Austericídio de uma nota só

Estamos em plena redução do ritmo das atividades da economia e a orientação oficial do governo continua sendo a de aprofundar a recessão

Por Paulo Kliass- na Carta Maior - 21/10/2015
Montagem
“Eis aqui este sambinha feito numa nota só.
Outras notas vão entrar, mas a base é uma só”
(“Samba de uma nota só”, Tom Jobim)
 
 
 
A combinação da natureza política e da dimensão econômica da crise atual que atravessamos tem contribuído sobremaneira para as próprias dificuldades de sua superação. Apesar da multiplicidade de fatores que intervêm para impedir a solução do imbróglio estagnacionista, é inegável que a postura do Ministério da Fazenda (MF) não tem colaborado para a construção de uma saída de coloração progressista. Estamos em plena redução do ritmo das atividades da economia e a orientação oficial do governo continua sendo a de aprofundar a recessão, com as consequências implacáveis de desemprego, queda na arrecadação, aumento das falências e diminuição nas vendas.

 
Na verdade, boa parte do impasse atual deriva da surpreendente mudança de discurso e de orientação adotados pela Presidente Dilma, tão logo foram conhecidos os resultados do pleito eleitoral de outubro passado. Caminhando na contramão de todas as expectativas criadas durante a campanha, em especial aquela que definiu o segundo turno presidencial, a candidata vitoriosa retrocedeu no momento da definição do perfil de sua equipe ministerial e também no estabelecimento das diretrizes estratégicas de seu governo.
 
A opção por um nome umbilicalmente vinculado ao sistema financeiro para ocupar o principal posto de comando da política econômica representou um recuo inequívoco em relação a tudo o que havia sido dito e prometido nos palanques e nos programas nos meios de comunicação. A convocação de Joaquim Levy para o MF carrega uma carga simbólica mais acentuada do que simplesmente chamar um diretor de um dos maiores bancos privados para compor o núcleo duro do palácio do Planalto.
 
Levy prometeu e não cumpriu.
 
Além do degaste político implícito em tal manobra, que contrariava as esperanças de mudança que foram criadas no calor da disputa de votos, outro elemento essencial presente no convite era a transformação inédita no que se refere ao diagnóstico das dificuldades na esfera econômica. Situação semelhante, diga-se de passagem, havia experimentado o País em 2003, quando o recém-eleito Lula havia chamado o ex-presidente internacional do Bank of Boston, Henrique Meirelles, para ocupar a Presidência do Banco Central. Essa frustração com o fortalecimento de um viés conservador e ortodoxo para a política econômica foi adicionada à comprovação da recusa em trilhar um caminho afirmativo do desenvolvimentismo. 
 
Lula bem que tentou emplacar de novo, na equipe de Dilma, representantes mais “genuínos” do financismo, como o próprio Meirelles ou o presidente do Bradesco, Luiz Trabuco. Não logrou êxito na empreitada e a escolha recaiu mesmo sobre o regra-três. O escolhido vai completar 10 meses à frente do Ministério e de completo domínio sobre as principais decisões que o governo vem adotando a respeito da economia. Porém, ao contrário de tudo aquilo que foi prometido no momento em que seu nome foi incorporado pela reeleita, a presença dele no posto não contribuiu para melhorar o quadro de dificuldades.
 
Na verdade, Levy poderia mesmo ser processado por estelionato ministerial. Prometeu que a fase ruim iria ser rapidamente superada. Porém, não apenas a recessão de 2015 vai ser bem mais acentuada do que ele havia prometido lá atrás, como 2016 também deverá apresentar um crescimento negativo do PIB. Garantiu que a sua presença à frente do MF impediria o rebaixamento da nota de rating do Brasil quando da avaliação a ser divulgada pelas empresas internacionais do gênero. Meses depois de sua nomeação, a agência Standard & Poor’s rebaixa a nota do Brasil e retira o grau de investimento. Enfim, ele assegurou que seu perfil conservador facilitaria o trâmite das propostas no interior do Congresso Nacional. Porém, até o presente momento nenhuma medida substantiva foi aprovada pelo legislativo. Ou seja, Levy falhou em todas.
 
Cortar, cortar e cortar.
 
A presença do ex-colaborador de Palocci à frente da equipe ministerial de Dilma tem provocado um certo desconforto também no interior daqueles que perderam as eleições, em especial dos assessores econômicos do projeto derrotado. O incômodo é compreensível, uma vez que identificam o seu diagnóstico sendo adotado pelo governo adversário e assistem à implementação de medidas com as quais apresentam bastante identidade e concordância. O paradoxo vem também da manifestação de apoio - meio constrangido, é verdade - dos mais puros representantes do nosso liberalismo de botequim nos espaços dos meios de comunicação. Meio a contragosto, acabam por apoiar Levy em sua missão saneadora, mas criticam o governo Dilma por não completar a íntegra da lição de casa sugerida pelo aprendiz de banqueiro (sic).
 
E assim o mantra continua a ser repetido ad nauseam. O caminho passa pela perseguição inequívoca da redução dos gastos públicos, para que se obtenha o tão desejado saldo necessário de superávit primário. Ao desconhecer ou ignorar os efeitos negativos da recessão que esse movimento engendra, resta-nos a cadência monocórdica do austericídio de uma nota só. Cortar, cortar e cortar. E ponto final.
 
O documento oficial de balanço desse período divulgado pelo Ministério (“Reequilíbrio fiscal e retomada da economia”) representa a prova cabal da falta de imaginação na busca de soluções para saída da crise atual. Para além das menções recorrentes ao suposto “sucesso” obtido com a política de cortes orçamentários, o texto parece atingir orgasmos quando se refere, de forma saudosista, a períodos em que se manteve uma sequência longa de resultados de superávit primário, que foram sempre superiores a 3%, entre 1999 e 2003.
 
Assim, o texto sugere que:
 
“A experiência dos ciclos anteriores indica a validade de uma política de crescimento baseada em estabelecer uma clara política fiscal e medidas abrangentes, que liberem a demanda agregada e facilitem a expansão da oferta. Colocada de forma muito simples, seria o “1-2-3” do crescimento”
 
Assim, a única alternativa que se apresenta ao governo é aguardar pelos primeiros resultados da política de cortes orçamentários. Isso porque tal conduta sinalizaria - de forma mágica - para o conjunto da sociedade, em geral, e para os empresários, em especial, a garantia de que o crescimento poderia finalmente ser retomado. Para tanto, basta gerar superávit primário. Leia-se, transferir recursos públicos ao sistema financeiro de forma contínua e abundante.
 
Aguardar o 1-2-3 do crescimento.
 
Em uma aparente tentativa de sair da cápsula isoladora do “economês” e do raciocínio de viés economicista, o documento busca uma linguagem mais acessível. E lança mão de uma infeliz imagem popularesca: a intitulada “estratégia 1-2-3 do crescimento”. De acordo com essa fórmula simplicacionista, tudo se resumiria a aguardar por uma sequência típica de receita de bolo, com 3 etapas subsequentes, para que então se possa assistir finalmente ao espetáculo do crescimento.
 
Simples assim:
 
“Nessa estratégia “1,2,3 do crescimento” a obtenção do equilíbrio fiscal para despertar a economia depende da combinação de redução duradoura de despesas, inclusive obrigatórias, e do aumento de receitas tributárias, que permita uma visibilidade fiscal de médio prazo. Ninguém investe ou contrata se achar que vai ter grande aumento de carga no futuro. Ninguém consome se achar que haverá menos emprego. Confiança de que a dívida pública não vai pesar no futuro, por outro lado, anima as pessoas a tomarem riscos e empreenderem.”
 
Uma loucura, não fosse um registro oficial que retrata a maneira como o governo pretende superar a crise e avançar em termos da economia. O texto fala com todas as letras em redução duradoura das despesas obrigatórias. Isso significa diminuir, mesmo a longo prazo, os compromissos orçamentários com saúde, educação, previdência social e outros. O texto afirma que não haverá elevação do nível de investimento na economia se o governo lançar mão de novos instrumentos tributários. Assim, nada de sugerir CPMF, Imposto sobre Grandes Fortunas, Imposto sobre Heranças, fim de isenção de imposto de renda e ouras medidas que visem diminuir a regressividade de nosso modelo de tributação. Desnecessário lembra que o documento não dedica uma única palavra ao monumental espaço ocupado pelas despesas públicas com juros da dívida pública nem para conter o ataque especulativo da taxa de câmbio.
 
O texto ainda ameaça com obviedades de que o consumo não aumentará se não houver redução do desemprego. Mas esquece de mencionar que a eliminação dos postos de trabalho só ocorre por obra e graça do austericídio de uma nota só. E lança mão de hipóteses de manual de economia de segunda categoria, ao considerar que os investimentos não vêm por conta do peso da dívida pública. Ora é mais do que sabido que nosso grau de endividamento público está muito aquém do observado na maioria dos países desenvolvidos. E nem por isso o investimento por lá é inexistente.
 
E no final não sobrou nada.
 
As etapas do “1,2,3 do crescimento” do MF são as seguintes: i) estabilização fiscal; ii) retomada da demanda; e,  iii) ações do lado da oferta. O pequeno detalhe é que essa etapa primeira de estabilização fiscal envolve basicamente corte de despesas e deve durar de 3 a 5 anos. Como resultado, pode-se esperar por algo muito semelhante à tragédia provocada pela aplicação da mesma receita nos países da União Europeia. 
 
Em seguida, a segunda fase de retomada da demanda etapa implicaria uma suposta estabilização do câmbio, com forte dose de incerteza, pois o manual por eles adotado não admite a atuação do governo na definição da taxa e pressupõe a liberdade do mercado. Já a taxa de juros de curto prazo (SELIC) só poderia ser diminuída quando a taxa de juros de longo prazo fosse reduzida. Com isso, o COPOM continuaria a agir de forma passiva, sempre atendendo aos desígnios do financismo. Nada de reduzir a taxa básica de juros e nem de atuar sobre os elevados spreads praticados pela banca tupiniquim.
 
Finalmente, a terceira etapa acolheria ações pelo lado da oferta, onde magicamente tudo se resolveria com a adoção de um esquisito coquetel, onde são misturados ingredientes como a expansão do mercado de capitais, a elevação da concorrência externa, o aumento do investimento em infraestrutura, o fortalecimento da previdência social e a dinamização do mercado de trabalho.
 
Como se percebe, infelizmente a dinâmica conservadora para a crise atual lembra muito o restante do samba de Jobim:  
 
“Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada, 
Não deu em nada.” 
 
Além de não sugerir nenhuma medida pró-ativa de política pública para recuperar o crescimento econômico, a orientação da ortodoxia ignora a estratégia visando o desenvolvimento e a redução das desigualdades. Sim, pois segundo o dogma do liberalismo radical, tudo isso virá por obra e graça do sacrossanto mercado. Basta aguardar.
 
 

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
 
 
 


Créditos da foto: Montagem

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