As imagens do velório de Herzog, registradas por uma jovem fotojornalista

O jornalista Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo
Do Jornal de Londrina
 
Elvira Alegre era só uma menina de 19 anos com uma câmera na mão; no meio do furacão da ditadura, marcou a história
Fotos geralmente são autoexplicativas - dispensam palavras porque, em tese e no ditado, “valem” muito mais que mil delas.
Para aniquilar com o clichê, uma fotojornalista de Londrina se impôs uma tarefa:jamais deixar de falar sobre aquelas imagens que marcaram a vida dela e do país.
Quarenta anos depois, permanece o desconforto diante do silêncio das imagens captadas pela fotorepórter Elvira Alegre, 59, que, aos 19 anos, faz parte da história registrando-a.
São das lentes da fotógrafa londrinense as únicas fotos, durante o velório, do jornalista e intelectual Vladimir Herzog – o Vlado – um dos mais ilustres assassinados pela ditadura brasileira, em 25 de outubro de 1975.

Oito delas ilustram esta reportagem - e podem ser vistas clicando nas setaslaterais da imagem principal.
A mulher Clarice e os filhos de Vlado, ao lado da mãe do jornalista, Zora, inconsoláveis (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
A mulher Clarice e os filhos de Vlado, ao lado da mãe do jornalista, Zora, inconsoláveis (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
  • A viúva Clarice, sempre forte, ao lado do caixão com um amigo (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)

  • A viúva Clarice, sempre forte, ao lado do caixão com um amigo (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
  • O caixão de Vlado, coberto com uma bandeira do Sindicato dos Jornalistas (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
    O caixão de Vlado, coberto com uma bandeira do Sindicato dos Jornalistas (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
  • Dom Paulo Evaristo Arns, e os 15 minutos de silêncio diante do caixão: falta de foco na imagem foi nervosismo, conta Elvira (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
    Dom Paulo Evaristo Arns, e os 15 minutos de silêncio diante do caixão: falta de foco na imagem foi nervosismo, conta Elvira (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
  • Vlado foi enterrado em um cemitério israelita, cercado por uma multidão (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
    Vlado foi enterrado em um cemitério israelita, cercado por uma multidão (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
  • Ivo, filho de Vlado, ao lado da mãe, em uma das fotos que Elvira mais considera de toda a coleção (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
    Ivo, filho de Vlado, ao lado da mãe, em uma das fotos que Elvira mais considera de toda a coleção (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
  • A Chevrolet Caravan, um dos veículos mais comuns das forças da ditadura: medo até no velório (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
    A Chevrolet Caravan, um dos veículos mais comuns das forças da ditadura: medo até no velório (Crédito: Elvira Alegre/Arquivo pessoal)
Em uma das mais célebres fraudes da ditadura verde-amarela, o Doi-Codi e o Exército pretendiam mostrar Vlado como um suicida, ao apresentarem uma imagem montada do jornalista da TV Cultura pendurado pelo pescoço em uma corda, na sede do órgão na Rua Tutóia, centro de São Paulo. Uma falseta.
Com o corpo devolvido à família, o velório foi no Hospital Albert Einstein, no dia seguinte à morte, em 26 de outubro.
“Tenho a lembrança, as memórias e as sensações daquele dia”, conta Elvira.
Antes, ela havia deixado Londrina para morar na capital paulista onde seguiria como fotógrafa, após o fechamento do jornal Panorama aqui na cidade.
Ao escolher a fotografia, fitava com o curso de Medicina - sonho que, felizmente, foi devidamente abandonado.
“Na madrugada, um funcionário da TV Cultura ligou em casa e deu a notícia: Vlado está morto”, reconstituiu ela – que nunca conheceu pessoalmente o jornalista.
Na época, Elvira convivia com pesos-pesados do jornalismo brasileiro, em Londrina e na capital. Figuras como Narciso Kalili, Hamilton Almeida Filho e Mylton Severiano, gênios de revistas como Realidade, Veja, Placar, sempre candidatos aprêmios Esso, e ainda gentes como o literato João Antônio e o músico Geraldo Vandré, entre vários. Em São Paulo, trabalhava no jornal “Ex-” – que jamais publicou as tais fotos.
Quando a edição 16 do “Ex” estava quase pronta para ir às bancas – com uma entrevista de Dom Paulo Evaristo Arns – tudo mudaria de véspera. “Virou uma revolução”, lembra a jornalista.
A morte de Vlado, sem dúvidas, deveria ser a notícia. No entanto, não haveria tempo de esperar as fotos de Elvira, reveladas no laboratório.
Só 10 anos depois, em 1985, a Folha de São Paulo traria as imagens à baila novamente, publicando uma foto do jornalista Audálio Dantas, na época presidente do Sindicato dos Jornalistas, cabisbaixo, mãos ao rosto, ao lado do caixão inerte de Vlado. "(leia no box)
“E eu era só uma menina. O Hamilton recebeu a ligação avisando da morte em casa e me disse: põe a máquina na cara e vai”, lembra. “Eu tremia muito: tanto que algumas fotos saíram de foco, algo que dá para ver bem na imagem de Dom Paulo em frente ao caixão”, lembra Elvira. “Mas sabia que era algo importante e grave. O Hamilton me dizia para eu não ter medo. Foi muito difícil esquecer o clima de perseguição que havia”.
Depois das fotos, o “Ex-” saiu com 50 mil exemplares, sem elas. Depois, mais 30 mil exemplares extras foram impressos. “E decidimos abandonar a redação e o jornal porque algo estava prestes a acontecer. Na debandada geral, todo mundo pegou alguma coisa. Levei meus negativos mas nem toquei nas fotos já reveladas”, conta. Sem submeter-se à censura e com a redação devassada pelos milicos, o “Ex” acabou naquela edição mesmo.
Vida e morte no Albert Eistein
No mesmo dia, logo depois do enterro de Herzog, Elvira passou mal. Além do medo e do nervosismo admissíveis em alguém que levantava da cama disposta a derrubar mentiras de uma ditadura, Elvira saberia que estava grávida. Nove meses após a morte de Herzog, voltaria hospital Albert Eistein para o parto da filha Joana.
“Com certeza é a foto da minha vida”, concorda. “Apesar de vivermos outra realidade, permanece a revolta quando ouço alguém defender a ditadura. É gente que não faz ideia do que significa perder alguém para a tortura. Até hoje não dá para aceitar o fato de que pagávamos agentes públicos para matar o povo”, diz ela, concordando com a viúva Clarice – ambas sempre se encontram nos eventos que relembram a tragédia de Vlado e família. “Lembrar de tudo dispara meu coração até hoje”.
Quatro décadas mais tarde, Elvira segue cumprindo a tarefa: contar, contar e contar de novo sobre os tempos sinistros do regime militar, para que ninguém tenha saudades da ditadura que exterminou Vlado e ainda perseguiu e eliminou outras433 pessoas no Brasil, segundo os relatórios da Comissão Nacional da Verdade.
Atualmente, os direitos sobre as imagens pertencem ao Instituto Vladimir Herzog.
Anos atrás, ao cedê-las para a instituição, Elvira reafirmou o compromisso: falar muito mais que mil palavras sobre as experiências que, além de guardadas nos negativos originais, vão gravadas na própria alma.
“Frio na barriga, pernas bambas”
Em 25 de outubro de 1985, já de volta a Londrina, Elvira trabalhava na Folha de Londrina quando um colega correu para mostrar uma edição da Folha de São Paulo a estampar uma das fotos do velório. “Um colega do Ex, o Dácio Nitrini, tinha levado as fotos com ele quando deixamos a redação. E decidiu publicá-las nos 10 anos da morte de Vlado. Quando vi, foi como se estivesse voltado ao velório de novo: frio na barriga, pernas bambas”, conta a jornalista.

“Daí aquelas imagens foram publicadas em todos os cantos do país, por muitos jornais”.

No preto-e-branco, exatos 70 registros: as cenas de desespero contido da viúva de Herzog, a publicitária Clarice – que duas semanas atrás declarou jamais anistiar os assassinos do marido. O rosto do pequeno Ivo – filho de Vlado, aos 8 ou 9 anos, com a avó Zora, desconsolados, amontoados em frente ao caixão. Os estrondosos 15 minutos de silênciode Dom Paulo Arns em frente ao esquife de Vlado. O silêncio solitário do presidente do Sindicato dos Jornalistas, Audálio, sentado com as mãos ao rosto. O caixão sobre omármore frio. O enterro cercado por uma multidão no cemitério israelita. A Chevrolet Caravan da polícia que metia medo até no enterro.

“Tive a sorte de estar no lugar certo, na hora certa, incentivada pelas pessoas certas. É claro que se fosse hoje teria detalhado muito mais as imagens do velório e do enterro. Mas foi o que uma menina de 19 anos conseguiu fazer em um momento bastante perigoso e tenso”, expõe Elvira. “Sorte e coragem”, define.

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