar econômico. Não basta com a longa lista do que já foi conseguido nos últimos 12 anos: são direitos adquiridos e se supõe que não podem ser tirados por ninguém. O eleitor quer mais, ainda que esse mais sejam só espelhinhos coloridos.
 
Daqui a duas semanas, o eleitor escolherá entre um modelo de desenvolvimento soberano com transformação das estruturas produtiva e outro de desenvolvimento dependente. Mas não é exatamente isso que o cidadão que deixou de votar pelo kirchnerismo viu no dia 25 de outubro, ou o que vê agora.
 
O analista político Claudio Scaletta recordou que o único resultado eleitoral adverso desde a chegada de Néstor ao poder foi o de 2009, não pela crise do campo, mas sim pelo freio transitório provocado pela crise internacional de 2008. Os 37% do dia 25 de outubro, com apenas três pontos de diferença sobre Macri, podem ser explicado pelo freio da economia a partir de 2012, aprofundado em 2014. Por isso, a ideia de uma “mudança” abstrata, que não teria sido possível em 2011 – quando Macri evitou enfrentar uma Cristina que buscava a reeleição –, mas tem sua oportunidade tardia neste 2015.
 
Alguns sociólogos se perguntam como há setores da população – entre eles trabalhadores, pequenos e médios empresários, sobretudo os que se nutriram com o crescimento do mercado interno –, que optaram por um voto masoquista, contra os seus interesses de classe, destruindo aquilo que tardou uma década para ser construído: a economia, os direitos humanos e sociais, a institucionalidade democrática, o tecido social.
 
Outros se perguntam como pode ser que votem novamente em candidatos que propunham o retorno ao passado recente, que defendiam a restauração conservadora, com as mesmas políticas que levaram o país à grande crise de 2001 e 2002, à pobreza, ao desemprego e à queda do produto interno bruto, ao hiperendividamento e à moratória.
 
O duelo eleitoral é entre programas que encaram a percepção de “mudança” instalada na sociedade. O sciolismo publicou dois livros sobre o programa de desenvolvimento para melhorar a economia, enquanto o macrismo não explicitou até agora a sua proposta, se dedica a mostrar um candidato preocupado em combater a pobreza, que quer acabar com o narcotráfico e com os enfrentamentos entre os argentinos, que quer mais transparência e que diz que a inflação é um flagelo.
 
Hoje, é preciso saber, mais do que nunca, quem é o inimigo. Não ficar só nos gritos de guerra – Braden ou Perón, pátria ou abutres – e entender quem é o sujeito social das mudanças, para defender as conquistas, para exigir seu aprofundamento, para estar sempre atentos aos projetos políticos que tentam desviar a vontade popular. Para não voltar a ser colônia e poder seguir construindo uma pátria justa, livre, soberana, argentiníssima e latino-americana.
 
Tradução: Victor Farinelli



Créditos da foto: Maurício Macri / Flickr

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